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Opinião

Shazam: teologia e diversão para todos os públicos

Por Carlos Caldas

Quando era criança, no início dos anos de 1970, minha única tia materna me apresentou um super-herói de histórias em quadrinhos chamado Capitão Marvel. O encantamento com aquelas histórias foi imediato. Hoje, recordando esta passagem da minha infância, consigo entender que eram histórias com enredos muito simples e superficiais. Mas não podia ser diferente. Afinal, o Capitão Marvel era uma história de super-heróis para crianças, e atingia bem seus objetivos. O personagem foi criado em 1939 – há exatos 80 anos – a chamada “Era de Ouro” dos quadrinhos, e fez sua estreia nos quadrinhos no ano seguinte. Detalhe importante: os direitos do personagem pertenciam originalmente à Fawcett Comics, que mais tarde foi comprada pela DC.  O Capitão Marvel fez tanto sucesso que por um tempo vendeu mais revistas que o próprio Superman. Em “Elvis and Gladys”, a biógrafa Elaine Dundy diz que o Capitão Marvel era o super-herói favorito de Elvis Presley, a ponto de, quando adulto e famoso, usar uma capa em suas apresentações, tal como seu herói predileto. 
 
Uma síntese da história da primeira origem do Capitão Marvel nos quadrinhos: Billy Batson é um menino que, pela bondade e pureza do seu coração, é escolhido para receber os poderes do Mago Shazam, um antigo guardião da humanidade, tornando-se o herdeiro de poderes extraordinários que lhe seriam conferidos se pronunciasse o seu nome que na verdade é um acróstico – cada letra é a inicial de um herói que simboliza uma virtude ou característica especial:
 
S – Salomão (sabedoria)
H – Hércules (força)
A – Atlas (resistência)
Z – Zeus (poder de controlar raios elétricos)
A – Aquiles (coragem e invulnerabilidade)
M – Mercúrio (velocidade, incluindo o poder de voar)
 
Billy Batson se torna assim “o mortal mais poderoso da Terra”. Mais tarde, por questões jurídicas, a DC foi proibida de usar o nome “Capitão Marvel” – de fato, não faz o menor sentido ter um herói com o nome da maior concorrente – e o personagem passou a ser conhecido apenas como Shazam. O herói andou sumido muito tempo, um tanto eclipsado por nomes bem mais conhecidos como Mulher Maravilha, Batman, Superman, Aquaman e Lanterna Verde. No recente (2011) recomeço da DC conhecido como “Novos 52”, o Shazam voltou, com sua origem ligeiramente modificada: Billy Batson não é mais um menino, mas um adolescente de uns 15 anos, órfão de pais vivos (o pai abandonou a mãe quando o menino nasceu, e a mãe, completamente desnaturada, entregou o filho à própria sorte, sem ao menos se preocupar com o que aconteceria com um menino de uns cinco anos sozinho no mundo), que vive mudando de um lar adotivo para outro, obcecado pela ideia de reencontrar sua mãe, de quem foi separado há pelo menos dez anos. O filme de David Sandberg segue a narrativa de origem do personagem conforme a versão dos Novos 52. 
 
O filme é alegre e divertido. Nada daquele tom pesado e dark dos filmes do Chris Nolan (trilogia do Batman), nada de sombrio e depressivo. Muito pelo contrário. Shazam é o tipo de filme que a gente assiste e sai do cinema “pra cima”, sentindo-se leve e bem. É um filme muito “Sessão da Tarde”.
 
Billy Batson, na narrativa de Sandberg, não é o menino idealizado da década de 1940, mas também não é mau nem perverso. Curiosamente o filme começa contando a história de outro menino, por nome Thaddeus, que, embora viva com o pai, não é aceito nem por este nem pelo irmão mais velho. O menino Thaddeus Bodog Sivana (quando os quadrinhos do então Capitão Marvel começaram a ser publicadas no Brasil os editores brasileiros optaram por acrescentar um “l” ao nome, transformando-o no “Dr. Silvana”, inspiração para o nome “Dr. Silvana & Cia.”, banda de rock carioca dos anos de 1980) também foi testado pelo Mago Shazam, mas não resistiu à tentação de obter poder proveniente dos “sete inimigos mortais da humanidade”: sete demônios que são representações dos sete pecados capitais da tradição cristã medieval – orgulho, inveja, cobiça, ira, preguiça, glutonaria e lascívia. No filme, o demônio/pecado da inveja é apresentado como o pior de todos, mas nos quadrinhos da primeira fase do Capitão Marvel esta posição pertence ao orgulho, refletindo desta maneira o ensino de Agostinho, que entendia ser o orgulho o pior e o principal de todos os pecados. Vê-se aí que os quadrinhos se inspiram na tradição teológica tomista medieval: Tomás de Aquino tomou a ética de Aristóteles como base, e “batizou-a”, por assim dizer, dando-lhe roupagem cristã. Quando os quadrinhos do Shazam e, agora, o filme, apresentam pecados como inimigos da humanidade, eles estão explicitamente fazendo teologia. É bem verdade que é uma teologia que pode ser contestada, pois apresenta os humanos como meros fantoches dos demônios que controlam aqueles pecados. Uma teologia com uma sintonia melhor com o material bíblico reconhecerá que o ser humano tem em si a responsabilidade pelo pecado cometido, não sendo apenas joguete de forças do mal. Mas não se pode negar que as histórias do Shazam são as mais abertamente teológicas de todas. 
 
Zachary Levi está simplesmente perfeito no papel de Shazam. Ele não consegue esconder o entusiasmo que sentiu ao encarnar o herói. Faz caras e bocas o tempo todo, mas de um jeito tão natural que não atrapalhou em nada. Bem diferente, por exemplo, do recente Capitã Marvel, em que se via nitidamente que Brie Larson não estava muito à vontade ao interpretar a personagem título. Jack Dylan Grazer, que faz Freddy Freeman, o irmão hemiplégico adotivo de Billy Batson também tem uma interpretação magnífica: ele é chato, “mala”, mas carismático ao mesmo tempo. Aliás, todo o elenco mirim está muito bem no filme. Ainda quanto ao quesito atuação, não gostei do Mark Strong (que fez o Sinestro, no filme fracassado do Lanterna Verde, de 2011) como o Dr. Sivana, nem de Djimon Hounsou no papel do Mago Shazam. Nas poucas cenas em que apareceu, Hounsou não conseguiu transmitir a solenidade e o aspecto grave do Mago nos quadrinhos. 
 
O filme carregou muito no tom comédia, chegando a ser pastelão em alguns momentos, fazendo lembrar alguns quadros dos Trapalhões da década de 1970. Mas algumas piadas são simplesmente hilariantes, muito bem pensadas. Piadas leves, sem apelação em qualquer sentido. Pode-se dizer que o filme quase não se leva a sério. O uniforme do Shazam é brega ao extremo, é visível que Levi está usando enchimentos para dar impressão de ser musculoso, mas tudo funciona bem no filme. Outro destaque a ser feito é que o filme está repleto de easter eggs, aquelas referências engraçadas a outros filmes, além de homenagens a filmes que não pertencem ao universo da DC: Quero ser grande, o clássico com Tom Hanks, que fala exatamente de um menino em corpo de adulto, e o primeiro Rocky, que lançou Sylvester Stallone ao estrelato. 
 
Mas o filme tem seus problemas. Um deles é que há muita ênfase às características físicas que Billy Batson adquire quando invoca o nome do mago e se transforma no super-herói, enquanto a sabedoria, um atributo intelectual, é simplesmente deixada de fora. Nos quadrinhos, quando Billy se transforma ele para de pensar como um menino. Afinal, ele passa a ter a sabedoria de Salomão. No filme, o Shazam continua com a mente de um adolescente e, o que é pior, algumas vezes um adolescente bobo, tão bobo que seu irmão adotivo Freddy tem que chamar a sua atenção. 
 
Não obstante, o filme passa muitas mensagens bonitas. Uma delas está no fato de Billy aprender a famosa lição que o Tio Ben deu ao seu sobrinho Peter Parker: “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. Na linguagem bíblica, “a quem muito foi dado, muito lhe será exigido” (Lc 12.48). E para Billy, ser um super-herói não é um fardo ou uma maldição, antes, é uma bênção. Outra mensagem importante do filme está no fato que o Shazam não é egoísta. Já no final do filme, diante da mesma tentação que anos antes derrotou Thaddeus Sivana, Billy Batson, no corpo do Shazam, vence, e reparte seus poderes com seus irmãos e irmãs de adoção (curiosamente, cada um de uma etnia). Surge assim a Família Marvel, ou melhor, Família Shazam, que é parte integrante e importante da mitologia do herói nos quadrinhos. Billy não age na base do “quanto mais tem, mais quer”, da música “João Ninguém” da Rita Lee. Naquela que talvez seja a frase mais importante de todo o filme, Billy Batson/Shazam diz: “para que servem os poderes se estes não podem ser compartilhados?”. E não se pode jamais deixar de mencionar outra mensagem preciosa e poderosa que o filme transmite: o que importa não é o que fazem com você, mas o que você faz com o que fizeram com você. Billy e Thaddeus sofreram rejeição na infância. Poucas dores podem ser piores que a da rejeição, ainda mais ser rejeitado por qualquer um dos pais, ou por ambos. Thaddeus cresceu amargurado, revoltado, ressentido, cheio de ódio e desejo de vingança. Billy cresceu sem permitir que estes “demônios” o dominassem. Ele não se coloca no lugar de vítima, nem quer vingança. Quando finalmente se encaixa em sua família adotiva, ele mostra que família não é necessariamente feita por laços de sangue, mas por laços de amor. Jesus ensinou esta verdade, quando disse que sua mãe, seu irmão e sua irmã é todo aquele e toda aquela que faz a vontade do Pai celeste (Mt 12.46-50; Mc 3.31-35; Lc  8.19-21). 
 
Enfim, vale a pena ver o filme, que além de descontraído, apresenta pela via da superaventura, temas relevantes da fé cristã.
 
• Carlos Caldas é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
 
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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