Opinião
- 22 de março de 2022
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The Righteous Gemstones – “tendo aparência de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes”
Atenção: contém spoiler
Por Carlos Caldas
The Righeteous Gemstones – “Os justos Gemstones” – é uma série veiculada pelo canal de streaming HBO. Há duas temporadas disponíveis, e uma terceira anunciada para 2023. É uma comédia completamente nonsense, que esculhamba sem dó nem piedade o estilo de vida dos televangelistas dos Estados Unidos. A série é produzida, roteirizada e estrelada por Danny McBride. Os Gemstones do título são uma família total, completa e absolutamente disfuncional. É razoável admitir que McBride não conheça “Vaca Profana”, de Caetano, mas fato é que The Righteous Gemstones leva às últimas consequências uma afirmação do compositor baiano na mencionada canção: “de perto ninguém é normal”. Todos os integrantes da família Gemstone são desajustados, desequilibrados, descontrolados e destemperados. O patriarca da família é Eli, interpretado por John Goodman, um comediante muito experiente. Justiça seja feita: Eli e Gideon, seu neto mais velho, são as melhores pessoas da complicada família Gemstone. McBride interpreta Jesse, o filho mais velho de Eli, que quer a todo custo substituir o pai no comando do império multimilionário que ele montou como televangelista. Jesse é casado com Amber, e eles têm três filhos. O núcleo familiar de Eli é completado pela filha Judy, que em suas crises de ira (que acontecem com muita frequência) destrói tudo que vê pela frente, e pelo caçula Kelvin, pastor de jovens do “Centro de Salvação Gemstone” (é este o nome da “denominação” criada por seu pai), que vive um relacionamento homossexual com um ex-satanista. A família ampliada ainda tem o tio Baby Billy Freeman, cunhado de Eli, ele próprio também um evangelista, mas que na verdade é mais um animador de programas de auditório que qualquer outra coisa. Baby Billy é interpretado por Walton Goggins, simplesmente perfeito no papel de um líder religioso que é manipulador, mentiroso compulsivo, egoísta, egocêntrico, insensível à dor alheia, ganancioso, invejoso e inescrupuloso. Baby Billy é o tipo do personagem que o público ama odiar...
The Righteous Gemstones apresenta desde suas primeiras cenas a gritante falta de coerência entre o discurso e a vida dos membros da família: em uma sequência que terá repercussões por praticamente toda a primeira temporada, Jesse é mostrado junto com seus colegas de equipe (que ele trata o tempo todo de uma maneira ríspida e grosseira) em uma “festinha” com prostitutas regada a muita cocaína. O mesmo Jesse não consegue falar uma frase sem palavrões e palavras de baixo calão, ou seja, sua vida é o contrário do que se esperaria de um líder cristão. Neste sentido, The Righteous Gemstones tem um “parentesco”, por assim dizer, com Greeleaf, série produzida pela famosa Oprah Winfrey. As duas séries mostram incoerências e hipocrisias de lideranças religiosas evangélicas nos Estados Unidos que conseguiram montar impérios. A diferença é que enquanto Greenleaf assume um tom de drama, The Righteous Gemstones optou por ser uma comédia que “esculhamba” com tudo.
Duas palavras definem o conteúdo da série de McBride: hipérbole e caricatura. Hipérbole, sabemos, é a figura de linguagem do exagero intencional para dar ênfase, e caricatura é a ilustração que ressalta e realça uma característica física da pessoa retratada, de modo a destacá-la de imediato. A fotografia e a pintura de estilo realista são artes representativas, que procuram fazer uma mimese da pessoa, cena ou situação retratada. A caricatura, em contraste, faz sobressair uma característica “defeituosa”, por assim dizer. Pois bem, em The Righteous Gemstones os televangelistas dos Estados Unidos são apresentados de maneira hiperbolizada e caricaturizada. Tudo na série é exagerado. Os Gemstones são inacreditavelmente ricos. Alguns exemplos de sua riqueza astronômica: eles têm três jatos particulares, The Father, The Son e The Holy Spirit (respectivamente, “O Pai”, “O Filho” e “O Espírito Santo”), e moram em uma propriedade imensa guardada por seguranças armados, cada um em uma mansão. E na segunda temporada entra em cena um personagem novo, o Pastor Lyle, outro televangelista que também é dono de um império, e que consegue ser ainda pior em caráter os Gemstone.
Não é difícil perceber que McBride se inspirou em Rex Humbard, televangelista muito famoso na década de 1970, que se apresentava com sua família. Os mais velhos dentre os leitores deste texto certamente se lembrarão do Tim Tones, um dos muitos personagens de Chico Anísio, uma paródia óbvia de Humbard e sua família. A grande diferença é que Humbard nunca se envolveu em nenhum escândalo de qualquer tipo.
A série de McBride em alguns momentos resvala para comédia pastelão pura e simples, com cenas de situações e diálogos ridículos, inverossímeis e sem sentido. Mas não se pode negar que a despeito de todo seu exagero, McBride faz uma crítica contundente a líderes religiosos que são famosos demais, ricos demais, consequentemente, poderosos demais, e, não raro, demonstram incoerência entre o que discursam e o que vivem. O Apóstolo Paulo nas chamadas “Epístolas Pastorais” (1 e 2 Timóteo e Tito) apresenta algumas características que se espera dos líderes das comunidades cristãs. Estes devem ser “irrepreensíveis, não violentos, porém cordatos, inimigos de contendas” – isso é tudo que o pessoal da família Gemstone, especialmente Jesse, não é. Conforme o texto de 2 Timóteo 2.24 “é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e sim, deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente”. Os Gemstone são qualquer coisa, menos “brandos, aptos para instruir, pacientes”.
Outro impossível de não ser observado é que os títulos dos episódios, com exceção do primeiro da primeira temporada, que tem por título The Righteous Gemstones (a HBO no Brasil optou por manter os títulos no original), que é uma apresentação dos personagens, os demais títulos são fragmentos de versículos bíblicos. Alguns exemplos: o episódio 2 da primeira temporada é This is the man who made the earth tremble (“É este o homem que fazia estremecer a terra”, extraído de Is 14.6, que por sua vez faz referência ao rei da Babilônia), o sexto é Now the sons of Eli were worthless men (“Entretanto os filhos de Eli eram ímpios”, extraído de 2Sm 2.12 – a melhor descrição dos filhos dos dois Eli, o sacerdote de Siló, e seu xará fictício [?] Eli Gemstone).
A proposta de The Righteous Gemstones é usar a galhofa para criticar contradições de líderes religiosos evangélicos. Há um alerta na série que não pode ser ignorado. O evangelho de Jesus não combina com poder, ostentação e consumismo. A liderança de Jesus é de serviço, não de dominação (Mc 10.45; Lc 22.24-27). A série de McBride, com todo seu exagero, é uma trombeta que soa alertando aos seguidores de Jesus para que tomem cuidado, para que o nome de Deus não seja blasfemado entre os não cristãos por causa deles (Rm 2.24).
Leia mais:
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» Missa da Meia-Noite – o próprio Satanás se transforma em anjo de luz
Por Carlos Caldas
The Righeteous Gemstones – “Os justos Gemstones” – é uma série veiculada pelo canal de streaming HBO. Há duas temporadas disponíveis, e uma terceira anunciada para 2023. É uma comédia completamente nonsense, que esculhamba sem dó nem piedade o estilo de vida dos televangelistas dos Estados Unidos. A série é produzida, roteirizada e estrelada por Danny McBride. Os Gemstones do título são uma família total, completa e absolutamente disfuncional. É razoável admitir que McBride não conheça “Vaca Profana”, de Caetano, mas fato é que The Righteous Gemstones leva às últimas consequências uma afirmação do compositor baiano na mencionada canção: “de perto ninguém é normal”. Todos os integrantes da família Gemstone são desajustados, desequilibrados, descontrolados e destemperados. O patriarca da família é Eli, interpretado por John Goodman, um comediante muito experiente. Justiça seja feita: Eli e Gideon, seu neto mais velho, são as melhores pessoas da complicada família Gemstone. McBride interpreta Jesse, o filho mais velho de Eli, que quer a todo custo substituir o pai no comando do império multimilionário que ele montou como televangelista. Jesse é casado com Amber, e eles têm três filhos. O núcleo familiar de Eli é completado pela filha Judy, que em suas crises de ira (que acontecem com muita frequência) destrói tudo que vê pela frente, e pelo caçula Kelvin, pastor de jovens do “Centro de Salvação Gemstone” (é este o nome da “denominação” criada por seu pai), que vive um relacionamento homossexual com um ex-satanista. A família ampliada ainda tem o tio Baby Billy Freeman, cunhado de Eli, ele próprio também um evangelista, mas que na verdade é mais um animador de programas de auditório que qualquer outra coisa. Baby Billy é interpretado por Walton Goggins, simplesmente perfeito no papel de um líder religioso que é manipulador, mentiroso compulsivo, egoísta, egocêntrico, insensível à dor alheia, ganancioso, invejoso e inescrupuloso. Baby Billy é o tipo do personagem que o público ama odiar...
The Righteous Gemstones apresenta desde suas primeiras cenas a gritante falta de coerência entre o discurso e a vida dos membros da família: em uma sequência que terá repercussões por praticamente toda a primeira temporada, Jesse é mostrado junto com seus colegas de equipe (que ele trata o tempo todo de uma maneira ríspida e grosseira) em uma “festinha” com prostitutas regada a muita cocaína. O mesmo Jesse não consegue falar uma frase sem palavrões e palavras de baixo calão, ou seja, sua vida é o contrário do que se esperaria de um líder cristão. Neste sentido, The Righteous Gemstones tem um “parentesco”, por assim dizer, com Greeleaf, série produzida pela famosa Oprah Winfrey. As duas séries mostram incoerências e hipocrisias de lideranças religiosas evangélicas nos Estados Unidos que conseguiram montar impérios. A diferença é que enquanto Greenleaf assume um tom de drama, The Righteous Gemstones optou por ser uma comédia que “esculhamba” com tudo.
Duas palavras definem o conteúdo da série de McBride: hipérbole e caricatura. Hipérbole, sabemos, é a figura de linguagem do exagero intencional para dar ênfase, e caricatura é a ilustração que ressalta e realça uma característica física da pessoa retratada, de modo a destacá-la de imediato. A fotografia e a pintura de estilo realista são artes representativas, que procuram fazer uma mimese da pessoa, cena ou situação retratada. A caricatura, em contraste, faz sobressair uma característica “defeituosa”, por assim dizer. Pois bem, em The Righteous Gemstones os televangelistas dos Estados Unidos são apresentados de maneira hiperbolizada e caricaturizada. Tudo na série é exagerado. Os Gemstones são inacreditavelmente ricos. Alguns exemplos de sua riqueza astronômica: eles têm três jatos particulares, The Father, The Son e The Holy Spirit (respectivamente, “O Pai”, “O Filho” e “O Espírito Santo”), e moram em uma propriedade imensa guardada por seguranças armados, cada um em uma mansão. E na segunda temporada entra em cena um personagem novo, o Pastor Lyle, outro televangelista que também é dono de um império, e que consegue ser ainda pior em caráter os Gemstone.
Não é difícil perceber que McBride se inspirou em Rex Humbard, televangelista muito famoso na década de 1970, que se apresentava com sua família. Os mais velhos dentre os leitores deste texto certamente se lembrarão do Tim Tones, um dos muitos personagens de Chico Anísio, uma paródia óbvia de Humbard e sua família. A grande diferença é que Humbard nunca se envolveu em nenhum escândalo de qualquer tipo.
A série de McBride em alguns momentos resvala para comédia pastelão pura e simples, com cenas de situações e diálogos ridículos, inverossímeis e sem sentido. Mas não se pode negar que a despeito de todo seu exagero, McBride faz uma crítica contundente a líderes religiosos que são famosos demais, ricos demais, consequentemente, poderosos demais, e, não raro, demonstram incoerência entre o que discursam e o que vivem. O Apóstolo Paulo nas chamadas “Epístolas Pastorais” (1 e 2 Timóteo e Tito) apresenta algumas características que se espera dos líderes das comunidades cristãs. Estes devem ser “irrepreensíveis, não violentos, porém cordatos, inimigos de contendas” – isso é tudo que o pessoal da família Gemstone, especialmente Jesse, não é. Conforme o texto de 2 Timóteo 2.24 “é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e sim, deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente”. Os Gemstone são qualquer coisa, menos “brandos, aptos para instruir, pacientes”.
Outro impossível de não ser observado é que os títulos dos episódios, com exceção do primeiro da primeira temporada, que tem por título The Righteous Gemstones (a HBO no Brasil optou por manter os títulos no original), que é uma apresentação dos personagens, os demais títulos são fragmentos de versículos bíblicos. Alguns exemplos: o episódio 2 da primeira temporada é This is the man who made the earth tremble (“É este o homem que fazia estremecer a terra”, extraído de Is 14.6, que por sua vez faz referência ao rei da Babilônia), o sexto é Now the sons of Eli were worthless men (“Entretanto os filhos de Eli eram ímpios”, extraído de 2Sm 2.12 – a melhor descrição dos filhos dos dois Eli, o sacerdote de Siló, e seu xará fictício [?] Eli Gemstone).
A proposta de The Righteous Gemstones é usar a galhofa para criticar contradições de líderes religiosos evangélicos. Há um alerta na série que não pode ser ignorado. O evangelho de Jesus não combina com poder, ostentação e consumismo. A liderança de Jesus é de serviço, não de dominação (Mc 10.45; Lc 22.24-27). A série de McBride, com todo seu exagero, é uma trombeta que soa alertando aos seguidores de Jesus para que tomem cuidado, para que o nome de Deus não seja blasfemado entre os não cristãos por causa deles (Rm 2.24).
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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