Opinião
- 10 de junho de 2009
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Sociedade do glamour e ética da verdade
No invólucro fenomenológico deste cenário sociocultural, a verdade se transforma num “contravalor”: todos passam a viver uma grande farsa ao assumir sempre elementos da identidade alheia. Quanto mais se busca copiar os predicados da identidade do outro (sejam estes físicos, intelectuais e/ou morais), tanto mais se acirra a política da ganância, e mais se potencializa a cultura da falsidade (pseudos). O ego, nesta configuração sociomoral, sempre se dissolverá no alter (outro). A preservação da inviolável intransferibilidade das identidades individuais se menoscabará diante deste horizonte em que o do outro é sempre melhor e superior do que o meu.
O corolário psicológico desta realidade que se figura na epiderme cultural da sociedade do glamour pode ser descrito com e no fenômeno da “síndrome da holofotização”. Infelizmente, a “mentira de ser o que não se é” torna as pessoas cada vez mais aceitas e admiradas pelas qualidades que apresentam, mesmo que estas não sejam constitutivamente suas. Nela, muitas vezes, os aplausos recebidos têm um potencial hedônico de desculpabilização do “complexo de autorrejeição”.
Entretanto, quanto mais se configura uma ordem social marcada por esta política de falsificação das identidades, mais se potencializa a inviabilidade de se identificar a verdade da não-verdade. O joio é uma reprodução falsificada do trigo, mas é praticamente inviável querer separar um do outro. Na sociedade do glamour, a estrutura moral das interações sociais sempre invisibiliza os elementos axiológicos que tornam possíveis a identificação e a confirmação do verdadeiro e do não-verdadeiro. A metafísica do “bem” aí se converte na “ontologia do bom”. O Eros promove uma doença irrecuperável no ego: sua “variação interminável”. A beleza que gera prazer é a mesma usina fenomenológica que produz a feiúra ontológica do ego que se insere numa configuração de existência pautada na e pela plataforma da mentira.
Ora, a ética cristã contraria toda esta lógica instrumental da sociedade do glamour. Pois ela é “ética da verdade”. Do ponto de vista da fenomenologia da verdade, o “sim ontológico” nunca se dissolve no “não pré-ontológico”. Na interação do “ser e linguagem” (Martin Heidegger), a “aletheia” (verdade) só pode ser concebida e definida como “desocultação da realidade existente”, e nunca como sua expropriação. Por isso é impraticável pensar que haja “ambivalência do eu-moral” (Zygmunt Bauman) naquele que tem nela (verdade) seu suporte identitário de “autoafirmação ôntica” (Paul Tillich) assumido e consolidado.
Se vivêssemos integralmente “a verdade” como se preconiza no arcabouço ético da fé cristã, a “fome de matar” o outro (sintoma psicológico que nasce do complexo de autorrejeição em uma sociedade que glamouriza a “estética do belo” em vez da “ética da verdade”) perderia sua razão de ser. A autorrejeição parece ser sempre uma consequência da análise crítica das distintas competências existentes num mesmo espaço ontológico em que se afirma a notoriedade de uma cultura comportamental baseada na heterocomparatividade. Nesta, o self-antropológico só encontra “descanso psicológico” na projeção (hipostasiação) para a magnitude do outro compreendido como “negação de mim mesmo” (Ludwig Feuerbach). Eis aí a lei e os profetas.
É a partir do “complexo de autoinaceitação”, preconizado no ethos da sociedade do glamour, que poderemos compreender melhor a lógica pleonéxa que alimenta a vaidade do capitalismo de consumo. Precisamos sempre de um novo carro, de uma nova aparência estética, de um novo diploma, de um novo vestido, de um novo discurso, de uma nova casa, de uma nova identidade etc., para promover a pseudoafirmação (mentira) de quem não sou, mas que, persistentemente, quero ser. A sociedade do glamour tem um sobrenome, a saber: a sociedade da mentira. Nela, a conduta de um indivíduo irá revelar seu verdadeiro “apetite”, o que no texto hebraico da narrativa de Gênesis 4,7 é chamado de “pecado escondido” (robhêts ve’êleykha teshuqâtho).
Caminhar na fé cristã, entretanto, significa dar um basta nesta “fome de matar” produzida pela “síndrome da holofotização”, o que implica assumir um ethos que contradiga visceralmente toda a lógica instrumental da sociedade glamourizante, na qual o senso de “insuficiência ontológica” não mais gerará (nos indivíduos) um “complexo de autorrejeição” diante do outro. Viver a verdade na fé cristã significa viver “na verdade, com a verdade e para a verdade”; é aceitar o que se é em Cristo (crucificado para o mundo), e promover, com isso, a harmonização fenomenológica entre “o que se é e o que se diz ser” sob a circunstância da “holofotização do outro”.
• Anderson Clayton, casado, dois filhos, é doutor em teologia e doutorando em sociologia. É professor do Instituto Superior de Teologia Luterana e pastor colaborador na Igreja Confessional Luterana.
O corolário psicológico desta realidade que se figura na epiderme cultural da sociedade do glamour pode ser descrito com e no fenômeno da “síndrome da holofotização”. Infelizmente, a “mentira de ser o que não se é” torna as pessoas cada vez mais aceitas e admiradas pelas qualidades que apresentam, mesmo que estas não sejam constitutivamente suas. Nela, muitas vezes, os aplausos recebidos têm um potencial hedônico de desculpabilização do “complexo de autorrejeição”.
Entretanto, quanto mais se configura uma ordem social marcada por esta política de falsificação das identidades, mais se potencializa a inviabilidade de se identificar a verdade da não-verdade. O joio é uma reprodução falsificada do trigo, mas é praticamente inviável querer separar um do outro. Na sociedade do glamour, a estrutura moral das interações sociais sempre invisibiliza os elementos axiológicos que tornam possíveis a identificação e a confirmação do verdadeiro e do não-verdadeiro. A metafísica do “bem” aí se converte na “ontologia do bom”. O Eros promove uma doença irrecuperável no ego: sua “variação interminável”. A beleza que gera prazer é a mesma usina fenomenológica que produz a feiúra ontológica do ego que se insere numa configuração de existência pautada na e pela plataforma da mentira.
Ora, a ética cristã contraria toda esta lógica instrumental da sociedade do glamour. Pois ela é “ética da verdade”. Do ponto de vista da fenomenologia da verdade, o “sim ontológico” nunca se dissolve no “não pré-ontológico”. Na interação do “ser e linguagem” (Martin Heidegger), a “aletheia” (verdade) só pode ser concebida e definida como “desocultação da realidade existente”, e nunca como sua expropriação. Por isso é impraticável pensar que haja “ambivalência do eu-moral” (Zygmunt Bauman) naquele que tem nela (verdade) seu suporte identitário de “autoafirmação ôntica” (Paul Tillich) assumido e consolidado.
Se vivêssemos integralmente “a verdade” como se preconiza no arcabouço ético da fé cristã, a “fome de matar” o outro (sintoma psicológico que nasce do complexo de autorrejeição em uma sociedade que glamouriza a “estética do belo” em vez da “ética da verdade”) perderia sua razão de ser. A autorrejeição parece ser sempre uma consequência da análise crítica das distintas competências existentes num mesmo espaço ontológico em que se afirma a notoriedade de uma cultura comportamental baseada na heterocomparatividade. Nesta, o self-antropológico só encontra “descanso psicológico” na projeção (hipostasiação) para a magnitude do outro compreendido como “negação de mim mesmo” (Ludwig Feuerbach). Eis aí a lei e os profetas.
É a partir do “complexo de autoinaceitação”, preconizado no ethos da sociedade do glamour, que poderemos compreender melhor a lógica pleonéxa que alimenta a vaidade do capitalismo de consumo. Precisamos sempre de um novo carro, de uma nova aparência estética, de um novo diploma, de um novo vestido, de um novo discurso, de uma nova casa, de uma nova identidade etc., para promover a pseudoafirmação (mentira) de quem não sou, mas que, persistentemente, quero ser. A sociedade do glamour tem um sobrenome, a saber: a sociedade da mentira. Nela, a conduta de um indivíduo irá revelar seu verdadeiro “apetite”, o que no texto hebraico da narrativa de Gênesis 4,7 é chamado de “pecado escondido” (robhêts ve’êleykha teshuqâtho).
Caminhar na fé cristã, entretanto, significa dar um basta nesta “fome de matar” produzida pela “síndrome da holofotização”, o que implica assumir um ethos que contradiga visceralmente toda a lógica instrumental da sociedade glamourizante, na qual o senso de “insuficiência ontológica” não mais gerará (nos indivíduos) um “complexo de autorrejeição” diante do outro. Viver a verdade na fé cristã significa viver “na verdade, com a verdade e para a verdade”; é aceitar o que se é em Cristo (crucificado para o mundo), e promover, com isso, a harmonização fenomenológica entre “o que se é e o que se diz ser” sob a circunstância da “holofotização do outro”.
• Anderson Clayton, casado, dois filhos, é doutor em teologia e doutorando em sociologia. É professor do Instituto Superior de Teologia Luterana e pastor colaborador na Igreja Confessional Luterana.
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