Opinião
- 29 de junho de 2010
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Sobre as enchentes em Alagoas: um relato "in loco"
Paulo Nascimento
Hoje, 23 de junho, nos turnos da manhã e da tarde, eu e o pastor Wellington Santos visitamos as cidades de Branquinha e Murici, além da vila de Utinga, na zona rural de Rio Largo. Essas três localidades estão entre aquelas que foram devastadas pelas enchentes no estado de Alagoas. A princípio, a ideia era visitar nosso amigo pastor Sandoilson Régis em Murici. Mas ao encontrarmos esse amigo e sua família em tranquilidade, nosso itinerário se estendeu. Quando falo de tranquilidade em relação ao pastor Sandoilson e sua família, falo apenas do fato de sua residência não ter sido atingida pela enchente. Na verdade, a tranquilidade de sua família se traduzia em intranquilidade em relação ao povo de Murici, uma vez que encontramos aquele colega e sua esposa trabalhando duro para cuidar do povo atingido pela calamidade.
Eu gostaria de encontrar as palavras adequadas para descrever o que vimos, sobretudo em Branquinha e Murici. Fiquei com a impressão de que inefáveis não são somente aquelas experiências que chamamos de “experiências do Sagrado”. Há realidades humanas, mormente as de profunda calamidade coletiva, que também são inefáveis. Elas escapam a toda descrição, e é impossível que sejam ditas objetivamente. É impossível de serem ditas sem que nossos sentimentos não estejam embrenhados na tentativa de falar acerca delas. Falar delas é falar de nós.
O que se pode dizer é que a cobertura midiática não chega a dimensionar sequer superficialmente a situação. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens que se têm com os pés enterrados em 30 centímetros de lama. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens recheadas de diálogos com os moradores à cata de seus objetos domésticos nos escombros. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens que alimentam a ideia de que corpos estejam sob os escombros. Não se podem comparar as imagens da TV, seletivamente organizadas, com a impressão subjetiva da onipotência do caos.
As imagens da TV não conseguem transmitir a tonalidade surreal da situação “in loco”. Talvez porque a própria mídia seja especialista na banalização do caos, da guerra, da violência, das calamidades naturais etc. De tanto que nos acostumamos a conviver com essas cenas em filmes, novelas e nos outros subprodutos da TV, os flashes acerca das enchentes em Alagoas perdem em força imagética.
Minha amiga e estudante de psicologia, Juliana, tem dito repetidamente, e com muita razão, que a tragédia se avolumará, de fato, a partir de agora. As enchentes são somente o estopim de uma catástrofe muito maior. Eu, Wellington e Sandoilson pudemos perceber um pouquinho disso hoje em Murici. Tanto ali como em outros lugares, algumas escolas públicas foram transformadas em alojamento para as famílias desabrigadas. Não obstante, as condições sanitárias nesses ambientes são terrivelmente degradantes, já que a estrutura física dos prédios não foi projetada para esse fim. Em todas as comunidades atingidas falta água potável, energia elétrica, remédios e itens ligados à higiene pessoal. As famílias se amontoam nas salas de aula. O ano letivo dos estudantes está comprometido.
Nós nos interrogávamos acerca do fato de que se em Alagoas os processos políticos já não dão conta sequer da administração das demandas corriqueiras da “polis”, agora com todas essas super-demandas extras então...
E o nojo nos invadia só de pensar que provavelmente, nesse ano eleitoral, as enchentes vieram preparar um terreno hiper-fértil para candidatos que utilizarão sem dó as necessidades da população para comprar votos.
Falando nisso, eu não preciso repetir aqui o que os pastores Wellington Santos e Reginaldo Silva já disseram em outros textos: que a tragédia em Pernambuco e Alagoas não é natural, mas política.
Num texto clássico Freud dizia que nós, seres humanos, inventamos a religião para, entre outras coisas, aplacar o medo das forças intempestivas da natureza. O medo da morte, o desamparo diante da vida e a fragilidade diante das forças da natureza seriam os vetores na base da gênese da religião. Isso ele disse em 1927 no livro “O Futuro de uma Ilusão”. Não concordo! Se num passado remoto a religião foi a forma de enfrentamento do medo das forças da natureza, hoje não é mais.
Desde Francis Bacon – isto é, muito antes de 1927 – a natureza foi por nós dessacralizada. Desde Bacon ela deixou de ser “mãe de mil seios fartos”, para ser um espaço a ser dominado pela racionalidade e pela técnica. Isso em função do conforto das elites, não esqueçamos! O medo da natureza foi substituído por uma arrogância que se ancorava na possibilidade de desvelamento dos seus segredos mais íntimos. Conhecer para dominar. É a Bacon que devemos o adágio “saber é poder”. É verdade que se trata de um sonho fracassado. Nunca dominamos a natureza. Mas aprendemos a conviver com ela. A tirar proveito dela. A se adaptar aos seus ciclos indomáveis. Pelo menos para os ricos isso é verdade!
O pior é que aprendemos a usar a natureza ideologicamente. Fazemos isso de duas formas:
1. Para segregar os pequenos, os pobres, os imundos, a escória. São eles que habitam os morros e encostas. São eles que habitam as margens dos rios e os lugares mais insalubres de nossas cidades. Michel Foucault, em “Em Defesa da Sociedade”, nos falava da nefasta atitude política do “deixar morrer”, como forma alternativa com que o Estado Moderno trata as classes mais baixas. Como o genocídio tornou-se politicamente incorreto, a forma de “purificação” ou de acossamento dos impuros é o “deixar morrer”. São justamente os pobres aqueles que menos têm acesso à inteligência que melhor adéqua homem e natureza. A inteligência e racionalidade que produz projetos urbanísticos que poupam as populações das intempéries da natureza é privilégio dos ricos. Os pobres que se virem para enfrentar a natureza e seu poder maior.
2. Para ocultar a responsabilidade política do Estado frente às populações carentes. Num viés histórico-dialético, chamaríamos isso de discurso ideológico. O que me causa espanto é que pouca gente questiona o discurso de culpabilização da natureza. Se a culpa é da natureza, por que somente os pobres é que são vitimados? Teria a natureza alguma coisa contra os pobres? Se é “vontade de Deus”, por que Deus não despeja sua ira contra aqueles que confinam o povo na miséria? Haveria pecado maior que maltratar aqueles a quem Deus chamou de “minha imagem e semelhança”?
Mas a caminhada nas ruas de Branquinha e Murici não produziu somente torpor e impotência. A catástrofe também ajuda a ratificar a ambiguidade humana, o que acaba por produzir indignação. Nas ruas há gente que ajuda a limpar a cidade, e há gente que joga dominó e assiste a tudo. Há gente atolada no barro atrás de um pertence, e há gente querendo vender cartela do jogo do bicho a não sei quem. Há muita gente pobre que doa do seu pouco feijão, e há gente abastada que vende um pacote de velas por cinco reais. Há gente solidária com a dor de amigos e parentes, e há gente preocupada somente com o jogo entre Brasil e Portugal. Há gente de igreja que pragueja diante da situação, e há gente sem igreja que conta piada ao visitante de outra cidade.
Amanhã visitaremos outros amigos pastores em cidades no rastro das enchentes: União dos Palmares, São José da Laje e Santana do Mundaú. Nunca é demais lembrar a todos sobre as doações de donativos. O que o contato direto com as comunidades atingidas mostra é que alimentos e produtos de higiene são a prioridade agora. Procure um posto de doação em sua comunidade: igreja, escola etc. Para os amigos e amigas de outros estados, as doações em dinheiro, feitas a pessoas e instituições de confiança, são muito bem vindas.
Forte abraço, e não deixem de orar por todos os atingidos.
• Paulo dos Santos Nascimento, casado com Patrícia Nascimento, é pastor batista em Maceió, AL, há 4 anos e professor de Teologia Sistemática.
Siga-nos no Twitter!
Hoje, 23 de junho, nos turnos da manhã e da tarde, eu e o pastor Wellington Santos visitamos as cidades de Branquinha e Murici, além da vila de Utinga, na zona rural de Rio Largo. Essas três localidades estão entre aquelas que foram devastadas pelas enchentes no estado de Alagoas. A princípio, a ideia era visitar nosso amigo pastor Sandoilson Régis em Murici. Mas ao encontrarmos esse amigo e sua família em tranquilidade, nosso itinerário se estendeu. Quando falo de tranquilidade em relação ao pastor Sandoilson e sua família, falo apenas do fato de sua residência não ter sido atingida pela enchente. Na verdade, a tranquilidade de sua família se traduzia em intranquilidade em relação ao povo de Murici, uma vez que encontramos aquele colega e sua esposa trabalhando duro para cuidar do povo atingido pela calamidade.
Eu gostaria de encontrar as palavras adequadas para descrever o que vimos, sobretudo em Branquinha e Murici. Fiquei com a impressão de que inefáveis não são somente aquelas experiências que chamamos de “experiências do Sagrado”. Há realidades humanas, mormente as de profunda calamidade coletiva, que também são inefáveis. Elas escapam a toda descrição, e é impossível que sejam ditas objetivamente. É impossível de serem ditas sem que nossos sentimentos não estejam embrenhados na tentativa de falar acerca delas. Falar delas é falar de nós.
O que se pode dizer é que a cobertura midiática não chega a dimensionar sequer superficialmente a situação. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens que se têm com os pés enterrados em 30 centímetros de lama. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens recheadas de diálogos com os moradores à cata de seus objetos domésticos nos escombros. Não se podem comparar as imagens da TV com as imagens que alimentam a ideia de que corpos estejam sob os escombros. Não se podem comparar as imagens da TV, seletivamente organizadas, com a impressão subjetiva da onipotência do caos.
As imagens da TV não conseguem transmitir a tonalidade surreal da situação “in loco”. Talvez porque a própria mídia seja especialista na banalização do caos, da guerra, da violência, das calamidades naturais etc. De tanto que nos acostumamos a conviver com essas cenas em filmes, novelas e nos outros subprodutos da TV, os flashes acerca das enchentes em Alagoas perdem em força imagética.
Minha amiga e estudante de psicologia, Juliana, tem dito repetidamente, e com muita razão, que a tragédia se avolumará, de fato, a partir de agora. As enchentes são somente o estopim de uma catástrofe muito maior. Eu, Wellington e Sandoilson pudemos perceber um pouquinho disso hoje em Murici. Tanto ali como em outros lugares, algumas escolas públicas foram transformadas em alojamento para as famílias desabrigadas. Não obstante, as condições sanitárias nesses ambientes são terrivelmente degradantes, já que a estrutura física dos prédios não foi projetada para esse fim. Em todas as comunidades atingidas falta água potável, energia elétrica, remédios e itens ligados à higiene pessoal. As famílias se amontoam nas salas de aula. O ano letivo dos estudantes está comprometido.
Nós nos interrogávamos acerca do fato de que se em Alagoas os processos políticos já não dão conta sequer da administração das demandas corriqueiras da “polis”, agora com todas essas super-demandas extras então...
E o nojo nos invadia só de pensar que provavelmente, nesse ano eleitoral, as enchentes vieram preparar um terreno hiper-fértil para candidatos que utilizarão sem dó as necessidades da população para comprar votos.
Falando nisso, eu não preciso repetir aqui o que os pastores Wellington Santos e Reginaldo Silva já disseram em outros textos: que a tragédia em Pernambuco e Alagoas não é natural, mas política.
Num texto clássico Freud dizia que nós, seres humanos, inventamos a religião para, entre outras coisas, aplacar o medo das forças intempestivas da natureza. O medo da morte, o desamparo diante da vida e a fragilidade diante das forças da natureza seriam os vetores na base da gênese da religião. Isso ele disse em 1927 no livro “O Futuro de uma Ilusão”. Não concordo! Se num passado remoto a religião foi a forma de enfrentamento do medo das forças da natureza, hoje não é mais.
Desde Francis Bacon – isto é, muito antes de 1927 – a natureza foi por nós dessacralizada. Desde Bacon ela deixou de ser “mãe de mil seios fartos”, para ser um espaço a ser dominado pela racionalidade e pela técnica. Isso em função do conforto das elites, não esqueçamos! O medo da natureza foi substituído por uma arrogância que se ancorava na possibilidade de desvelamento dos seus segredos mais íntimos. Conhecer para dominar. É a Bacon que devemos o adágio “saber é poder”. É verdade que se trata de um sonho fracassado. Nunca dominamos a natureza. Mas aprendemos a conviver com ela. A tirar proveito dela. A se adaptar aos seus ciclos indomáveis. Pelo menos para os ricos isso é verdade!
O pior é que aprendemos a usar a natureza ideologicamente. Fazemos isso de duas formas:
1. Para segregar os pequenos, os pobres, os imundos, a escória. São eles que habitam os morros e encostas. São eles que habitam as margens dos rios e os lugares mais insalubres de nossas cidades. Michel Foucault, em “Em Defesa da Sociedade”, nos falava da nefasta atitude política do “deixar morrer”, como forma alternativa com que o Estado Moderno trata as classes mais baixas. Como o genocídio tornou-se politicamente incorreto, a forma de “purificação” ou de acossamento dos impuros é o “deixar morrer”. São justamente os pobres aqueles que menos têm acesso à inteligência que melhor adéqua homem e natureza. A inteligência e racionalidade que produz projetos urbanísticos que poupam as populações das intempéries da natureza é privilégio dos ricos. Os pobres que se virem para enfrentar a natureza e seu poder maior.
2. Para ocultar a responsabilidade política do Estado frente às populações carentes. Num viés histórico-dialético, chamaríamos isso de discurso ideológico. O que me causa espanto é que pouca gente questiona o discurso de culpabilização da natureza. Se a culpa é da natureza, por que somente os pobres é que são vitimados? Teria a natureza alguma coisa contra os pobres? Se é “vontade de Deus”, por que Deus não despeja sua ira contra aqueles que confinam o povo na miséria? Haveria pecado maior que maltratar aqueles a quem Deus chamou de “minha imagem e semelhança”?
Mas a caminhada nas ruas de Branquinha e Murici não produziu somente torpor e impotência. A catástrofe também ajuda a ratificar a ambiguidade humana, o que acaba por produzir indignação. Nas ruas há gente que ajuda a limpar a cidade, e há gente que joga dominó e assiste a tudo. Há gente atolada no barro atrás de um pertence, e há gente querendo vender cartela do jogo do bicho a não sei quem. Há muita gente pobre que doa do seu pouco feijão, e há gente abastada que vende um pacote de velas por cinco reais. Há gente solidária com a dor de amigos e parentes, e há gente preocupada somente com o jogo entre Brasil e Portugal. Há gente de igreja que pragueja diante da situação, e há gente sem igreja que conta piada ao visitante de outra cidade.
Amanhã visitaremos outros amigos pastores em cidades no rastro das enchentes: União dos Palmares, São José da Laje e Santana do Mundaú. Nunca é demais lembrar a todos sobre as doações de donativos. O que o contato direto com as comunidades atingidas mostra é que alimentos e produtos de higiene são a prioridade agora. Procure um posto de doação em sua comunidade: igreja, escola etc. Para os amigos e amigas de outros estados, as doações em dinheiro, feitas a pessoas e instituições de confiança, são muito bem vindas.
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