Opinião
- 17 de junho de 2021
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Stott e os acampamentos evangélicos
Por José de Segovia
John Stott aprendeu com Bash que a evangelização nunca deve ser manipuladora. Em seu estilo de acampamentos evitava a pressão para obter uma resposta emocional ao evangelho, que no caso dos adolescentes não costuma ter um efeito duradouro.
Muita de nossa educação sentimental aconteceu em acampamentos. No ano de 1907 com o nascimento do escotismo por Baden-Powell, ir a um acampamento era antes de tudo dormir em barracas, porém não ficou assim por muito tempo. Já nos anos 30, muitos dos acampamentos para estudantes eram em escolas particulares. Igualmente, a disciplina paramilitar começou a desaparecer rapidamente a partir da Primeira Guerra Mundial, ainda que a terminologia tenha ficado em algumas organizações quase até os anos 80 do século 20.
A conversão de John Stott ao protestantismo não foi em um acampamento, mas sim relacionada à visita do representante da União Bíblica, que se dedicava fundamentalmente a organização de acampamentos. A visão de Bash era alcançar os jovens das escolas de elite, conhecidas como públicas no Reino Unido, para o evangelho. Para isso, ele alugava colégios e convidava estudantes para acampamentos no Natal, na Páscoa e no verão, o que Stott participou durante anos, mas que também acabou organizando ao se tornar o “braço direito” de Bash, enquanto estudava na Universidade de Cambridge.
Os acampamentos de Bash, na época de Stott, tinham sua base no colégio Clayesmore, que estava localizado no pequeno povoado de Dorset, entre Shaftesbury e Blandford, que tinha o nome de Iwerne Minster. A primeira experiência de organização de acampamentos de Stott, sem dúvidas, foi em 1941 com uma missão que fazia atividades evangelísticas nas praias. Durante o verão, Stott fez parte da equipe com o presidente do grupo de estudantes evangélicos de Cambridge, Oliver Barclay. Eles faziam atividades para crianças na costa ao norte de Gales, próximo de Aberystwyth. Para isso, os pais tinham que deixar que seus filhos participassem de “cultos especiais”, para os quais eles até construíam um púlpito de arena.
Elitismo?
Curiosamente, uma das crianças que participava das reuniões era a filha de um importante dramaturgo, locutor e ativista político, J. B. Priestley. A razão é que seu pai passava o verão na casa ao lado onde se hospedava a equipe da missão, pois seu socialismo era bem contrário a toda religião organizada. Bash participava das campanhas, em parte para contestar as críticas que recebia de que seu trabalho era elitista demais. Muitas pessoas o lembravam que “Deus não faz acepção de pessoas”, algo que ele nunca negava, é claro.
A acusação mais difícil de responder era, sem dúvida, a de que ajudava a perpetuar o sistema de divisão e arrogância que supunha a exclusiva educação privada da classe dominante nos colégios chamados “públicos”. Bash negou totalmente a sugestão de misturarem nos acampamentos as crianças de origem pobre com os filhos de famílias privilegiadas. O motivo para isso não era para que essas não conhecessem “o resto do mundo”, mas porque ele não considerava seus acampamentos uma atividade social, mas, sim, espiritual. Ele via o acampamento como um “campo de batalha” no qual não queria colocar outro obstáculo além do próprio evangelho. Se tratava de facilitar a hospedagem das crianças num contexto que sentissem confortáveis.
Os grupos estavam divididos em dormitórios que contavam com um responsável que devia aproximar-se de um pequeno grupo de crianças para conhecê-los e fazer amizade com eles. Junto a eles tinham outros mais novos que estavam aprendendo com os mais experientes. Estes falavam sozinhos nos momentos de devocionais matutinos e noturnos, não mais de 15 minutos e sob a observação crítica dos monitores. Foi assim que Stott começou a falar em público. Eram falas breves ordenadas por esquema trinitário restrito, que chamavam para conhecer a Jesus Cristo como o Salvador vivo. Havia um reconhecimento claro do pecado no coração humano, do significado da cruz e do custo do discipulado. Basicamente, o modelo de pregação pelo qual Stott se tornou conhecido.
Evangelização ou manipulação?
As atividades cristãs para crianças têm sido enormemente criticadas nos últimos anos. A maioria das pessoas as consideram uma simples manipulação. As objeções já não são apenas éticas, pois muitas pessoas já as condenam como uma atividade quase criminosa. No rumo da sociedade atual, as questões morais se convertem cada vez mais em problemas legais. O abuso se pressupõe, já não se suspeita. O que tem levado à impossibilidade prática de muitas das iniciativas evangelísticas que se faziam com as crianças, pelo menos na Europa.
Stott aprendeu com Bash que a evangelização nunca deve ser manipuladora. O estilo dos acampamentos era particularmente descontraído e informal, pela aversão que Bash tinha ao que ele chamava “intensidade”. Nestas atividades se evitava a pressão por conseguir uma resposta emocional à apresentação do evangelho, que no caso de adolescentes não costuma ter um efeito duradouro. O humor era usado não apenas como una forma de descontração, mas como uma maneira de ajudar a pensar calmamente nas coisas. Mesmo que tenha colaborado com Billy Graham, Stott sempre escreveu criticamente sobre as campanhas de evangelização que não eram nada mais que manipulação de massas.
Os acampamentos que organizaram, serviram, sem dúvida, para levar a fé a futuros diretores de escolas, professores, bispos, missionários, médicos, advogados, políticos, empresários, músicos, artistas e escritores. Dando alguns nomes, foi pelo ministério de Bash que David Sheppard, o capitão da equipe de cricket, se converteu e chegou a ser bispo de Liverpool, assim como o vice-presidente do parlamento europeu e político conservador Sir Fred Catherwood, que se casaria com a filha de um conhecido médico que se tornou pregador, Martyn Lloyd-Jones. Os frutos são evidentes.
Mais que um administrador
Stott se tornou secretário e tesoureiro da obra da organização de Bash quando estudava na Universidade de Cambridge. O primeiro acampamento pelo qual foi responsável foi no verão de 1940 com apenas 19 anos. Sua conversão havia acontecido três anos antes. Eles faziam atividades em bosques e campos de colheita, mas o trabalho de Stott foi sobretudo na área administrativa. Isso incluía desde pagar contas e seguros, cuidar da contabilidade, fazer inventários, listas e horários. Se reunia com a equipe em reuniões de oração e coordenava as atividades de todos. Eram familiares as folhas de papel que repartia com a equipe com a responsabilidade de cada, que mudava a cada ano, e que incluía uma sessão para críticas e sugestões.
Muitos recordam algumas coisas que caracterizaram a vida de Stott. A primeira era sua impressionante capacidade para lembrar o nome de qualquer criança que encontrava no pátio ou no refeitório. Isto sempre me surpreendeu em Stott. Acredito que poucos pregadores tenham conhecido tantas pessoas em todo o mundo, mesmo assim, ele sempre se lembrava dos nomes! Podia não me ver por muitos anos que não esqueceria de meu nome, era assim com todos! Alguns amigos íntimos dizem que era por sua prática de fazer listas de oração. Pode ser, mas ele nunca revelava essas coisas. Ele não era dos que sempre diziam que estava orando por você. Para ele, a expressão soava um pouco vazia e servia, além disso, para fazer exibicionismo de sua vida espiritual. E Stott não gostava de usar uma linguagem assim. Ele sempre foi muito cuidadoso com as palavras.
Outra virtude que sempre se destacou em Stott era sua paciente capacidade pacificadora. Sua vocação ao ministério eclesiástico fez com que ele não se tornasse diplomata, como queriam seus pais, mas, de certa forma, ele exerceu essa função no mundo cristão. Como em qualquer outro grupo de pessoas, às vezes havia discussões grandes e inúteis nos acampamentos que não chegavam a lugar nenhum. Bash, para concluir o debate, dizia: “Alguns de nós nos reuniremos para solucionar isso”. Stott aprendeu com ele essa forma de resolver conflitos. Cada vez que havia um problema com os pais, ou com transportes, com fornecedores de material, com trabalhadores do campo ou da cozinha, sempre mandavam Stott para resolver. Ele tinha uma extraordinária capacidade para apaziguar a pessoa irada, tranquilizar o ansioso e persuadir o reticente.
Ninguém é uma ilha
Quando escrevo estas reflexões, ainda no meio de uma pandemia, parece que os acampamentos não fazem parte apenas do século passado, mas de outra vida. Muitos de nós podemos dizer que graças aos acampamentos somos o que somos. Não é estranho que tantas histórias de reencontro voltem ao cenário de acampamento. Separados de nosso meio familiar e da rotina de cada dia, mostramos a realidade do que somos de uma maneira diferente de uma reunião ou atividade pontual; nos revelam quem somos e qual é a nossa verdadeira necessidade.
Inclusive aqueles que não são tão sociáveis aprendem a conviver nos acampamentos. Stott passava mais tempo em seu quarto do que nas atividades que organizava. Em partes porque ele não teve a oportunidade em Cambridge de fazer muito do que era necessário para organizar algo assim, mas também por ser daquelas pessoas que precisavam recolher-se a cada período, para poder fazer as coisas da melhor maneira possível. Somos diferentes, mas precisamos uns dos outros. Não podemos viver isoladamente. “Nenhum homem é uma ilha”, como dizia o poeta e pregador John Donne.
Nesta era da internet, volta a proliferar um cristianismo sem igreja. Existem alguns que se dedicam, inclusive, a ensinar nas redes sobre qual é a verdadeira fé e não têm compromisso com nenhuma comunidade. Este é um problema sério no mundo evangélico, qualquer um pode sê-lo. Ninguém te pergunta de qual igreja você é, menos ainda se participa de uma reunião com alguém. Tudo isso criou uma cultura de franco-atiradores, que quanto mais isolados, mais fanáticos. Gente que tem uma centena de igrejas em sua localidade e nenhuma delas chega ao nível que eles requerem para que sejam membros. E o pior é que em vez de se envergonharem por isso, muitos exibem sua independência com orgulho. Costumam recriminar aos demais por não serem tão cristão como eles. Um pouco mais de humildade não cairia mal para nós; e entender que o cristianismo é comunitário, ou não é cristianismo. Não existe cristianismo sem igreja no Novo Testamento.
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Marcas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Marcas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
Traduzido por Carla Ribeiro.
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