Opinião
- 24 de maio de 2021
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René Padilla: uma vida direcionada para o mundo que sofre
Por Alexandre Brasil Fonseca
A vida de René Padilla nos faz lembrar o significado de ser integral
No dia 27 de abril de 2021, Carlos René Padilla, teólogo latino-americano conhecido como o “pai da Missão Integral”, faleceu aos 88 anos. Nascido na cidade de Quito, Equador, Padilla foi criado em Bogotá, Colômbia, e desde 1967 residia em Buenos Aires, Argentina. Teólogo, autor, marido, pai, avó e seguidor de Cristo. Um cidadão da América Latina.
Seus estudos - graduação em filosofia, mestrado e doutorado em teologia - foram realizados no Wheaton College, EUA, e na Universidade de Manchester, UK. Atuou como secretário adjunto da International Fellowship of Evangelical Students (IFES) para a América Latina, movimento ao qual a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) é filiada. Foi um dos responsáveis pela criação da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL) e por 12 anos foi presidente da Tearfund, organização de ajuda humanitária com atuação global, tendo também sido um dos fundadores e presidente da Rede Miquéias, uma importante iniciativa evangélica que assumiu em sua compreensão missionária a importância da advocacy e da mudança das estruturas sociais que alimentam situações de injustiça e de pecado. Na Argentina, criou a Fundación Kairós, que desenvolveu várias frentes tanto na formação teológica como também na publicação de materiais e no desenvolvimento comunitário.
Parte importante de seu ministério foi desenvolvida na formação de estudantes na IFES e como responsável por publicações, inicialmente como diretor da Ediciones Certeza e depois na Ediciones Kairós. Há uma curiosa carta que Padilla escreveu em junho de 1976 como resposta a um questionamento feito por Harold Lindsell, então editor da Christianity Today, em que este perguntava sobre quais eram as suas posições em relação ao “socialismo, capitalismo, livre empresa, propriedade, revolução, luta de classes, etc.”.
Era época do florescimento da Teologia da Libertação e parece que alguns consideravam preocupante a ênfase que Padilla e seus parceiros davam à inclusão da temática da justiça social no bojo da mensagem do evangelho. A pregação do evangelho não poderia ocorrer desassociada da ação social, sendo esta formulação uma importante contribuição dos participantes latino-americanos ao Pacto de Lausanne e na forma que se vivenciou a comunicação do evangelho após o encontro que deu origem a esta importante referência para as missões mundiais.
A carta resposta de Padilla faz parte do acervo “Collection 640: Records of IFES”[1], do Wheaton College Billy Graham Center Archives. Na carta, Padilla inicia afirmando não ser marxista e reconhece que a ideologia socialista “não é a resposta que o Terceiro Mundo precisa”. Ele afirma que também a ideologia capitalista não representa uma resposta e que ela “está levando o Ocidente à destruição e que não oferece esperança para o Terceiro Mundo”. Como alternativa ele afirma que se impõe um desafio aos cristãos que envolve o reconhecimento de que “tanto o mito do desenvolvimento como o mito da revolução precisam ser denunciados”. Ele completa afirmando que:
“Nós, os cristãos, devemos ser os primeiros a trabalhar para a criação de novas estruturas que irão romper com a dicotomia socialismo/capitalismo e oferecer ao homem uma vida mais humana. Infelizmente, nos faltam fé e coragem para sermos assim. Achamos mais fácil nos refugiarmos em um dos dois mitos, que então tentamos disfarçar com uma linguagem bíblica.”
Ao ler alguns dos editoriais que ele escreveu entre 1982 e 2002 na revista Misión[2], é possível identificar diversos aspectos que, como escreveu Padilla, visavam contribuir como “um meio que Deus utilizaria para fomentar no povo evangélico o conceito bíblico da missão cristã”. Em 1995, o foco do seu editorial foi o tema da ética reformada e da mordomia dos bens materiais, texto que viria a se tornar um dos capítulos do seu livro “Economía Humana y Economía del Reino de Dios”, publicado em 2003.
O ponto explorado por Padilla neste livro parte do princípio de que que “a economia, como todas as ciências humanas, tem uma dimensão ética cuja definição não pode ser deixada exclusivamente nas mãos de pessoas especializadas em economia”. Daí apresenta suas contribuições a partir de reflexões no campo dos valores éticos, salientando que o compromisso ideológico movimenta boa parte das decisões na vida humana e, como teólogo cristão, propõe que ideais bíblicos de justiça e solidariedade sejam parte do processo de tomada de decisões em todos as esferas sociais, inclusive a econômica.
Padilla questiona o fundamentalismo de mercado e a absurda concentração de renda existente no mundo, que só faz aumentar e que em meio a pandemia de Covid-19 mostra a sua expressão letal de forma cabal. Hoje as notícias que recebemos é que enquanto 87% dos vacinados são de países ricos, nos menos desenvolvidos apenas 0,2% da população foi imunizada. Até o início de abril de 2021, “os países de alta renda vacinaram em média 1 em cada 4 pessoas, enquanto apenas 1 em mais de 500 pessoas em países de baixa renda recebeu vacina contra a COVID-19”[3].
Essa desigualdade é curiosamente grave, pois em meio à pandemia somente a partir da vivência de uma solidariedade planetária é que efetivamente poderemos superar essa crise. Não há uma saída isolada que sirva apenas para algumas pessoas ou classes sociais. Nesse momento, precisamos assumir o fato de que somos todos iguais e, então, abraçar essa realidade de uma forma que nunca fizemos antes nestas nossas sociedades desiguais.
Padilla afirmava a importância da vida comunitária e do trabalho na igreja local e vivia isso a partir de sua inserção na realidade local e de seu trabalho pastoral. Ao mesmo tempo em que afirmava a importância do trabalho intelectual e da reflexão teológica acadêmica, salientava, como escreveu no editorial da primeira edição de Misión em 1982, que estes deveriam ocorrer “não como fins em si, mas sim como meios necessários para o serviço do Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória e o poder para sempre”.
Recentemente, após participar de um encontro no Brasil, Padilla estava bastante interessado na temática do racismo. Foi tocado pelo testemunho e ação de algumas das lideranças brasileiras que têm enfrentado essa questão e trabalhado na perspectiva de uma teologia negra. Em sua participação em Lausanne essa questão já estava presente, como bem me lembrou o amigo Clemir Fernandes. Nos comentários que Padilla apresentou no congresso, em 1974[4], é possível ler uma parte de sua contribuição em que ele trata do tema do racismo:
“O evangelho do cristianismo-cultura hoje é uma mensagem de conformismo, uma mensagem que, mesmo quando não é aceita, pelo menos é facilmente tolerada porque não perturba ninguém. O racista pode continuar sendo racista, o explorador pode continuar sendo explorador. O cristianismo será algo paralelo à vida, não algo que a permeia completamente.
Um Evangelho mutilado é totalmente insuficiente como base para igrejas que seriam capazes de ‘gerar seus próprios Calvinos, Wesleys, Wilberforces ou Martin Luther Kings’. Ele só pode ser a base para igrejas infiéis, para fortalezas de discriminação racial e de classe, para clubes religiosos com uma mensagem que não tem relevância para a vida prática nas esferas social, econômica e política.”
A questão racial é cruelmente visível no Brasil, mas igualmente terrível, violenta e excludente em toda as Américas, como também em outras partes do mundo. O passado escravocrata e os preconceitos e desigualdades relacionados à raça são uma constante, tendo suscitado em Padilla o desejo de contribuir a partir de conversas com algumas pessoas para a produção de um livro. Ele vinha nos últimos anos promovendo alguns encontros e reuniões sobre isso e certamente seguiremos com esse projeto. Identifico que a questão étnico-racial foi uma de algumas das lacunas no labor teológico associado à Missão Integral.
No prefácio para o seu livro “Mission Between the Times: Essays on the Kingdom”, Padilla escreveu que a sua expectativa era de que suas reflexões possam contribuir de uma “pequena forma” para “virar a face da evangelização em direção a um mundo que sofre”. Se definiu como uma “testemunha altamente privilegiada do que o Espírito de Deus tem feito para dar a seu povo um sentido renovado e integral da missão”.
Passados 36 anos da publicação desse livro e diante de seus 88 anos de vida, com uma expressiva produção teológica que tanto influenciou gerações e com uma vivência comunitária transformadora no bairro popular em que vivia, não há dúvidas da enorme contribuição que representou a vida e a obra de René Padilla para a propagação do Evangelho no mundo. Hoje podemos louvar a Deus por seu testemunho verdadeiramente integral, resposta ao chamado de Deus que dará frutos para as gerações vindouras.
• Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo, professor e diretor do Instituto Nutes da UFRJ. Foi Secretário Geral Adjunto da ABUB, é presidente de Paz e Esperança Brasil e membro do Conselho de Administração da International Network for Christian Higher Education.
Notas
> Este texto foi publicado originalmente em inglês no site Current.
Notas
[1] https://archives.wheaton.edu/repositories/4/resources/1250
[2] https://ediciones.kairos.org.ar/ebooks-revista-mision/
[3] https://www.businesswire.com/news/home/20210416005582/en/Global-COVID-19-Vaccine-Inequalities-Are-Scandalous-Says-AHF
[4] https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0134.pdf
> Este texto foi publicado originalmente em inglês no site Current.
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