Opinião
- 28 de junho de 2023
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Terra selvagem, o filme. Tanto lá como cá
Por Carlos Caldas
Terra Selvagem (Wind River no original) é um filme de 2017 do diretor Taylor Sheridan disponível no streaming Netflix. Wind River é o nome de uma reserva indígena do estado norte-americano de Wyoming.
O filme quase que poderia ser classificado como um western – “faroeste” – contemporâneo. Quase. Terra selvagem na verdade é um drama, bastante sensível e tocante. É também uma “história de detetive”, por assim dizer, porque a trama central da narrativa consiste no básico deste gênero: uma moça indígena chamada Natalie é encontrada sem vida em um deserto de gelo (toda a história se passa durante um inverno bastante rigoroso daquela região do norte dos Estados Unidos). Detalhe: ela está descalça.
Aí surgem as perguntas óbvias: afinal, o que aconteceu? Por que ela está descalça? Do quê – ou de quem – ela estava fugindo tão desesperadamente a ponto de correr quilômetros descalça na neve? Ela estava em plena posse de suas faculdades mentais? Ou alguém a forçou a fazer isso? Se sim, por quê? O FBI é acionado, e envia a agente Jane Banner para descobrir o que houve. Ela é totalmente urbana, e chega em uma ambiente que lhe é estranho, adverso e inóspito. Lá, receberá a ajuda de Ben Shoyo, da Polícia Indígena (o policial Shoyo é interpretado pelo ator indígena canadense Graham Greene) e por Cory Lambert, que é um agente de um órgão estatal que no Brasil seria equivalente ao IBAMA.
Um detalhe sobre o elenco: três integrantes são muito conhecidos por conta de sua participação no Universo Cinematográfico Marvel: a agente Banner é vivida pela bela Elizabeth Olsen, a Feiticeira Escarlate, o agente Lambert é interpretado por Jeremy Renner, o Gavião Arqueiro (Renner está em recuperação de um acidente doméstico grave que sofreu no início deste ano, quando foi atropelado por um veículo limpa-neve de seis toneladas) e Matt Rayburn, o namorado de Natalie, é o papel de Jon Bernthal, que no UCM encarna Frank Castle, o Justiceiro. Olsen e Renner estão simplesmente ótimos em seus papeis. A participação de Bernthal é pequena, mas muito importante. A princípio, ele é o principal suspeito da morte de Natalie, mas no final do filme descobre-se que ele também fora vítima de uma violência gratuita e absurda.
Voltando a uma das primeiras afirmações deste texto: o filme é um “quase” western porque é uma história que se passa em um ambiente rural em que há indígenas e brancos, o que evidentemente faz lembrar westerns clássicos. Mas a narrativa de Sheridan foge por completo da estética western tradicional por ser deliberadamente lenta em muitos pontos, e por não trazer os clichês conhecidos do gênero. Há que se destacar a fotografia, belíssima, mostrando um território inóspito, vazio, dominado pelo silêncio e pelo branco brilhante da neve. Ao invés de explorar lugares comuns dos westerns, o filme foca no drama de jovens indígenas, vivendo em uma reserva, sem perspectivas de trabalho ou estudo (em um determinado momento o policial Shoyo diz que muitas vezes rapazes indígenas deliberadamente criam situações que farão com que sejam presos, porque pelo menos enquanto estiverem na cadeia terão três refeições por dia).
O filme apresenta também o drama familiar do agente florestal Lambert: ele fora casado com uma mulher indígena, mas o casamento não resistiu quando a filha mais velha do casal foi assassinada misteriosamente em circunstâncias que jamais foram esclarecidas. Por isso ele quer de todo jeito descobrir porque Natalie morreu de um jeito tão brutal, e quem foi o responsável pela morte da moça. Cory Lambert, como seria de se esperar, se identifica e se solidariza com o pai de Natalie, pois ambos são pais de filhas indígenas mortas sem que saiba como ou porquê suas filhas lhes foram tiradas de modo violento e prematuro. A cena do diálogo de Cory com o pai de Natalie é emocionante e tocante por demais.
Por fim descobre-se que Natalie fora vítima de violência sexual por parte de um grupo de colegas de trabalho de Matt, o seu namorado. Ele tentou defendê-la, mas foi brutalmente espancado até a morte pelos “colegas” (entre muitas aspas). Natalie tenta fugir, e no desespero de escapar daquela situação, sai de casa descalça. Explica-se assim então seu fim doloroso. No fim a justiça será feita, porque Cory fará com que o líder do grupo passe pela mesma situação que a moça assassinada passou, pois faz com que ele corra descalço no gelo, mas ele evidentemente não aguenta, e sucumbe, tal como acontera com a jovem Natalie.
Pode-se dizer que Terra Selvagem é e não é uma história real. Não é, no sentido que o roteiro do filme é original, não necessariamente baseado em uma história verídica. Mas é real no sentido que a história das Américas é dolorosamente marcada por ataques contra os povos originários, sendo que crianças e mulheres têm sido as principais vítimas. Quantas Natalies existiram, existem e existirão? O sangue destas mulheres indígenas violentadas e massacradas clama aos céus por justiça. No início do corrente ano no Brasil tomou-se conhecimento do drama do povo Yanomami. Quantas crianças e mulheres desse povo, e de todos os demais povos ameríndios têm sofrido ataques brutais assim?
No fim do filme há uma vinheta que denuncia algo chocante: não há registros ou estatísticas da quantidade de mulheres indígenas nos Estados Unidos que desaparecem e/ou que são assassinadas. É impressionante, porque a cultura norte-americana é “fissurada”por estatísticas. Há estatísticas para quase tudo. Mas não há para a quantidade de mulheres indígenas que ainda hoje são vítimas de agressões e ataques horríveis. Por que não? E no Brasil – em nosso país a situação é diferente? Vidas indígenas importam. Vidas de crianças e mulheres indígenas importam.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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