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Opinião

Seis princípios cristãos para tempos de crise política

Escrevemos no dia pós-votação (da abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff) na Câmara dos Deputados. Tudo indica que ela representará não o fim da crise política, mas uma etapa a mais numa crise que está longe do seu fim. Portanto, alguns princípios cristãos que temos mencionado em palestras nos últimos meses continuam pertinentes.

Primeiro princípio: Mais importante do que saber qual posição adotar, é saber como se comportar
Neste momento em que a política ameaça dilacerar o mundo cristão (talvez mais do que a sociedade como um todo), queremos sugerir alguns princípios para o debate político. Esses princípios levam em conta que “este momento passará” e que dentro de alguns anos os cristãos não terão mais de se posicionar sobre Dilma, Lula, Cunha, Aécio e Sérgio Moro, mas ainda terão de conviver entre si como irmãos na fé e dar à sociedade um exemplo de seriedade e sabedoria. Daí a importância de cultivar o “pluralismo político natural da comunidade cristã”, de saber debater e discordar sem se excomungar mutuamente ou distorcer as motivações alheias, lembrando que a política, embora muito séria, pertence ao reino do relativo, e não do absoluto; à esfera das convicções, mas não (com raras exceções) à esfera das doutrinas básicas da fé.

Segundo princípio: Cultivar o recato político cristão
Em matéria de política, o cristianismo se caracteriza por um certo recato, uma certa hesitação, um não-dogmatismo, um amplo espaço livre de discordância legítima entre os cristãos.

Esse recato vem em parte das origens históricas da fé. Alguns contrastes com o islã nos ajudam a entender o que isso significa. O fundador do islã governou um estado; o fundador do cristianismo foi morto pelo estado. Os seguidores do primeiro gozaram de poder político desde o começo: controlavam um território, implementavam leis e usavam a força. Os seguidores do segundo passaram trezentos anos sem poder político, como uma comunidade voluntária, transnacional e transétnica. Foi nesse período que as Escrituras normativas foram escritas. Por isso, o cristianismo, via de regra, tem menos “autoconfiança” política do que o islã, se sente menos à vontade para exercer o poder em nome de Deus ou dar “receitas” políticas em nome da fé.

Além disso, o conceito cristão de revelação é que Deus se revelou ao longo do tempo, de várias maneiras e em circunstâncias muito diversas, culminando na encarnação do Filho de Deus. Não só o mundo bíblico é muito distante do nosso mundo, como também houve vários mundos bíblicos. O Novo Testamento foi escrito para a comunidade cristã primitiva, que era um pequeno grupo transnacional, sem controle de um território, sem acesso ao poder político e sem possibilidade de criar legislação pública. Quem tenta criar uma “política cristã” só do Novo Testamento logo esbarra com esse problema de um certo vazio político, sobretudo num contexto democrático em que os cidadãos são convocados a participar da constituição das autoridades. Daí que a posição “default” do cristianismo primitivo é a distância da política.

Por outro lado, o Antigo Testamento, escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com as questões de território, lei, poder e força, tem de ser lido à luz da revelação cabal de Deus em Cristo. Nenhum país hoje, por mais cristãos que tenha, está na situação do Israel do Antigo Testamento. Por isso, a política cristã é sempre “menos segura de si” do que (por exemplo) a maioria das abordagens islâmicas.

Além disso, a política é, como se diz, a “arte do possível” e os fenômenos políticos de uma sociedade moderna são muito complexos. O resultado disso é que duas pessoas que tirem os mesmos princípios políticos da Bíblia podem, mesmo assim, discordar radicalmente sobre o que é possível e aconselhável fazer hoje no Brasil.

Jesus nos avisou a ter “cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mt 16.6). Embora diferentes entre si, ambos os grupos absolutizavam o que deveria ser relativizado à luz de Cristo. Hoje, um exemplo do “fermento dos fariseus e saduceus” é colocar a fé cristã a serviço de uma determinada posição política. Essa politização da identidade é desastrosa para a igreja, e é idólatra, absolutizando as nossas opiniões relativas e colocando-as no mesmo patamar das doutrinas centrais da fé.

Terceiro princípio: Distinguir os debates
Hoje, pelo menos quatro questões se embaralham e a não separação delas dificulta os debates:

a) se a presidente Dilma merece sofrer impeachment; b) sobre a corrupção como problema generalizado na política brasileira; c) preferências partidárias e quem gostaríamos de ver no poder; d) questões ideológicas maiores (neoliberalismo, neoconservadorismo, social-democracia, socialismo etc.).

Quarto princípio: Evitar o maniqueísmo e reconhecer as muitas posições possíveis
Não existem apenas duas posições (a favor ou contra o impeachment). Estar preocupado com os procedimentos falhos (no Congresso e nas investigações) não é o mesmo que defender este ou aquele acusado. É perigoso aceitar um processo muito falho só porque os atingidos são os nossos desafetos políticos.

Em parte, os problemas decorrem de um desencontro entre presidencialismo e parlamentarismo. Num sistema parlamentarista, a primeira-ministra Dilma cairia por um simples “voto de não confiança”, sem necessidade de impeachment. Como o presidencialismo não contempla essa possibilidade, recorre-se ao mecanismo constitucional do impeachment. No entanto, abre-se um precedente perigoso, pois esse mecanismo se destina a situações excepcionais, e não a um simples expediente para remover mandatários impopulares.

Dadas as complexidades do atual processo, devemos reconhecer as múltiplas posturas possíveis no interior da comunidade cristã. E devemos procurar nos inteirar dos “melhores argumentos” do outro lado, em vez de acreditar nas caricaturas divulgadas por boa parte da mídia.

Quinto princípio: Passar do moralismo simplista na perspectiva cristã da corrupção
Para cristãos que entendem pouco de política, a corrupção se apresenta como uma questão política aparentemente fácil de entender, pela transferência de valores morais pessoais à esfera pública. Políticos espertos, inclusive cristãos, se aproveitam disso para tentar mobilizar suas bases e justificar sua própria presença nos parlamentos. Mas a visão cristã sobre a corrupção é muito mais sofisticada do que isso. Dois aspectos se destacam. Primeiro, a visão cristã da natureza radical do pecado, que afeta não só todos os indivíduos, mas também todos os grupos e instituições, inclusive igrejas e partidos políticos, “sem exceção”. Os cristãos é que deveriam ser menos suscetíveis a qualquer messianismo em torno de pessoas ou partidos; e os cristãos é que menos deveriam se surpreender com os inevitáveis desapontamentos. E, em segundo lugar, o cristianismo oferece uma visão equilibrada entre a renovação individual e a renovação institucional. A corrupção se relaciona tanto com instituições quanto com fatores culturais, e essas duas renovações se fortalecem mutuamente no combate à corrupção. A redução substancial da corrupção é obra de muito tempo, e em várias frentes.

Porém há mais. A “comunhão” universal humana no pecado é uma das grandes justificativas da democracia; ninguém merece ter poderes ilimitados e não supervisionados sobre seus semelhantes. E também é um dos principais argumentos pela preocupação política com as gritantes desigualdades sociais. A fé cristã é realista: onde houver desigualdade, haverá opressores e oprimidos. Por isso, amar o próximo inclui o esforço para enfraquecer as estruturas desiguais que engendram a opressão.

Isso nos ajuda a entender o fato de que o combate à corrupção é uma causa política que mobiliza muito mais a classe média do que os mais pobres. Não que estes não reprovem a corrupção nem entendam a sua importância (afinal, os mais pobres sofrem mais com quase todas as formas de injustiça). Mas, na escala de prioridades políticas das pessoas mais desvalidas da sociedade, o assunto não tem a mesma proeminência. Para elas, ainda que a corrupção seja abominada, há mazelas ainda maiores a serem enfrentadas.

A visão cristã do mundo também nos ajuda a lembrar que já estivemos aqui antes (em 1992). A campanha anticorrupção é extremamente necessária, mas não resolverá o problema de uma vez por todas, e certamente será aproveitada para outros fins políticos e econômicos.

Qualquer melhora resultante será apenas temporária se não houver reformas políticas, sobretudo dos sistemas eleitoral e partidário. O sistema eleitoral de representação proporcional com listas abertas é responsável por parte considerável da corrupção política brasileira. (É responsável também pelas grandes “bancadas evangélicas”, o que significa que os políticos evangélicos dificilmente terão um papel construtivo no combate à corrupção.) E a proliferação de partidos no Congresso piora o problema. Não é tirando fulano e botando sicrano que vai resolver.

Sexto princípio: Saber distinguir entre um ideal e seu portador
Todos os projetos humanos acabam desapontando, seja movimento ou partido ou igreja. Mas a desilusão com o portador de um ideal não precisa levar ao abandono do ideal em si (assim como a desilusão com determinada igreja não precisa levar ao abandono da fé cristã). É preciso saber criticar e, se necessário, abandonar o portador, sem necessariamente rejeitar o ideal que dizia representar. (Existem, é claro, ideais totalmente irrealistas, os quais desapontarão vez após vez; estes devem ser abandonados. Um ideal maduro, por outro lado, é potencialmente realizável e, ademais, consegue explicar o próprio desapontamento.)

No meio cristão, a tarefa de distinguir entre ideal e portador enfrenta outra dificuldade: o uso tendencioso da palavra “ideologia” como palavrão para criticar os nossos adversários políticos. “Eles” são “ideológicos”; “nós” não somos.

Curiosamente, esse uso tendencioso lembra o marxismo (ideologia como falsa consciência que os outros têm). Muito melhor adotar o uso de outras correntes das ciências sociais e dizer que todos nós temos as nossas ideologias, pelo mero fato de sermos seres humanos inseridos em determinado lugar social, com limitações e interesses. Nenhum de nós tem o “olhar de Deus”.

Hoje, enfrentamos duas tentações: a de rejeitar um ideal porque o portador decepcionou; e a de agarrarmo-nos ao portador porque achamos que a sobrevivência do ideal o exige. Ou, para mudar a analogia: a tentação de jogar fora o bebê com a água suja do banho; e a tentação de querer preservar a água suja junto com o bebê.

É importante neste momento não abrir mão de ideais políticos perfeitamente compatíveis com a Bíblia e, aliás, recomendados pela Bíblia, como a justiça e a solidariedade; a priorização dos mais fracos e necessitados para diminuir a extrema desigualdade; o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da antropologia cristã como do caráter de Deus expresso na maneira como trata a humanidade desde o começo, e a maneira como trata a humanidade reconstituída em Cristo (sintetizado na frase de Gálatas 3.28: “Em Cristo não há homem nem mulher, judeu nem grego, escravo nem livre”); e a rejeição da idolatria tanto do Estado quanto do mercado (parafraseando Marcos 2.27: “O ser humano não foi feito para o sábado/Estado/mercado, mas sim o sábado/Estado/mercado para o ser humano”).

Ser cristão significa não se curvar diante de modismos. A história dá muitas voltas e quem subordina sua leitura da fé a consensos sociais passageiros, a supostas “lições claras da história”, descobrirá um dia que essa leitura ficou estranhamente datada. Por isso, devemos afirmar a importância do pluralismo político cristão, em que alguns serão mais de direita, outros mais de esquerda, mas nunca desprezando ou excomungando aqueles de quem discordamos politicamente.

Nota: Artigo publicado originalmente na revista Ultimato, edição 360, maio/junho.

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• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

• Raphael Freston
é mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo.

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