Opinião
- 09 de setembro de 2009
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Síndrome de aletofobia e cultura da repressão
Anderson Clayton
Vivemos num mundo que ainda se considera herdeiro da “filosofia da luzes” (Aufklärung). O horizonte atual, no entanto, se apresenta de modo um tanto problemático. Isto porque enquanto o discurso da modernidade arrogou para si a prerrogativa de querer libertar o ser humano da escura caverna em que a religião e a tradição no Ocidente o haviam colocado, a chamada pós-modernidade busca pacificar o horizonte conflituoso de coexistência dos diferentes mundos representados pelo discurso tanto da ciência quanto da religião: aquele representando os valores da comunidade epistêmica; este último, arvorando a estaca inquebrável das crenças subjetivas de uma “razão intuitiva” (Paul Tillich).
No ideal de “progresso”, a filosofia da cultura ocidental moderna preconizou sua vocação messiânica ao propor o caminho de superação da etapa “metafísica” para a “positiva”, julgando deter, com isso, o poder de produzir a libertação humana das superstições pretensamente impingidas no invólucro “teodoxográfico” da religião em seu suporte traditivo. O próprio René Descartes, um filósofo pré-iluminista, partiu do “princípio de que o conhecimento humano está sujeito às mais diversas ilusões, mas tem a obrigação de evitar que essas ilusões o desviem do caminho da verdade e o façam mergulhar no erro” (Ernst Cassirer).
A doutrina do “pecado original”, como sugeriu Cassirer, foi considerada um “obstáculo epistemológico”1 (e deveria ser combatida por isso) que poderia inviabilizar, caso não fosse malograda, o triunfo do ideal de progresso oriundo do espírito racional da “filosofia das luzes”. Ao buscar relativizar este dogma (pecado original), a filosofia do Aufklärung vicejou, na verdade, enaltecer o uso da “razão instrumental” quando esta se apropriou do método demonstrativo de uma racionalidade empírica para se afirmar como único modo de conceber, de forma válida e irrefutável (apodíctivo), as proposições aletográficas acerca do ser humano, das coisas e do mundo. A política de fomento à descoberta científica, com o claro objetivo de revelar a verdade acerca das coisas existentes, foi a marca indelével que caracterizou a cultura intelectual do mundo ocidental a partir do século 18.
Deste modo, temos em nosso horizonte analítico uma tese que consiste na afirmação de uma “verdade necessária” que possa dar subsídio hermenêutico para se fazer manutenção de um ideal racional de existência que se processa sob os predicados da razão que verifica e demonstra o que está por trás do “buraco da fechadura”.
O fato é que o mundo mudou. A questão é saber quais os desdobramentos desta mudança que ainda estão se processando em termos axiológicos.
É bem verdade que a disposição cognitiva de desautorização epistemológica das “verdades centrais” da fé cristã no Ocidente continua sendo a mesma que se percebia na filosofia do século 18. Jürgen Habermas acena para a morte do cristianismo (uma das grandes ideologias do Ocidente que naufragou nos tempos modernos) como um acontecendo histórico que tipifica a irrupção de uma “era pós-metafísica”.
Não é difícil relacionar a pulverização moral dos “valores axiológicos” provenientes da tradição judaico-cristã à derrocada da religião no mundo moderno, conforme nos assinalou a cientista política Hannah Arendt. A deseticização do ethos societário, claramente sugestionada através dos construtos “vida líquida” e “morte do ético” (Zygmunt Bauman), está relacionada diretamente aos declínios da religião cristã e da etologia que a partir dela se tradificou no Ocidente. Mas a política de uma cultura de repressão sempre esteve presente na civilização cristã-ocidental. Isto pode ser inferido afirmativamente, de acordo com Marcuse, do aforismo cristão: “No princípio era o Logos”, e não o Eros...
Ora, a desenvoltura psicocognitiva do “eu-reflexivo” em sua interação com a realidade social é uma variável sociológica que se verifica crescente no contexto de um processo de “destradiconalização” (Anthony Giddens) que vem acontecendo nas sociedades ocidentais como um todo. Nele, os postulados de uma “secularização subjetiva” (Peter Berger)2 fincam sua estaca ao buscar uma racionalização prospectiva da pretensão mundana de querer fazer da terra um paraíso de gozo atemporal, mesmo sem o endosso teológico da tradição religiosa.
É neste princípio de plausibilização política do Eros que a modernidade líquida (ou pós-modernidade) deu ensejo para se legitimar a engenharia da síndrome aletofóbica.
Há dois horizontes hermenêuticos que se figuram na psicologia humana no mundo pós-freudiano: o do tanatos e o do Eros. No primeiro, a racionalidade do “medo de privação” produz instinto de morte para morte. A neurose é o excedente patológico (negativo) revelado na psicologia de confronto entre a “potência volitiva” de um pessoa e a “cultura de repressão” que priva sua operacionalização (Paul Lawrence Assoun); no segundo, a racionalidade da “entrega ao desejo” (síndrome de consumismo) produz coragem de romper com os tabus que pretendem obliterar o horizonte hedônico da psicologia de “gratificação imediata”.
A síndrome de aletofobia3 não pode ser pensada sem que ela seja, antes de tudo, lida à luz do conceito de “medo de alienação do ego”. Porque temos medo da verdade? E porque optamos pela mentira?
Na estrutura psíquica do medo derivado, o senso de vulnerabilidade ontológica acaba despotenciando a “insaciabilidade” (pleonexia) de um ego (pós-religioso) não mais feito refém da cultura de repressão. A política de transgressão do ego, no entanto, justifica sua legitimidade na operacionalização do “desejo de consumir o não permitido” (erofania), o qual procura sua “imunidade ontológica” na sociedade da total permissividade. O fenômeno da destradiconalização mencionado acima não somente valida a “morte do ético” como fato inconteste que transcorre na sociedade do prazer, como também gera a demanda moral pela busca de caminhos que tornem sua ambição de consumo factível e irrevogável.
Vivemos num mundo que ainda se considera herdeiro da “filosofia da luzes” (Aufklärung). O horizonte atual, no entanto, se apresenta de modo um tanto problemático. Isto porque enquanto o discurso da modernidade arrogou para si a prerrogativa de querer libertar o ser humano da escura caverna em que a religião e a tradição no Ocidente o haviam colocado, a chamada pós-modernidade busca pacificar o horizonte conflituoso de coexistência dos diferentes mundos representados pelo discurso tanto da ciência quanto da religião: aquele representando os valores da comunidade epistêmica; este último, arvorando a estaca inquebrável das crenças subjetivas de uma “razão intuitiva” (Paul Tillich).
No ideal de “progresso”, a filosofia da cultura ocidental moderna preconizou sua vocação messiânica ao propor o caminho de superação da etapa “metafísica” para a “positiva”, julgando deter, com isso, o poder de produzir a libertação humana das superstições pretensamente impingidas no invólucro “teodoxográfico” da religião em seu suporte traditivo. O próprio René Descartes, um filósofo pré-iluminista, partiu do “princípio de que o conhecimento humano está sujeito às mais diversas ilusões, mas tem a obrigação de evitar que essas ilusões o desviem do caminho da verdade e o façam mergulhar no erro” (Ernst Cassirer).
A doutrina do “pecado original”, como sugeriu Cassirer, foi considerada um “obstáculo epistemológico”1 (e deveria ser combatida por isso) que poderia inviabilizar, caso não fosse malograda, o triunfo do ideal de progresso oriundo do espírito racional da “filosofia das luzes”. Ao buscar relativizar este dogma (pecado original), a filosofia do Aufklärung vicejou, na verdade, enaltecer o uso da “razão instrumental” quando esta se apropriou do método demonstrativo de uma racionalidade empírica para se afirmar como único modo de conceber, de forma válida e irrefutável (apodíctivo), as proposições aletográficas acerca do ser humano, das coisas e do mundo. A política de fomento à descoberta científica, com o claro objetivo de revelar a verdade acerca das coisas existentes, foi a marca indelével que caracterizou a cultura intelectual do mundo ocidental a partir do século 18.
Deste modo, temos em nosso horizonte analítico uma tese que consiste na afirmação de uma “verdade necessária” que possa dar subsídio hermenêutico para se fazer manutenção de um ideal racional de existência que se processa sob os predicados da razão que verifica e demonstra o que está por trás do “buraco da fechadura”.
O fato é que o mundo mudou. A questão é saber quais os desdobramentos desta mudança que ainda estão se processando em termos axiológicos.
É bem verdade que a disposição cognitiva de desautorização epistemológica das “verdades centrais” da fé cristã no Ocidente continua sendo a mesma que se percebia na filosofia do século 18. Jürgen Habermas acena para a morte do cristianismo (uma das grandes ideologias do Ocidente que naufragou nos tempos modernos) como um acontecendo histórico que tipifica a irrupção de uma “era pós-metafísica”.
Não é difícil relacionar a pulverização moral dos “valores axiológicos” provenientes da tradição judaico-cristã à derrocada da religião no mundo moderno, conforme nos assinalou a cientista política Hannah Arendt. A deseticização do ethos societário, claramente sugestionada através dos construtos “vida líquida” e “morte do ético” (Zygmunt Bauman), está relacionada diretamente aos declínios da religião cristã e da etologia que a partir dela se tradificou no Ocidente. Mas a política de uma cultura de repressão sempre esteve presente na civilização cristã-ocidental. Isto pode ser inferido afirmativamente, de acordo com Marcuse, do aforismo cristão: “No princípio era o Logos”, e não o Eros...
Ora, a desenvoltura psicocognitiva do “eu-reflexivo” em sua interação com a realidade social é uma variável sociológica que se verifica crescente no contexto de um processo de “destradiconalização” (Anthony Giddens) que vem acontecendo nas sociedades ocidentais como um todo. Nele, os postulados de uma “secularização subjetiva” (Peter Berger)2 fincam sua estaca ao buscar uma racionalização prospectiva da pretensão mundana de querer fazer da terra um paraíso de gozo atemporal, mesmo sem o endosso teológico da tradição religiosa.
É neste princípio de plausibilização política do Eros que a modernidade líquida (ou pós-modernidade) deu ensejo para se legitimar a engenharia da síndrome aletofóbica.
Há dois horizontes hermenêuticos que se figuram na psicologia humana no mundo pós-freudiano: o do tanatos e o do Eros. No primeiro, a racionalidade do “medo de privação” produz instinto de morte para morte. A neurose é o excedente patológico (negativo) revelado na psicologia de confronto entre a “potência volitiva” de um pessoa e a “cultura de repressão” que priva sua operacionalização (Paul Lawrence Assoun); no segundo, a racionalidade da “entrega ao desejo” (síndrome de consumismo) produz coragem de romper com os tabus que pretendem obliterar o horizonte hedônico da psicologia de “gratificação imediata”.
A síndrome de aletofobia3 não pode ser pensada sem que ela seja, antes de tudo, lida à luz do conceito de “medo de alienação do ego”. Porque temos medo da verdade? E porque optamos pela mentira?
Na estrutura psíquica do medo derivado, o senso de vulnerabilidade ontológica acaba despotenciando a “insaciabilidade” (pleonexia) de um ego (pós-religioso) não mais feito refém da cultura de repressão. A política de transgressão do ego, no entanto, justifica sua legitimidade na operacionalização do “desejo de consumir o não permitido” (erofania), o qual procura sua “imunidade ontológica” na sociedade da total permissividade. O fenômeno da destradiconalização mencionado acima não somente valida a “morte do ético” como fato inconteste que transcorre na sociedade do prazer, como também gera a demanda moral pela busca de caminhos que tornem sua ambição de consumo factível e irrevogável.
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