Opinião
- 17 de outubro de 2014
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Sola gratia
Rodrigo Mendoza, o mercador de escravos espanhol, do filme A Missão, de Roland Joffé, protagonizado por Robert De Niro, depois de matar seu próprio irmão por amar a mesma mulher que ele, se torna um noviço jesuíta e se une aos companheiros da ordem na missão entre os índios. O cenário é encantador: as cataratas de Foz do Iguaçu. A trilha sonora de Ennio Morricone embeleza o cenário com drama e suspense. Para chegar à missão, precisavam subir o rio e escalar as íngremes encostas. Movido pela culpa da morte de seu irmão, Rodrigo arrastava toda sua armadura embrulhada em uma bagagem de cordas amarrada ao seu corpo como forma de penitência. Após diversas tentativas e quedas para chegar ao topo, chegando ao final e diante do olhar atônito de seus companheiros, seus superiores, e dos índios aos quais, em outros tempos, tentou escravizar, está a ponto de exaustão. Nessa cena dramática e agonizante, um dos índios o reconhece e ameaça vingá-lo pela morte de seus parentes, porém, orientado pelo chefe da tribo, corta a corda que envolvia o seu corpo e lança rio abaixo a sua bagagem. Com isso, Rodrigo cai aos prantos totalmente surpreso por aquele gesto de perdão.
Sempre vi essa cena como uma magnífica representação moderna de uma verdade bíblica tão cara à tradição reformada, porém, tão difícil de ser vivida e praticada de forma plena: a graça, somente a graça.
Em sua luta contra as práticas abusivas das indulgências e o conceito de que a salvação depende das boas obras, os reformadores do século 16 defenderam a doutrina bíblica de que a salvação é somente pela graça. Não que a igreja cristã medieval não cresse e aceitasse que a salvação era pela graça. Pelo contrário, no final do século 4º, Agostinho e Jerônimo já combatiam veementemente a doutrina de Pelágio, que afirmava que a salvação do ser humano dependia estritamente das decisões do próprio indivíduo que nascera moralmente neutro e capaz de decidir por sua salvação. Agostinho, por outro lado, argumentava que o ser humano foi gerado em pecado e somente pela graça de Deus podia ser salvo. Em 418 d.C., no Concílio de Cartago, o “pelagianismo”, como ficou conhecida a doutrina, foi formalmente condenado como heresia pela igreja.
Mais do que defender a doutrina da salvação pela graça, os reformadores enfatizavam o sola, somente, pela graça. A grande diferença entre o ensino dos reformadores e as doutrinas e práticas da época foi o fato de afirmarem que a graça não requer boas obras para atender a exigência do perdão dos pecados. Os reformadores se firmaram em textos bíblicos que ensinam explicitamente a suficiência da graça para a salvação. Efésios 2.8-9, em particular, afirma a suficiência da graça: “Pois pela graça de Deus vocês são salvos por meio da fé. Isso não vem de vocês, mas é um presente dado por Deus. A salvação não é o resultado dos esforços de vocês; portanto, ninguém pode se orgulhar de tê-la” (NTLH).
No entanto, muito mais do que ver isso como um debate histórico e um legado dos reformadores, penso que a igreja cristã precisa a cada geração reafirmar sua convicção na graça, não só como meio de salvação, mas como meio de contínua convivência e comunhão na fé.
Vejo que o ensino da graça de Deus é fácil de entender e aceitar, mas difícil de vivenciá-lo. Apesar de nossa convicção da graça de Deus, boa parte de nossa pregação, ensino e prática religiosa é pautada na culpa. O sentimento de culpa e de ter de se acertar com Deus é a força propulsora de muitos ministérios. Pastores e líderes têm dificuldade de engajar pessoas na missão da igreja com a pregação da graça, por isso, introduzem à mensagem a culpa ou a recompensa como forma de obter apoio dos fiéis.
A igreja evangélica hoje se distancia do ensino da graça sempre que exige contrapartida das pessoas para a obtenção de um favor divino. Às vezes parece que estamos voltando à Era Medieval. O perdão é alcançado mediante obras e ofertas. Cada vez mais, vemos como a igreja evangélica cede às formas de religiosidade popular. Poucas igrejas cristãs evangélicas e protestantes admitiriam que as boas obras são essenciais ao alcance da graça, contudo, muitas sucumbem à prática da lógica das obras. Para alguns, a influência vem da lógica de mercado de uma sociedade consumista e materialista. Porém, penso que as tendências religiosas ou materiais adquirem força por causa do enfraquecimento da compreensão da graça.
Creio que começamos a compreender a graça quando somos capazes de servir a Deus - até mesmo sacrificialmente - em gratidão ao sacrifício de Cristo, e quando somos igualmente capazes de estender o perdão e a graça aos “nossos devedores”.
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Caminhos da graça
Sempre vi essa cena como uma magnífica representação moderna de uma verdade bíblica tão cara à tradição reformada, porém, tão difícil de ser vivida e praticada de forma plena: a graça, somente a graça.
Em sua luta contra as práticas abusivas das indulgências e o conceito de que a salvação depende das boas obras, os reformadores do século 16 defenderam a doutrina bíblica de que a salvação é somente pela graça. Não que a igreja cristã medieval não cresse e aceitasse que a salvação era pela graça. Pelo contrário, no final do século 4º, Agostinho e Jerônimo já combatiam veementemente a doutrina de Pelágio, que afirmava que a salvação do ser humano dependia estritamente das decisões do próprio indivíduo que nascera moralmente neutro e capaz de decidir por sua salvação. Agostinho, por outro lado, argumentava que o ser humano foi gerado em pecado e somente pela graça de Deus podia ser salvo. Em 418 d.C., no Concílio de Cartago, o “pelagianismo”, como ficou conhecida a doutrina, foi formalmente condenado como heresia pela igreja.
Mais do que defender a doutrina da salvação pela graça, os reformadores enfatizavam o sola, somente, pela graça. A grande diferença entre o ensino dos reformadores e as doutrinas e práticas da época foi o fato de afirmarem que a graça não requer boas obras para atender a exigência do perdão dos pecados. Os reformadores se firmaram em textos bíblicos que ensinam explicitamente a suficiência da graça para a salvação. Efésios 2.8-9, em particular, afirma a suficiência da graça: “Pois pela graça de Deus vocês são salvos por meio da fé. Isso não vem de vocês, mas é um presente dado por Deus. A salvação não é o resultado dos esforços de vocês; portanto, ninguém pode se orgulhar de tê-la” (NTLH).
No entanto, muito mais do que ver isso como um debate histórico e um legado dos reformadores, penso que a igreja cristã precisa a cada geração reafirmar sua convicção na graça, não só como meio de salvação, mas como meio de contínua convivência e comunhão na fé.
Vejo que o ensino da graça de Deus é fácil de entender e aceitar, mas difícil de vivenciá-lo. Apesar de nossa convicção da graça de Deus, boa parte de nossa pregação, ensino e prática religiosa é pautada na culpa. O sentimento de culpa e de ter de se acertar com Deus é a força propulsora de muitos ministérios. Pastores e líderes têm dificuldade de engajar pessoas na missão da igreja com a pregação da graça, por isso, introduzem à mensagem a culpa ou a recompensa como forma de obter apoio dos fiéis.
A igreja evangélica hoje se distancia do ensino da graça sempre que exige contrapartida das pessoas para a obtenção de um favor divino. Às vezes parece que estamos voltando à Era Medieval. O perdão é alcançado mediante obras e ofertas. Cada vez mais, vemos como a igreja evangélica cede às formas de religiosidade popular. Poucas igrejas cristãs evangélicas e protestantes admitiriam que as boas obras são essenciais ao alcance da graça, contudo, muitas sucumbem à prática da lógica das obras. Para alguns, a influência vem da lógica de mercado de uma sociedade consumista e materialista. Porém, penso que as tendências religiosas ou materiais adquirem força por causa do enfraquecimento da compreensão da graça.
Creio que começamos a compreender a graça quando somos capazes de servir a Deus - até mesmo sacrificialmente - em gratidão ao sacrifício de Cristo, e quando somos igualmente capazes de estender o perdão e a graça aos “nossos devedores”.
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Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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