Opinião
- 05 de agosto de 2020
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Solidariedade: todo mundo segura a mão de todo mundo
Por Maruilson Souza
A solidariedade está associada a atitudes que se tem no dia-a-dia em relação a outros e à comunidade à qual pertencemos. Ela não é, portanto, nem abstrata nem solitária. Mas está vinculada a quanto, no nosso viver ordinário, estamos dispostos a cuidar, incluir, defender, promover, proteger e a sermos generosos uns com os outros. Consequentemente, a solidariedade acontece tanto nos pequenos gestos quanto no valor que atribuímos àquele que é, age, pensa e até mesmo tem uma religião ou uma orientação sexual diferente da nossa. Em outras palavras, solidariedade exige de você e de mim um olhar atento, empático e sensível às necessidades do individuo e da comunidade humana próxima e distante. Aí está sua importância. Por outro lado, a solidariedade é também um processo.
Solidariedade como processo de humanização do humano
Sabemos que ninguém nasce solidário, mas necessitado de solidariedade. Sem o cuidado generoso de outros, não sobreviveríamos como indivíduos ou espécie. Ainda assim, ser solidário requer decisão, intencionalidade e esforço para vencer o egoísmo e o etnocentrismo, onde “eu”, “os meus” e “aqueles que pensam como eu” são o centro. No agir solidário me vejo forçado a expandir os horizontes, a perceber o todo, a unir o dividido, a trazer para perto o afastado, a juntar o desconjuntado, a curar o combalido, a alimentar o faminto, a ouvir atentamente o desesperado e a buscar dignidade para os humilhados. Por conseguinte, solidariedade é um processo de descentralização e de humanização do humano.
Solidariedade como processo de humanização da sociedade
Solidariedade é igualmente um processo de humanização da sociedade e isso passa pela tomada de consciência de deveres e direitos dos indivíduos (cidadania), sendo a educação indispensável para isso. De fato, cidadania e solidariedade são como irmãs siamesas, interdependentes. Ainda que no transcorrer do século 20 o cidadão tenha sido transformado em mero “consumidor” (Milton Santos), reduzido a uma coisa “coisificada” (Theodor Adorno) e convertido em “mercadoria” (Zygmunt Bauman), não é possível pensar a primeira descartando a segunda. Por conseguinte, a construção de uma sociedade mais humana, justa, igualitária e equilibrada depende de cidadãos e cidadãs participativos, defensores da vida, da dignidade, da liberdade e do respeito para todos, onde ninguém solta a mão de ninguém e todo mundo segura a mão de todo mundo. Logo, o desrespeito aos direitos de um é desrespeito aos direitos de todos e o sofrimento e a morte de um atinge a todos.
Jesus como modelo solidário
Os Evangelhos não deixam dúvida de que a solidariedade de Jesus ia além de gestos esporádicos de bondade, de compaixão e de misericórdia com os pobres e miseráveis da sociedade de então. Basta ler nas entrelinhas para perceber sua crítica às estruturas de perpetuação das desigualdades, ainda que elas estivessem disfarçadas por um manto religioso ou por uma espiritualidade que escondia o desamor ao próximo e ao cotidiano através da ênfase no transcendental. Diferente do que se popularizou, Jesus foi uma figura tão solidária que é mais bem impactante quando percebido dentro dos limites de tempo e espaço concretos do contexto da época. Na parábola do samaritano (Lucas 10.25-37), por exemplo, Jesus denuncia a espiritualidade do sacerdote e do levita, centradas no trabalho, nos compromissos assumidos, nas identidades das suas profissões, na racionalidade e no medo. Já no samaritano herético, Jesus vê uma espiritualidade solidária e, portanto, modelo (“vai tu e faz o mesmo”, v. 37), a qual está fundamentada:
1. No serviço ao necessitado. O samaritano socorre uma pessoa não por ser seu amigo ou seu chefe ou uma pessoa importante, mas alguém fragilizado, vulnerável.2. Na voluntariedade. Ninguém o obrigou a parar e muito menos a ajudar e a gastar parte dos seus recursos com aquele miserável que, inclusive, não podia retribui-lo. Ele o faz por generosidade voluntária. Foi a necessidade, as feridas e a dor do outro que o constrangeu e o fez mudar seus planos, diminuir sua pressa e correr riscos.
3. No amor. E esse não tem explicação. É o amor que nos faz assumir a responsabilidade pelo outro, a não viver somente de si, para si e a partir de si. No amor, o centro é o outro. Na verdade, o amor que sentimos pelos necessitados e alquebrados deve ser maior do que o nosso medo. Sim, é o amor que nos faz romper barreiras e enfrentar os medos.
4. Na luta para garantir vida para o outro, que é estranho, desconhecido, mas tão humano quanto você e eu. O samaritano não sabia e nem perguntou pela religião do ferido. Ele, solidariamente o socorreu. O samaritano não sabia e nem perguntou pela orientação sexual do violentado. Ele simplesmente o tomou nos braços e o tirou dali para protegê-lo. O samaritano não pensou se aquele homem poderia pagar de volta o que ele iria gastar. Seu foco estava na possibilidade de salvar uma vida, não no dinheiro que gastaria. Sua mentalidade não era retributiva, nem compensativa. Ao contrário, ele tinha uma atitude solidaria.
Infelizmente, mais de 20 séculos depois, ainda não aprendemos com Jesus a respeito da espiritualidade solidária. Espiritualidade essa diferente e que faz diferença. Parece-me que, com exceções - e elas existem -, ainda insistimos numa espiritualidade que gera admiração e aplausos, que nos põe nos altares e nos torna sagrados, mas que, tristemente, nos afasta dos pobres, dos vulneráveis e daqueles que nos seus sofrimentos imploram para que paremos, os vejamos e, sem discriminação, os socorramos. Com isso, não é de estranhar que no século 21, em plena pandemia do coronavírus, haja quem diga ser um desperdício o gastar dinheiro para alimentar os famintos, para providenciar um agasalho para aqueles que estão em situação de rua. Sim, infelizmente, já encontrei quem dissesse não ser nossa responsabilidade alimentar, proteger e defender o direito daqueles que encontram-se em situação de indigência. Já encontrei quem estivesse tão ocupado e comprometido com as coisas de Deus que não consegue parar e ver Deus no mendicante à sua frente. Já encontrei gente tão preocupada em mandar outros para o céu, que acha perda de tempo parar e ouvir as histórias por trás dos farrapos humanos que perambulam pela cidade. Essas pessoas são gente boas, bem intencionadas. Elas vão à igreja, dão o dízimo e algumas até fazem viagens missionárias. Mas muitas vezes pergunto a mim mesmo se elas entenderam a espiritualidade de Jesus e a que Ele nos deixou como modelo.
Conclusão
Não, não quero que essas pessoas deixem de ir à igreja e muito menos de contribuir com missões e menos ainda de terem experiências missionárias. Mas não posso negar que gostaria de vê-las lendo a Bíblia numa perspectiva que as torne mais humanas, mais sensíveis, mais solidárias, especialmente com os mais vulneráveis. Sim, gostaria que se apropriassem do modelo de espiritualidade de Jesus que quanto mais tempo passava com o Pai em oração, mais o fazia aproximar-se dos párias do seu tempo. Sim, gostaria de vê-las servindo aos pobres com a mesma alegria, energia e entusiasmo com que cantam, dançam, ensinam e predicam. Sim, gostaria de vê-las usando suas habilidades e influência para a construção de uma sociedade onde predomine a defesa do direito do outro à vida, à dignidade e à liberdade. Afinal, mesmo tendo religiões diferentes e, às vezes, religião nenhuma, somos todos e todas humanos. Desta forma, irmanados e de mãos dadas, ninguém solta a mão de ninguém, porquanto, o que atinge a um, atinge solidariamente a todos.
• Maruilson Souza, doutor em educação teológica (Ph.D), secretário nacional de educação e programas do Exército de Salvação no Brasil e coordenador do 3º Simpósio Brasileiro de Justiça Social.
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