Opinião
- 19 de janeiro de 2024
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Saúde mental e comunidade cristã
Por Karen Bomilcar
O desejo por saúde e integralidade é intrínseco ao coração humano e manifesta-se na busca pela preservação e prolongamento da vida. As pessoas empreendem diversos meios para alcançar esse ideal, considerado por alguns como um produto ou uma propriedade. Essa busca também se reflete no contexto da comunidade cristã, no qual as pessoas se aproximam com a intenção de encontrar um lugar de pertencimento e um ambiente que promova seu bem-estar.
O desejo por saúde e integralidade é intrínseco ao coração humano e manifesta-se na busca pela preservação e prolongamento da vida. As pessoas empreendem diversos meios para alcançar esse ideal, considerado por alguns como um produto ou uma propriedade. Essa busca também se reflete no contexto da comunidade cristã, no qual as pessoas se aproximam com a intenção de encontrar um lugar de pertencimento e um ambiente que promova seu bem-estar.
A saúde mental é uma das dimensões dessa visão mais ampla de saúde. A comunidade cristã pode ter o potencial de causar feridas, uma vez que é constituída por seres humanos imperfeitos que vivem e reagem a muitas circunstâncias com base na sua própria fragilidade. Mas o oposto também pode ser considerado verdadeiro.
A comunidade [cristã] tem o potencial amplo e por vezes inexplorado de ser o próprio contexto no qual a saúde integral é promovida e preservada. Muitas das diferentes questões de cuidado pastoral na comunidade estão relacionadas com a saúde e o bem-estar dos membros, como, por exemplo: relacionamentos, trabalho, doenças, deficiências, nascimentos, paternidade, divórcio, abuso de substâncias, envelhecimento e morte.
Esse paradigma abrangente permite que as comunidades cristãs se envolvam em diferentes áreas do conhecimento e incentiva a cooperação interdisciplinar com o objetivo de melhorar a saúde da comunidade. O corpo é uma metáfora da igreja no Novo Testamento. E o corpo humano desempenha um papel essencial, pois expressa nossa existência no mundo. Consequentemente, é no corpo que se manifestam as questões relacionadas à saúde. É por meio do corpo que desenvolvemos nossos relacionamentos uns com os outros como seres humanos encarnados e com emoções.
Existem numerosos equívocos e dificuldades em aceitar e interpretar o conceito de corporificação e encarnação como uma expressão que reflete a manifestação de Jesus Cristo como Deus encarnado. Esse paradigma recorrente de dualismo e dicotomia, que está sempre presente nas questões celestiais e terrenas, impacta a forma como os cristãos veem a encarnação e a integralidade do ser.
Práticas em comunidade
Qual será então o propósito da nossa intenção de criar e sustentar práticas que promovam essa integralidade e saúde? O propósito dessa busca não deveria ser negar o paradigma eterno de existência ou mesmo o cultivo de qualidades pessoais e autocontrole,1 mas reconhecer que fomos criados para ser instrumentos com propósitos especiais, santificados em nosso relacionamento com Deus e com cada pessoa, preparados para cooperar em seu trabalho no mundo. Negligenciar a mordomia e o cuidado com os nossos corpos como seus instrumentos é negligenciar a missão de Deus para com o seu povo.
Isso significa que a comunidade cristã deve abraçar tanto a promoção da saúde como o cuidado daqueles que sofrem com enfermidades e doenças durante a jornada. O corpo humano é um instrumento importante para a obra de Deus no mundo, pois permite construir relacionamentos saudáveis em comunidade, apoiar e encorajar-se mutuamente e de forma prática. Um coração angustiado, que não encontra espaço para compartilhar suas lutas porque teme ser julgado pelos outros, não encontra a cura para suas enfermidades. É necessário que a igreja, como comunidade reunida em torno do Cristo ressurreto, retorne à Palavra de Deus e perceba que homens e mulheres da grande narrativa bíblica eram extremamente humanos e vivenciavam dúvidas, tristezas e decepções.
A dificuldade da igreja de abordar questões complexas, como quadros demenciais, perdas cognitivas e transtornos mentais, parece contribuir para uma estigmatização daqueles que lutam contra uma variedade de desequilíbrios emocionais, como se a fé ou a falta dela fosse o fator determinante dessa equação complexa e multifacetada. Isso impacta diretamente a forma como a comunidade oferece apoio às pessoas que têm de lidar com desafios psicológicos, bem como suas famílias e amigos.
É importante considerar o caminho do diálogo interdisciplinar com as áreas da Psicologia e Medicina, e entender que não se trata de sistemas concorrentes, mas complementares ou informativos, uma vez que visam ao cuidado das pessoas. A dinâmica social de uma comunidade é um dos fatores mais importantes, pois permite que os membros se beneficiem e contribuam com uma experiência de crescimento e saúde. No entanto, quando essa dinâmica é tóxica, ela se torna o ambiente propício para a mágoa e relações abusivas. Uma comunidade saudável deve proporcionar ambiente e oportunidades para conectar as pessoas em relacionamentos significativos que as conduzirão à maturidade espiritual e a uma vida saudável que reflita o shalom.
Interdependência: o modelo trinitário
O modelo de interdependência é retratado na vida da Trindade e foi vivenciado por Jesus no mundo ao encontrar as pessoas. Jesus, convivendo com amigos e com a comunidade, nas suas interações com as pessoas, mostrava a graça presente na interdependência, doando e recebendo à medida que se relacionava com elas. Na nossa relação com o Cristo ressurreto, somos constantemente desafiados e transformados à medida que tomamos consciência das nossas vulnerabilidades. Com humildade, reconhecemos que somos seres dependentes da graça de Deus e precisamos abandonar a tendência ao isolamento e à independência. Sobre a tensão entre dependência e independência, na pessoa de Cristo, Deus nos ensinou que a dependência tem uma dimensão que precisa ser abraçada e que não afeta o nosso estado de dignidade como pessoas. Viemos ao mundo como seres dependentes, e nossa fragilidade como seres humanos no processo natural de envelhecimento nos levará novamente à dependência no final da vida. Fomos criados para a interdependência.
Existe uma ligação próxima entre a nossa aprendizagem e crescimento e a forma como desenvolvemos nossos relacionamentos. A educação e a saúde estão interligadas e podem ser aprofundadas e ampliadas no contexto da comunidade e das relações entre os irmãos. Uma das maiores dificuldades em estabelecer relações autênticas, transparentes e significativas é o nosso desejo humano de independência, que nos leva ao individualismo radical. A luta constante entre viver a vida como refém do medo ou vivê-la inspirado no amor é o que mina a nossa capacidade de abrir nosso coração para Deus e para os outros. Isso acontece porque nos apoiamos no nosso próprio entendimento de quem somos e quem Deus é, sem uma perspectiva mais ampla da contribuição que o outro pode oferecer e trazer para a nossa vida.
Saúde comunitária e integral
Ao abordar a questão específica da comunidade cristã e sua interação com o conceito de saúde integral, ainda existe um amplo leque de possibilidades que não foram totalmente exploradas. A comunidade cristã possui qualidades que criam um ambiente favorável ao estabelecimento de práticas para a promoção da saúde. Além das interações sociais que contribuem para o encorajamento mútuo, as reuniões intencionais e os cultos proporcionam oportunidades para a promoção da saúde tanto individual como comunitária. Essas práticas podem promover a saúde e o bem-estar, envolvendo as pessoas e potencializando ações e programas sociais da comunidade, tornando-a inclusiva e solidária. Isso tem um impacto direto na forma como a comunidade presta apoio às pessoas que lidam com adoecimentos mentais, bem como às suas famílias e amigos. A teologia deve seguir continuamente o caminho da integração interdisciplinar, não considerando as demais áreas como sistemas concorrentes, mas sim complementares à visão da integralidade das pessoas.
Algumas das iniciativas que podem contribuir para a integração interdisciplinar são aquelas que envolvem profissionais de saúde e líderes cristãos no engajamento da comunidade em iniciativas voltadas ao ensino e ao trabalho de grupos de apoio àqueles que enfrentam desafios mentais e/ou físicos. Essas iniciativas têm como objetivo promover o cuidado para toda a igreja, abordando as diferentes necessidades e esferas dos planos de ação de promoção da saúde. Mesmo nos círculos cristãos, aqueles que enfrentam desafios relacionados à saúde mental são muitas vezes estigmatizados. Essas iniciativas podem ajudar a corrigir essa situação.
Sabemos que o encorajamento mútuo é um dos principais promotores da saúde, do cuidado e do consolo quando realizado de forma consistente. Em países como o Brasil, na América Latina, os laços relacionais desenvolvidos nas comunidades cristãs são fundamentais para o cuidado integral de pessoas carentes que dispõem de menos recursos, vivem em áreas vulneráveis e precisam lidar com os desafios impostos por seus contextos sociais. As comunidades precisam estar abertas para conversas, palestras, aconselhamento individual e em grupo, e encaminhamento de recursos. Essa abertura é uma parte importante da humanização da conversa e da diminuição do estigma, e permite criar uma rede saudável de cuidados para aqueles que enfrentam desafios de saúde mental.2
Essa compreensão mais ampla do cuidado integral permite que os cristãos se envolvam em diferentes áreas do conhecimento com o objetivo de melhorar a saúde da comunidade. Não se trata de substituir o papel das instituições governamentais voltadas para a assistência e os cuidados com a saúde, nem de descaracterizar o papel da igreja na sua dimensão espiritual, transcendente, de culto e de comunhão. Pelo contrário, trata-se de focar a trajetória de um cristão no caminho da fé, desde a sua conversão até à maturidade espiritual, e de estar sensível à necessidade de trabalhar com parceiros de outras esferas da sociedade para prover esse cuidado integral, quando necessário.
Nossa resposta
Deus nos concedeu conhecimento e discernimento, e devemos colocá-los a serviço da comunidade da fé, bem como da sociedade em geral. Em todo o mundo, uma série de iniciativas sobre o tema tem levado a igreja a uma reflexão aprofundada sobre a saúde mental,3 servindo as pessoas nas cidades e nos países. Embora possam ter perspectivas e pontos de vista diferentes, elas oferecem oportunidades para as pessoas se reunirem, fortalecendo assim o relacionamento entre si. Alguns ministérios e organizações são: Sanctuary Mental Health Ministries (Canadá e Reino Unido);4 Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e ABC2;5 Oasis Africa;6 Celebrando a Recuperação;7 Christian Asian Mental Health e Safe Space Community for Asians.8
No Brasil, por exemplo, há um crescente interesse em construir pontes entre a fé cristã e a saúde mental, evidenciado na organização de grupos de estudos para aumentar a conscientização sobre a importância dos encaminhamentos para outras instâncias de cuidado, rumo a uma rede de cuidados mais aprofundada. Diversas atividades são promovidas para abordar não somente os diferentes desafios emocionais, mas também as diferentes fases da vida, conectando todas as questões relativas à saúde com uma perspectiva de shalom [harmonia], como a justiça e a liberdade, a fé e o trabalho, e o cuidado com a Criação.
Que possamos continuar a construir pontes e a fazer conexões para auxiliar as pessoas dentro e fora das nossas comunidades cristãs a avançarem na direção de um cuidado integral.
Notas
Publicado originalmente em Movimento de Lausanne. Reproduzido com permissão.
Saiba mais:
» Saúde e fé
» A Cruz e o Paradoxo da Autoestima
» Saúde mental, um dos aspectos da missão
Notas
1. Karen Bomilcar, Corpo como Palavra: Uma Visão Bíblica Sobre Saúde Integral (São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2021).
2. Nota da Editora: Leia o artigo de Gladys Mwiti & Bradford Smith, intitulado “Voltando a atenção da igreja à saúde mental”, na edição de novembro/2018 da Análise Global de Lausanne.
3. Nota da Editora: Leia o artigo de Hebert Palomino O. intitulado “Construindo um púlpito móvel para a saúde mental”, na edição de novembro/2020 da Análise Global de Lausanne.
Publicado originalmente em Movimento de Lausanne. Reproduzido com permissão.
- Karen Bomilcar é formada em Psicologia pela Universidade Mackenzie (São Paulo), tem especialização em Psicologia Clínica Hospitalar (Universidade de São Paulo) e mestrado em Teologia e Estudos Interdisciplinares pela Regent Faculdade (Vancouver, Canadá). Atualmente mora em São Paulo, Brasil, trabalha como psicóloga hospitalar na área de Saúde Pública e como professora no Seminário Teológico Servo de Cristo e no Centro Cristão de Estudos, onde leciona nas áreas de Aconselhamento, Espiritualidade Cristã e Saúde. É mobilizadora voluntária da Rede Temática “Saúde para Todas as Nações” do Movimento de Lausanne.
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Todas as pessoas – também os que creem – correm o risco de adoecer mentalmente. Há multidões na igreja lutando com problemas de saúde mental. Felizmente, há esperança e ajuda: profissionais da saúde, recursos terapêuticos e medicamentos. Os cristãos podem contar ainda com a ajuda extraordinária de seu Deus. E a igreja deve proporcionar um espaço seguro para estes.
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