Opinião
- 04 de março de 2022
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Robinson Cavalcanti e os Sentidos do Ser Evangelical
Por Lyndon de Araújo Santos
Falar de Robinson Cavalcanti como um evangelical aponta para uma das suas identidades como sujeito histórico que se constituiu e foi constituído no conjunto das suas relações sociais, políticas, religiosas e culturais.
O exercício aqui será o diálogo com esse cristão engajado nas questões do seu tempo, a partir das memórias pessoais e dos seus escritos, principalmente a sua obra principal, Cristianismo e Política. Nossa preocupação estará mais voltada para a construção de uma identidade dita evangelical, antes e depois da sua inserção como bispo anglicano no ano de 1997, o que demarcou uma nova fase de sua trajetória de vida, até o seu trágico falecimento. Escapamos, entretanto, de uma escrita biográfica, o que demandaria um esforço merecidamente maior, mais completo e mais acurado, com todas as implicações teóricas e metodológicas em torno de uma biografia, sempre sob os riscos da linearidade, da mitificação e da reificação. Ou, ainda, da ilusão biográfica (BOURDIEU, 2006).
Estudos sobre Robinson Cavalcanti já começam a ser produzidos no âmbito da academia e com penetração no circuito evangélico brasileiro. Em Política, Religião e Sociedade: a contribuição protestante de Robinson Cavalcanti, o historiador Fernando Costa o compreendeu como participante de um contexto e de uma conjuntura histórica do protestantismo no Brasil (COSTA, 2020). Costa partiu da historiografia do protestantismo, dos significados do termo protestante e da preocupação com a vertente progressista desse protestantismo. Robinson foi um contraponto à cultura conservadora dos evangélicos, ao transitar em fronteiras discursivas e em ambientes intelectuais e políticos que lhe proporcionaram um papel relevante naquele cenário. “Sua influência se deu entre igrejas, movimentos estudantis, entidades representativas como alianças evangélicas e movimentos protestantes missionários e teológicos” (COSTA, 2020, p. 15).
A análise ainda o apresenta como um sujeito portador de memória, de crítica, de influência e de fronteiras. Deste modo, o insere na continuidade do processo histórico do protestantismo brasileiro, aponta as influências recebidas e reúne textos escritos como base de análise de seu pensamento e de sua atividade como militante nos espaços religiosos e políticos. Enfim, o situa dentro do escopo do protestantismo progressista.
São necessárias ainda novas pesquisas que contemplem mais sobre o discurso de Robinson Cavalcanti, partindo de documentos relacionados a cerca de dez anos de publicação semanal no Jornal do Commercio de Pernambuco, outras publicações em espanhol e inglês, livros, palestras, pregações e pastorais, bem como outras produções enquanto bispo diocesano que não prefiguram como fontes para o que a pesquisa de propôs (COSTA, 2020, p. 19).
O presente texto insere-se nessa esteira de pesquisas e de reflexões em aberto, com uma pequena contribuição e provocações ao historicizar o termo evangelical e propor o caminho de uma fazer teológico decolonial. Será apresentado um depoimento pessoal das relações com Robinson Cavalcanti e um debate problematizador sobre um dos seus principais escritos, Cristianismo e Política. Antes, porém, cabe ainda uma palavra sobre o termo evangelical.
POR QUE AINDA EVANGELICAL?
O termo evangelical exige um tratamento criterioso do ponto de vista histórico e teológico. De modo geral, trata-se de um anglicismo que se refere aos cristãos identificados com a Reforma Protestante do século XVI. Diretamente ligada ao movimento surgido após a segunda guerra mundial nos Estados Unidos, a expressão passou a ser utilizada como alternativa à polarização teológica entre fundamentalistas e liberais no mundo evangélico, protestante ou reformado no ocidente. Este passou a ser mapeado a partir de categorias com suas limitações e cargas semânticas carregadas de preconcepções. Os evangelicais seriam uma via de distanciamento dos extremos do fundamentalismo com sua inerrância bíblica e atitudes de intolerância, e sem as aberturas ao criticismo bíblico e ao clássico liberalismo.
Os dois Congressos Mundiais de Evangelização em 1966 na Alemanha e em 1974 em Lausanne, Suíça, são colocados como marcos do nascimento desse movimento (SIMÕES, 2016). O chamado Pacto de Lausanne é considerado como o seu documento principal. Entidades e movimentos como o CIEE – Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos e, no Brasil a ABU – Aliança Bíblica Universitária, representam espaços institucionais. O evangelicalismo seria o movimento historicamente definido como conservador nas doutrinas, mas voltado para uma dada ética religiosa e social, mantendo o fervor missionário e o biblicismo que buscava escapar tanto do literalismo como de uma hermenêutica relativista.
Contudo, na América Latina, ocorreram variações de posições, de fronteiras e de tonalidades que se desfazem nas relações concretas entre sujeitos, movimentos e grupos, relativizando as categorizações e os estereótipos, objeto de pesquisas e análises futuras. A vertente assim autodenominada evangelical constituiu-se a partir da teologia da missão integral e desenvolveu suas próprias perspectivas e horizontes teológicos, com intensa mobilização em torno de publicações, consultas, intercâmbios e congressos.
Por um lado, procurou conservar a identidade evangélica pautada na confessionalidade, na autoridade das escrituras e na prática missionária voltada para o crescimento de igrejas, sendo crítica, mas ainda tributária à matriz estadunidense, embora fazendo abordagens contextuais. Por outro, avançou nas problematizações missionais, teológicas e hermenêuticas, oriundas das experiências pastorais e eclesiais, do pluralismo em termos religiosos e da diversidade de gênero, das questões indígenas e dos legados da colonização ibérica no continente, a exemplo da escravização de indígenas e de africanos.
Neste sentido, aproximou-se de compreensões e de linguagens progressistas e ecumênicas como a Teologia da Libertação e suas variantes da teologia negra e teologia feminista, estabelecendo diálogos e diluindo as fronteiras demarcadas pelas classificações clássicas. Eixos temáticos centrais como a ecologia e o meio ambiente, a laicidade e o espaço público, as questões de gênero e a diversidade, impõem o debate teológico que inclua todo o legado plural do que seria o evangelicalismo, mas que se repense como decolonial.
Podemos, então, pensar Robinson Cavalcanti neste processo de construção e de disputas semânticas que se estabeleceu nos contextos latinoamericano e brasileiro, nas décadas de 1970 a 2000, na tentativa de instituir um significado para o que ele chamou de evangelicalismo holístico.
UM DEPOIMENTO PESSOAL
Cabe, todavia, um relato pessoal dos encontros e diálogos com Robinson que se deram entre os fins da década de 1980 até o ano de 2010. Trata-se de um exercício de memória seletiva de passagens que deixaram sentidos, numa convivência que poderia ter sido mais ampliada. As lembranças partem do Congresso Vinde de 1989, em Águas de Lindóia, São Paulo, no calor da campanha presidencial e do protagonismo do Pr. Caio Fábio no mundo evangélico não pentecostal da época. As mensagens contundentes representavam a força de uma igreja que aspirava ocupar o espaço público com mais relevância, superando os limites do denominacionalismo e as idiossincrasias do seu farisaísmo religioso moralista. O neopentecostalismo ainda estava para ser reconhecido como força cultural, política e religiosa, sobretudo pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e seu bispo Macedo.
Robinson falou sobre os evangélicos na política e, como um bom cientista político, apresentou didaticamente um mapa ideológico dos partidos e dos candidatos ao primeiro turno das eleições para presidente da república, a primeira depois do fim da ditadura civil-militar. Discorreu sobre cada um dos principais concorrentes ao Planalto como Fernando Collor, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva.
Mesclando humor e um raciocínio arguto, levou os ouvintes a se convencerem pela última opção, posicionando-se a favor do candidato operário para surpresa de muitos, depois de percorrer cada um dos demais enquadrando-os a partir dos seus compromissos de classe. Expôs uma análise lúcida da disputa na perspectiva da luta de classes sem citar o conceito marxista.
No segundo semestre do ano de 1995, em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, o congresso do MEP – Movimento Evangélico Progressista – reuniu lideranças sindicais e evangélicas para o debate sobre a organização do próprio movimento e sobre o destino dos evangélicos no campo político brasileiro, em tempos de democracia da nova república. O evento foi um encontro de expectativas represadas por um segmento progressista entre os evangélicos, que aspiravam ser reconhecidos e marcarem uma posição baseada no entendimento de que era possível ser evangélico e progressista ao mesmo tempo.
O fracasso do governo de Collor e a disputa recente entre os dois partidos principais que iriam dominar o cenário político das décadas seguintes, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT), com a acirrada campanha de Lula, legitimou a tomada maior de consciência e de posicionamentos por parte dos progressistas. Robinson foi um tipo de intelectual orgânico do movimento que procurou se estruturar e construir bases nacionais de representação, numa época em que os evangélicos eram invisibilizados pelos partidos e pela sociedade em geral, embora estivessem crescendo em número e em representatividade no campo político, sobretudo por parte dos pentecostais e neopentecostais.
Os demais encontros se deram em São Luís quando da comemoração de quarenta anos de aniversário da ABUB em 2009. Quando da comemoração do dia da Reforma Protestante, organizada pelo Núcleo da Fraternidade Teológica Latino-americana - Brasil (FTL-B) na capital maranhense, Robinson proferiu palestra no Palácio Cristo Rei, sede da Universidade Federal do Maranhão num sábado pela manhã e pregou no templo da Igreja Evangélica Congregacional de São Luís no domingo. O momento de celebração da eucaristia em conjunto numa igreja de tradição congregacionalista por parte de um bispo anglicano representou a capacidade de se atravessar fronteiras teológicas outrora intransponíveis em torno do entendimento teológico da ceia, num testemunho ecumênico e fraterno de unidade.
Robinson falaria no templo Igreja Assembleia de Deus no bairro da Cidade Operária, periferia da cidade de São Luís, também por ocasião do dia da Reforma Protestante. Foi um evento emblemático pela presença de um bispo anglicano num templo assembleiano, recebido pelo seu pastor na época, Rayfran Batista da Silva. O que ficou marcado naquele encontro foi o olhar perspicaz de Robinson para a mobilização de homens e de mulheres num sábado a tarde, cuidando do templo e tomando outras providências para o funcionamento daquele espaço sagrado no fim de semana. Percebeu a disponibilização de uma mão-de-obra gratuita à instituição por meio do voluntarismo de pessoas simples, oriundas das camadas empobrecidas, mas que se dispunham trabalhar como forma de dignificação pessoal. Sua análise interclassista foi, mais uma vez, de uma argúcia incomum ao ler aquele cotidiano vivido.
Contudo, era perceptível a mudança do seu discurso outrora militante, acadêmico e político para outro mais formatado pela condição eclesiástica assumida em 1997, mais orgânico e institucional, ortodoxo e confessional, mas sem perder a capacidade de rapidez lógica do pensamento e do humor reflexivo. A fala de Robinson estava também atravessada pelos conflitos vividos no ambiente do anglicanismo brasileiro em torno da questão da sexualidade e das tensões vividas pelas tendências liberais de setores da igreja no mundo. Para ele, a questão da sexualidade seria um divisor de águas do evangelicalismo nacional.
Em 2010, no retorno do III Congresso Mundial de Evangelização do movimento Lausanne, no voo de cerca de dez horas da Cidade do Cabo na África do Sul, local do congresso, a Buenos Aires, pudemos conversar sobre o evento e a Igreja Anglicana. Mais do que necessidade de passar o tempo, foi um diálogo instruidor quanto à sua visão da igreja e de Lausanne. Lausanne era para ele o movimento referência do evangelicalismo em sua pluralidade interna de visões sobre a missão da igreja. Falou sobre as disputas finais da comissão de redação do documento final do congresso. Além disso, expôs uma aula convincente sobre a tradição anglicana em sua tentativa de continuidade apostólica, suas tensões com a Igreja Católica Romana e as divisões geográficas e eclesiásticas do anglicanismo mundial, concluindo que o anglicanismo representava a legítima herança do cristianismo primitivo e reformado.
Por pouco, me persuadiu a me tornar um anglicano.
Publicação originalmente pelo Instituto Robinson Cavalcanti. Reproduzido com permissão.
Publicação originalmente pelo Instituto Robinson Cavalcanti. Reproduzido com permissão.
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