Opinião
- 27 de setembro de 2023
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Saúde e fé
Mais do que nunca é preciso integrar a fé cristã aos desafios globais de saúde mental
Por Karen Bomilcar
Os cuidados de saúde mental são uma das necessidades mais prementes em todos os continentes, uma vez que ela interage com muitos aspectos do que nos torna humanos e de como lidamos com os desafios da vida cotidiana.
Com o aumento das demandas ambientais, sociais, políticas, profissionais, e de questões espirituais, o número de pessoas que enfrentam problemas emocionais tem crescido exponencialmente. Esses desafios naturalmente afetam a espiritualidade de uma pessoa, bem como sua percepção acerca de si mesma e dos outros. Os desafios da saúde mental são desafios humanos. Todos os seres humanos experimentam um certo grau de problemas de saúde em algum momento da vida. Em algumas situações, a tensão da vida e, ou, o diagnóstico de distúrbios podem levar alguns a recorrer a mecanismos ruins de enfrentamento, incluindo adicções, automutilação e, às vezes, suicídio, na tentativa de acabar com o sofrimento.
Os desafios de saúde mental não discriminam por crença, nível de espiritualidade, status educacional, cor da pele, status socioeconômico ou critérios demográficos. Uma metanálise de 174 pesquisas, de 1980 a 2013, de 63 países, revelou que, globalmente, cerca de um em cada cinco adultos experimentou uma dificuldade de saúde mental no ano de 2013 e que 30% de todas as pessoas sofrerão de um transtorno mental em algum momento de sua vida adulta.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2022 sobre saúde mental no trabalho estimou que globalmente 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido a faltas e afastamentos causados por depressão e ansiedade a um custo de 1 trilhão de dólares. Dos indicadores revelados por estudos, temos visto crescer o número de pessoas com diversos vícios (incluindo a dependência tecnológica) que procuram os ambulatórios de saúde mental. Isso sem falar das questões relacionadas à saúde mental não categorizadas como o controle, a busca por poder, a amargura, a independência a qualquer custo, a demonização do outro, a inveja, a hipocrisia, a indiferença, entre tantas outras que também afetam a vida emocional, espiritual e relacional.
Após o período da pandemia da Covid-19, surgiram outros desafios relacionados à saúde mental. Tanto por conta dos lutos (seja por perdas relacionadas à morte como por perdas simbólicas), quanto pelo isolamento social, pela desumanização causada pelo excesso de vida digital etc. Possivelmente, a solidão é o motivo de queixa que mais ouço em atendimentos psicológicos e aconselhamentos pastorais. Ainda hoje há um número significativo de pessoas que por diversos motivos não retornaram às atividades presenciais em suas comunidades, seja em cultos públicos ou em círculos de amizades informais. Embora a igreja tenha usufruído da oportunidade de alcançar pessoas, especialmente as novas gerações, de forma expressiva no formato on-line através de suas mídias, isso não anula a necessidade que as pessoas têm de caminhar de forma próxima e intergeracional, para que possam amadurecer na fé e em suas emoções.
O cuidado com a saúde em seu significado mais amplo, o shalom, é algo fundamental. Isso estava no âmago do ministério de Jesus, conforme demonstrado pela integração da pregação, ensino e discipulado, complementados por suas obras de cura e libertação. Jesus praticou o cuidado da pessoa como um todo – corpo, alma e espírito – na vida social dos indivíduos. E, ainda hoje, ele convida seus discípulos a continuarem essa forma de ministério.
Infelizmente, a cultura de separar a fé da vida, bem como de simplificar excessivamente situações e fenômenos complexos, influenciou a forma como a igreja vive, percebe e trata os desafios de saúde.
A comunidade cristã ainda luta com o que diz respeito à área de saúde mental, especialmente pela ausência de ensino na igreja sobre como abordar questões de perdas cognitivas, adoecimentos psíquicos, transtornos de personalidade, e pela estigmatização contínua daqueles que lutam com desequilíbrio emocional. Isso tem um impacto direto sobre como a comunidade oferece apoio a pessoas que lutam contra doenças mentais e suas famílias e amigos. Nesse sentido, a teologia deve mover-se continuamente no caminho da integração interdisciplinar, considerando essas vertentes como sistemas complementares com vistas ao ser humano na sua totalidade.
No contexto brasileiro e latino-americano, a igreja tem um papel fundamental nos processos de prevenção e promoção de saúde emocional e espiritual. Seja através das vivências das comunidades locais – que muitas vezes são os primeiros espaços onde alguém busca ajuda – até o ensino sistemático e perseverante através da Palavra e dos testemunhos de vida, que auxiliará na formação de pessoas mais maduras que poderão ser sal e luz em todas as esferas da sociedade, oferecendo sua vulnerabilidade e sabedoria para ajudar outras, mesmo quando enfrentam desafios psicológicos e espirituais.
Iniciativas úteis envolveriam profissionais de saúde e líderes cristãos dispostos a ensinar e a apoiar os que sofrem e também a promover a saúde para toda a igreja, ajudando-a a conscientizar-se das áreas afetadas pelo desequilíbrio e das ações para preservá-la. A comunidade de fé como um espaço de conexão e caminhada em parceria tem um potencial importante de saúde e cura em amplos sentidos.
Sabemos, sim, que esse espaço também pode trazer mágoas, dores e desalentos. Nossos anos de pandemia também foram anos nos quais os conflitos interpessoais se acentuaram, por questões de ordem política, por exemplo. Ainda vivemos as sequelas de relacionamentos desfeitos, de igrejas feridas etc. Precisamos retornar nossos corações para a centralidade de Cristo, que nos ordena enxergar nossos próximos como irmãos e praticar o amor, a fé e a esperança. Identificação humana e mútua não pode ser negligenciada.
No nosso continente, o vínculo relacional dentro das comunidades tem se mostrado fundamental para o cuidado integral das pessoas, em especial dentro das comunidades mais vulneráveis. É importante abrir as comunidades para conversas, palestras, aconselhamento em grupo e individual, e para oferecer recursos, diminuir o estigma e criar uma rede saudável de cuidados para aqueles que enfrentam desafios de saúde mental.
A compreensão mais ampla favorece o envolvimento de cristãos em diferentes áreas do conhecimento com o objetivo de melhorar a saúde da comunidade. Não se trata de substituir o papel das instituições governamentais centrado no cuidado, nem descaracterizar o papel da igreja em sua espiritualidade, dimensão transcendente, de adoração e comunhão. Ao contrário, trata-se de cuidar do processo de conversão e amadurecimento espiritual e ser sensível à necessidade de convocar parceiros de outras esferas da sociedade no cuidado, quando necessário. Deus nos concedeu conhecimento e discernimento e devemos colocá-los a serviço da comunidade de fé, bem como da sociedade.
REVISTA ULTIMATO | DOXOLOGIA NO CULTO PÚBLICO E NA VIDA DIÁRIA
A matéria de capa desta edição convida o leitor ao exercício da doxologia: a afirmação vibrante sobre o que Deus é e o que ele faz. Uma afirmação que traduz a nossa opinião sobre Deus forjada pelas Escrituras e pelas experiências com ele. Isso vai contra a correnteza do mundo em que vivemos, tão pouco propício à solitude, à contemplação e à adoração.
É disso que trata a matéria de capa da edição 403 da Revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Um Novo Dia – Deixando para trás ansiedade, fome, controle, vergonha, ira e desespero, Emma Scrivener
» A Cruz e o Paradoxo da Autoestima - Fé Cristã, Valor e Dignidade Humana, Ricardo Barbosa de Sousa
» Saúde mental, um dos aspectos da missão
Por Karen Bomilcar
Os cuidados de saúde mental são uma das necessidades mais prementes em todos os continentes, uma vez que ela interage com muitos aspectos do que nos torna humanos e de como lidamos com os desafios da vida cotidiana.
Com o aumento das demandas ambientais, sociais, políticas, profissionais, e de questões espirituais, o número de pessoas que enfrentam problemas emocionais tem crescido exponencialmente. Esses desafios naturalmente afetam a espiritualidade de uma pessoa, bem como sua percepção acerca de si mesma e dos outros. Os desafios da saúde mental são desafios humanos. Todos os seres humanos experimentam um certo grau de problemas de saúde em algum momento da vida. Em algumas situações, a tensão da vida e, ou, o diagnóstico de distúrbios podem levar alguns a recorrer a mecanismos ruins de enfrentamento, incluindo adicções, automutilação e, às vezes, suicídio, na tentativa de acabar com o sofrimento.
Os desafios de saúde mental não discriminam por crença, nível de espiritualidade, status educacional, cor da pele, status socioeconômico ou critérios demográficos. Uma metanálise de 174 pesquisas, de 1980 a 2013, de 63 países, revelou que, globalmente, cerca de um em cada cinco adultos experimentou uma dificuldade de saúde mental no ano de 2013 e que 30% de todas as pessoas sofrerão de um transtorno mental em algum momento de sua vida adulta.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2022 sobre saúde mental no trabalho estimou que globalmente 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido a faltas e afastamentos causados por depressão e ansiedade a um custo de 1 trilhão de dólares. Dos indicadores revelados por estudos, temos visto crescer o número de pessoas com diversos vícios (incluindo a dependência tecnológica) que procuram os ambulatórios de saúde mental. Isso sem falar das questões relacionadas à saúde mental não categorizadas como o controle, a busca por poder, a amargura, a independência a qualquer custo, a demonização do outro, a inveja, a hipocrisia, a indiferença, entre tantas outras que também afetam a vida emocional, espiritual e relacional.
Após o período da pandemia da Covid-19, surgiram outros desafios relacionados à saúde mental. Tanto por conta dos lutos (seja por perdas relacionadas à morte como por perdas simbólicas), quanto pelo isolamento social, pela desumanização causada pelo excesso de vida digital etc. Possivelmente, a solidão é o motivo de queixa que mais ouço em atendimentos psicológicos e aconselhamentos pastorais. Ainda hoje há um número significativo de pessoas que por diversos motivos não retornaram às atividades presenciais em suas comunidades, seja em cultos públicos ou em círculos de amizades informais. Embora a igreja tenha usufruído da oportunidade de alcançar pessoas, especialmente as novas gerações, de forma expressiva no formato on-line através de suas mídias, isso não anula a necessidade que as pessoas têm de caminhar de forma próxima e intergeracional, para que possam amadurecer na fé e em suas emoções.
O cuidado com a saúde em seu significado mais amplo, o shalom, é algo fundamental. Isso estava no âmago do ministério de Jesus, conforme demonstrado pela integração da pregação, ensino e discipulado, complementados por suas obras de cura e libertação. Jesus praticou o cuidado da pessoa como um todo – corpo, alma e espírito – na vida social dos indivíduos. E, ainda hoje, ele convida seus discípulos a continuarem essa forma de ministério.
Infelizmente, a cultura de separar a fé da vida, bem como de simplificar excessivamente situações e fenômenos complexos, influenciou a forma como a igreja vive, percebe e trata os desafios de saúde.
A comunidade cristã ainda luta com o que diz respeito à área de saúde mental, especialmente pela ausência de ensino na igreja sobre como abordar questões de perdas cognitivas, adoecimentos psíquicos, transtornos de personalidade, e pela estigmatização contínua daqueles que lutam com desequilíbrio emocional. Isso tem um impacto direto sobre como a comunidade oferece apoio a pessoas que lutam contra doenças mentais e suas famílias e amigos. Nesse sentido, a teologia deve mover-se continuamente no caminho da integração interdisciplinar, considerando essas vertentes como sistemas complementares com vistas ao ser humano na sua totalidade.
No contexto brasileiro e latino-americano, a igreja tem um papel fundamental nos processos de prevenção e promoção de saúde emocional e espiritual. Seja através das vivências das comunidades locais – que muitas vezes são os primeiros espaços onde alguém busca ajuda – até o ensino sistemático e perseverante através da Palavra e dos testemunhos de vida, que auxiliará na formação de pessoas mais maduras que poderão ser sal e luz em todas as esferas da sociedade, oferecendo sua vulnerabilidade e sabedoria para ajudar outras, mesmo quando enfrentam desafios psicológicos e espirituais.
Iniciativas úteis envolveriam profissionais de saúde e líderes cristãos dispostos a ensinar e a apoiar os que sofrem e também a promover a saúde para toda a igreja, ajudando-a a conscientizar-se das áreas afetadas pelo desequilíbrio e das ações para preservá-la. A comunidade de fé como um espaço de conexão e caminhada em parceria tem um potencial importante de saúde e cura em amplos sentidos.
Sabemos, sim, que esse espaço também pode trazer mágoas, dores e desalentos. Nossos anos de pandemia também foram anos nos quais os conflitos interpessoais se acentuaram, por questões de ordem política, por exemplo. Ainda vivemos as sequelas de relacionamentos desfeitos, de igrejas feridas etc. Precisamos retornar nossos corações para a centralidade de Cristo, que nos ordena enxergar nossos próximos como irmãos e praticar o amor, a fé e a esperança. Identificação humana e mútua não pode ser negligenciada.
No nosso continente, o vínculo relacional dentro das comunidades tem se mostrado fundamental para o cuidado integral das pessoas, em especial dentro das comunidades mais vulneráveis. É importante abrir as comunidades para conversas, palestras, aconselhamento em grupo e individual, e para oferecer recursos, diminuir o estigma e criar uma rede saudável de cuidados para aqueles que enfrentam desafios de saúde mental.
A compreensão mais ampla favorece o envolvimento de cristãos em diferentes áreas do conhecimento com o objetivo de melhorar a saúde da comunidade. Não se trata de substituir o papel das instituições governamentais centrado no cuidado, nem descaracterizar o papel da igreja em sua espiritualidade, dimensão transcendente, de adoração e comunhão. Ao contrário, trata-se de cuidar do processo de conversão e amadurecimento espiritual e ser sensível à necessidade de convocar parceiros de outras esferas da sociedade no cuidado, quando necessário. Deus nos concedeu conhecimento e discernimento e devemos colocá-los a serviço da comunidade de fé, bem como da sociedade.
- Karen Bomilcar é psicóloga e teóloga em São Paulo, SP, e mobilizadora da rede “Saúde para todas as nações”, do Movimento Lausanne.
REVISTA ULTIMATO | DOXOLOGIA NO CULTO PÚBLICO E NA VIDA DIÁRIA
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» Um Novo Dia – Deixando para trás ansiedade, fome, controle, vergonha, ira e desespero, Emma Scrivener
» A Cruz e o Paradoxo da Autoestima - Fé Cristã, Valor e Dignidade Humana, Ricardo Barbosa de Sousa
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