Opinião
- 13 de junho de 2019
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Tolkien: a história do criador de O Senhor dos Anéis
Por Carlos Caldas
Tolkien, do diretor finlandês Dome Karukoski, tal como indicado pelo título, é a cinebiografia de John Ronald Reuel Tolkien, um dos mais conhecidos nomes da literatura de fantasia do século XX. Considerando a quantia enorme de leitores e estudiosos da obra de Tolkien em todo o mundo, o filme foi aguardado com muita ansiedade. Mas talvez os fãs tenham se decepcionado com o resultado do filme de Karukoski.
Tolkien, do diretor finlandês Dome Karukoski, tal como indicado pelo título, é a cinebiografia de John Ronald Reuel Tolkien, um dos mais conhecidos nomes da literatura de fantasia do século XX. Considerando a quantia enorme de leitores e estudiosos da obra de Tolkien em todo o mundo, o filme foi aguardado com muita ansiedade. Mas talvez os fãs tenham se decepcionado com o resultado do filme de Karukoski.
Com o jovem ator inglês Nicholas Hoult no papel principal, o filme apresenta apenas os primeiros anos da vida de Tolkien. Hoult é um ator em ascensão: com muita competência, por quatro vezes já deu vida ao Dr. Hank McCoy, o Fera, dos X-Men, e, debaixo de camadas e camadas de maquiagem pesada, estava simplesmente irreconhecível como o Nux do ótimo Mad Max – Estrada da Fúria, de George Miller. Ele fez um Tolkien sereno, doce e amável, o que talvez não combinasse muito com a personalidade do “Tolkien histórico”. Não que o “Professor” fosse uma pessoa detestável. Longe disso. Mas ele provavelmente era uma pessoa de difícil convivência, o que não é raro de acontecer com gênios.
A narrativa de Karukoski faz menção, apenas en passant, ao fato de Tolkien ter nascido em Bloemfontein, então colônia britânica – na época, ainda não existia a África do Sul tal qual a conhecemos atualmente. Com a morte do marido, Mabel, a mãe dos meninos John Ronald e Hilary, se vê obrigada a voltar para a Inglaterra e lutar para cria-los sozinha. Ao retornar, fixam residência em Birmingham, cidade cheia de indústrias e fábricas com chaminés lançando fumaça o tempo todo, algo que John Ronald – o nosso “Professor Tolkien” – sempre detestou. A descrição idílica e bucólica do Condado, onde vivem os hobbits em O Senhor dos Aneis (SdA) evoca uma visão quase árcade de Tolkien quanto à vida rural, algo oposto ao cenário industrializado e progressista de uma cidade como Birmingham. As biografias de Tolkien, das quais sem dúvida a de Humphrey Carpenter é melhor , informam que quando menino, ainda em Bloemfontein, John Ronald teve um pesadelo com uma aranha gigante. Eis aí a origem de Shelob, ou Laracna, uma aranha gigantesca, monstruosa e demoníaca que aparece em As Duas Torres, o segundo da trilogia O Senhor dos Aneis. O filme de Karukoski poderia ter mostrado em cenas que demorariam poucos minutos.
Outra lacuna no filme é a virtual inexistência de referências ao papel da fé cristã na formação intelectual, moral e espiritual de Tolkien. Quando Mabel falece, os irmãos Tolkien são adotados, e o Padre Francis Xavier Morgan, amigo da família, assume o papel de tutor dos meninos. No filme, o Padre Morgan é vivido pelo ator irlandês Colm Meaney, que já foi o Miles O’Brien, da série Star Trek: Deep Space Nine, sucesso dos anos de 1990. Padre Morgan fora aluno de John Henry Newman, clérigo anglicano do século XIX que se converteu ao catolicismo romano. Certamente por influência do Padre Morgan o jovem John Tolkien teve acesso ao pensamento de Tomás de Aquino e, via de consequência, ao tema das virtudes, que é simplesmente central para uma compreensão correta do SdA. A narrativa fílmica de Karukoski simplesmente ignora tudo isso. Uma pena, porque é algo que também poderia ter sido apresentado em cenas que durariam não mais que poucos minutos. A tradição cristã, central na vida de Tolkien, foi deixada totalmente de lado por Karukoski.
Há três eventos da vida de Tolkien que gastam praticamente todo o tempo do filme: seu romance com a jovem Edith, com quem viria a se casar, e sua participação como combatente do exército britânico na Primeira Guerra Mundial. Acontecimentos importantes, sem dúvida. Quanto à guerra, há que se lembrar que Tolkien participou da tristemente famosa Batalha do Somme, uma das mais sangrentas que se tem notícia . Mas o filme exagerou na dose ao mostrar quase que apenas estes eventos. Junto com a participação de Tolkien na guerra tem a questão de sua amizade com Geoffrey Smith, Christopher Wiseman e Robert Gilson: os quatro foram colegas na King Edward’s School em Birmingham, e criaram uma espécie de um clube de leitura, que se reunia com frequência em uma casa de chá chamada Barrow Stores. Daí veio o nome TCBS – Tea Club, Barrovian Society. A amizade daquele grupo foi importante, claro. Mas o filme gastou tempo demais ao redor destas três questões, perdendo desta maneira a oportunidade de enfatizar outros pontos importantes, como as influências intelectuais no processo de criação literária de Tolkien.
O filme também não menciona que de 1920 a 1925 Tolkien foi professor na Universidade de Leeds, na região de Yorkshire, norte da Inglaterra. Conforme o filme, Tolkien já iniciou sua carreira docente em Oxford. Mas não foi assim que se sucedeu. Foi durante seu tempo como docente em Leeds que ele trabalhou em uma edição de Sir Gawain and the Green Knight (“Sir Gawain e o Cavaleiro Verde”), um dos seus mais importantes trabalhos acadêmicos. Um detalhe curioso quanto ao período de Tolkien em Leeds é que lá ele e seu amigo E. V. Gordon fundaram o Viking Club – “Clube Viking” – um grupo no qual os participantes bebiam cerveja e cantavam poesias escritas no inglês antigo (consideravelmente diferente do inglês tal como o conhecemos atualmente) e em Old Norse, a língua nórdica antiga. Teria sido interessantíssimo ter uma cena no filme apresentando uma reunião destas.
Outra falha gritante do filme, que chega às raias do imperdoável, é que a fase provavelmente mais importante da vida de Tolkien, seu período como professor em Oxford, foi apresentada apenas de relance, uma cena de segundos, que mostra Tolkien andando de bicicleta por uma rua da legendária cidade universitária, e é saudado por um pedestre que grita “Oi Professor Tolkien”. Só isso. É uma falha grave uma biografia de Tolkien não apresentar os Inklings, o famoso grupo que se reuniu por cerca de trinta anos nas noites de quinta-feira, quase sempre no pub (o típico bar inglês) The Eagle and Child em Oxford. Dentre os Inklings estavam, além de Tolkien, seu filho Christopher, hoje quase centenário, Charles Williams, Owen Barfield, Hugo Dyson, Roger Lancelyn Green, Warren (“Warnie”) Lewis e o irmão mais famoso deste último, C. S. Lewis. Creio que eu teria gritado de emoção no cinema se o filme tivesse apresentado uma cena em que Jack (o apelido de Lewis) dissesse a Tollers (o apelido de Tolkien) algo do tipo “Tollers, você precisa publicar esta sua história...”. Isto porque Tolkien era extremamente perfeccionista, e nunca ficava satisfeito com sua própria obra. Lewis foi um grande incentivador de Tolkien, motivando-o a publicar seus textos .
Enfim, o filme apenas arranhou a superfície do processo criativo de Tolkien. Não teria sido difícil apresentar cenas em que Tolkien comentasse com alguém sobre personagens ou situações do SdA ou do Silmarillion, por exemplo. Seria o suficiente para mostrar como ele tinha uma mente que não parava, sempre fervilhando com ideias e inspirações, sempre em atividade febril como escritor.
A despeito de suas lacunas, o filme de Karukoski terá valido a pena se levar pessoas a conhecer e a explorar o universo fantástico tolkieniano. Seria maravilhoso se adolescentes de hoje, que vivem no tempo das redes sociais, seguissem o exemplo de Tolkien e seus amigos e organizassem clubes de leitura, o que incentivaria a cultura literária. Isto é tremendamente necessário em um tempo como o nosso, em que há facilidade de acesso à informação, mas, ao mesmo tempo, por uma infeliz contradição, impera em quase toda parte uma superficialidade assustadora. Esta é uma lição dada por Tolkien no TCBS, no Viking Club e nos Inklings. Precisamos de iniciativas semelhantes hoje.
Notas
- Humphrey Carpenter. J. R. R. Tolkien: uma biografia. São Paulo: Harper Collins, 2018.
- A obra (por enquanto) definitiva quanto à participação de Tolkien na Primeira Guerra Mundial é a de John Garth: Tolkien and the Great War: The Threshold of Middle-earth. London: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.
- Quanto ao relacionamento de amizade entre os que provavelmente foram os dois principais autores de fantasia do século passado consultar Colin Duriez: J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis – o dom da amizade. São Paulo: Harper Collins Brasil, 2018.
• Carlos Caldas é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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