Opinião
- 03 de julho de 2019
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Três histórias, três mulheres: uma visão do feminino na perspectiva bíblica
Por Quéfren de Moura
Muito provavelmente, você se lembra da história da mulher que cometeu adultério e foi levada a Jesus – aquela do “quem estiver sem pecado seja o primeiro a atirar a pedra”. Esse texto emocionante, único na Bíblia, está no capítulo 8 do Evangelho de João. Quero que você pare alguns instantes e reflita sobre ele. Quem era aquela mulher?
O que vem à sua mente? Sabemos muito pouco sobre ela pelo texto. Talvez, a primeira coisa que surja em sua cabeça seja a palavra “pecadora”. A narrativa bíblica não a chama assim, mas é a forma como muitas pessoas a definem. O que mais? Ela é trazida por outras pessoas, tem o seu pecado exposto diante de todos, é apresentada para julgamento e tem a sua vida colocada em risco de apedrejamento. Mas ela não diz uma única palavra durante todo esse tempo. Silenciada. Invisível. Na verdade, ela só fala ao final da narrativa, em resposta a Jesus, o único que se dirige a ela ao longo da história. Antes disso, não tem o direito de se defender, de se explicar, sequer de se mostrar arrependida. Parece que tudo o que as pessoas conseguiam ver nela era o pecado – flagrante pecado! –, não quem ela realmente era. O estigma de adúltera havia tornado aquela pessoa coisa, objeto nas mãos da multidão.
Agora, quero que você pense em outra mulher bíblica: a mulher que andava encurvada havia dezoito anos. Descrita em Lucas 13.10-17, ela foi curada e “endireitada” por Jesus.
Duas coisas impressionam nessa história. A primeira é o tempo que ela permaneceu enferma: dezoito anos. Não dezoito dias, não dezoito meses… Dezoito anos!
Pare um pouco para refletir sobre essa informação. Dezoito anos é o tempo que leva um ser humano para nascer, crescer e se tornar adulto. É o tempo do crescimento físico, intelectual e emocional que culmina na emancipação. Dezoito anos também é a idade em que, aqui no Brasil, uma pessoa pode começar a dirigir. Ou seja, é o tempo que leva para um bebê crescer até ter estatura e competências motoras e mentais para assumir o volante. Pense agora: onde você estava dezoito anos atrás? Quem você era? Como você era? O que mudou desde então? Há dezoito anos, entramos no terceiro milênio da nossa era. Há dezoito anos, ataques terroristas nos Estados Unidos abalaram o mundo. Há dezoito anos, muitos de nós não eram casados, não tinham filhos, não tinham terminado a faculdade, talvez nem eram adultos ainda. Alguns sequer haviam nascido. Quantas coisas mudam em dezoito anos? O quanto de nós permanece igual dezoito anos depois?
Imagine-se, agora, dezoito anos encurvado, com dores nas costas, sem poder erguer-se bem. Pense no seu desconforto ao caminhar, sentar, deitar, levantar, respirar. Visualize-se na posição encurvada daquela mulher. Muito provavelmente, enxergando apenas pernas e pés. Não olhos. Não rostos. Não expressões. Pés. Sem poder encarar outro ser humano. Sem poder se relacionar de igual para igual. Ela ficou assim por longos, intermináveis e dolorosos dezoito anos. E, assim como a primeira mulher, provavelmente foi tratada não pelo que ela era de verdade. Sua condição fazia dela alguém destituído de identidade.
Outra coisa impressionante neste texto é que, depois do milagre incrível que o Filho de Deus realizou, um chefe religioso ficou indignado com Jesus. Em vez de se maravilhar com a cura e a libertação – em tantos sentidos – daquele ser humano, ele adota uma postura de insensibilidade. Exatamente como os acusadores da história da mulher que seria apedrejada.
Vamos para uma terceira mulher da Bíblia: a mulher junto ao poço, de João 4. O que você lembra quando pensa nela? Mulher (de novo!), estrangeira (de um povo que não se dava bem com os judeus) e… o que mais? Talvez (muito provavelmente) você esteja pensando: “Aquela que teve cinco maridos! E o atual não era seu marido.” Pecado. Estigma. Rótulo.
No fim da história da samaritana, não são os religiosos da época nem os inimigos de Jesus que se aproximam para proferir alguma palavra dura ou insensível. Os próprios discípulos é que ficam assombrados ao ver Jesus conversando com a samaritana. Mas, por que tanta surpresa? A tradição dizia que um rabi (mestre) não deveria falar com uma mulher. Será que era essa a razão do espanto dos seguidores de Jesus? Ao que tudo indica, não, visto que Jesus não demonstrou tal atitude em relação às mulheres em geral. Assim, a causa da surpresa deles foi evidentemente o fato de a mulher ser samaritana. De novo: eles não eram capazes de ver o coração de um ser humano sedento, necessitado da água da vida. Eles só viam o exterior.
Jesus e o paradigma da dignidade humana
Olhemos, então, mais atentamente para as atitudes de Jesus nessas três ocasiões e o tipo de reflexão que ele propõe diante dessas mulheres: uma apanhada em adultério, outra oprimida por um espírito que a fazia enferma por dezoito anos e outra estrangeira, que tirava água do poço, sem conhecer Jesus. O que ele fez? Como se comportou? O que disse? Que lições ensinou?
Jesus as tratou com dignidade. Ele curou aquelas mulheres, não apenas de seus males, mas da invisibilidade social a que eram sujeitas – assim como acontece a muitas mulheres, no mundo todo, ainda hoje. Ele expressou respeito e sensibilidade pela condição de cada uma, e as viu assim como Deus nos vê: não como objetos de consumo, nem como seres desimportantes, ignoráveis, sem valor. Ele não reiterou a opressão que elas sofriam, mas agiu com amor. Seu comportamento contrasta com a violência – aberta ou oculta – com que essas mulheres foram, cada uma à sua maneira, tratadas.
Enquanto a pequena multidão, ávida, prepara suas pedras, Jesus, paradoxalmente, escreve no chão com a ponta dos dedos. Então, ele declara livre a mulher que cometeu adultério, ele cura a que esteve enferma e oferece água viva à estrangeira. Quando assim o faz, Jesus devolve a elas sua humanidade. Ele mostra a elas (e a cada um de nós que, hoje, lê essas histórias e se sente desafiado por elas) o valor do ser humano. Ele nos diz que valeu a pena morrer na cruz do Calvário por nós. Ele restitui nossa identidade e nos permite andar de cabeça erguida, sem ter vergonha de quem somos. Porque ele nos mostra, a despeito do que a sociedade nos diz, que as pessoas – e as mulheres, em especial – são únicas diante dele.
Que não construamos nossa identidade com base no que a sociedade diz sobre nós – homens ou mulheres –, mas sobre aquilo que Jesus nos diz que somos. A Bíblia, para surpresa de muitos, já que retrata uma sociedade patriarcal, na qual as mulheres possuíam um status menor, está repleta de histórias de mulheres incríveis, cuja memória e legado reverberam com força até os nossos dias. Que nos apoderemos dessas narrativas, compreendendo o valor que o nosso Deus dá a todos aqueles que a sociedade menospreza, estigmatiza, condena e exclui.
• Quéfren de Moura é formada em História e Comunicação Social pela Universidade de São Paulo. É mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos da Tradução da mesma universidade, onde pesquisa a área de tradução bíblica. Atua como revisora de textos na Sociedade Bíblica do Brasil e vem se preparando para se tornar consultora de traduções. Atualmente, apoia projetos de tradução da Bíblia para idiomas minoritários e para a Língua Brasileira de Sinais.
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