Opinião
- 15 de abril de 2019
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Religiões em crise
Por Alderi Souza de Matos
*Artigo originalmente publicado na edição 376 da revista Ultimato.
A Igreja Católica e os abusos sexuais de menores, a ruptura na Igreja Ortodoxa Oriental, o distanciamento entre judeus americanos e israelenses, o desgaste da imagem do islã, João de Deus, de Abadiânia, e o espiritismo. E os evangélicos
Os sistemas religiosos, grandes ou pequenos, antigos ou recentes, vez por outra enfrentam convulsões traumáticas em suas trajetórias. O que houve de inédito em 2018 foi o fato de que isso ocorreu simultaneamente com várias tradições importantes. As razões foram diversas e obviamente variaram de intensidade de um caso para outro. Mas o fato é que tais crises macularam a imagem desses grupos e geraram enormes constrangimentos para os seus líderes e fiéis.
A Igreja Católica Romana é a que tem enfrentado as maiores dificuldades, por causa da divulgação de inúmeras acusações de abuso sexual de menores feitas contra sacerdotes e bispos dos Estados Unidos e de outros países. E o que é pior: os molestadores não somente deixaram de ser punidos por seus superiores, mas também em muitos casos foram acobertados por eles, e as vítimas ficaram entregues à sua própria dor (ver o filme Spotlight – Segredos revelados). Finalmente, o Vaticano decidiu intervir, afastando altos membros da hierarquia, estabelecendo normas mais rigorosas de conduta e convocando os bispos para se reunirem a fim de tratar da questão. Muitos fiéis estão profundamente chocados e decepcionados. Os processos judiciais têm resultado no pagamento de indenizações de dezenas e até centenas de milhões de dólares.
Outra antiga tradição cristã que enfrenta exatamente agora uma grande convulsão é a Igreja Ortodoxa Oriental, com a recente ruptura entre a igreja da Ucrânia e a igreja da Rússia. Durante séculos a ortodoxia teve quatro grandes patriarcados: Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla (Istambul). Com o crescimento da igreja entre os povos eslavos, no século 16 foi criado o Patriarcado de Moscou, sob cuja jurisdição ficaram os ucranianos. A partir de 1991, com a independência da Ucrânia, agravaram-se as tensões com Moscou, que chegaram ao auge após a anexação da Crimeia pelos russos em 2014. Essa crise política e militar entre os dois países levou a igreja ucraniana a separar-se de Moscou, fato que foi sancionado pelo patriarca de Constantinopla no dia 6 de janeiro de 2019. Os russos estão indignados e essa ruptura poderá produzir novos atos de violência entre as duas nações.
Fora do âmbito do cristianismo também surgiram ou se intensificaram dificuldades. É o caso do judaísmo, que experimenta crescente distanciamento entre os judeus americanos e os israelenses. Uma razão dessa crise é o atual governo dos Estados Unidos, admirado em Israel por ter rompido o acordo nuclear com o Irã e ter transferido a embaixada americana de Telavive para Jerusalém. Entretanto, o presidente Donald Trump tem causado profunda consternação na comunidade judaica dos Estados Unidos, que o acusa de estimular o nacionalismo, o racismo e o antissemitismo. Além disso, existem as diferenças teológicas e ideológicas entre os dois grupos, com a predominância dos ortodoxos em Israel e dos grupos conservador e reformista nos Estados Unidos.
Outra religião que tem sofrido violento desgaste em sua imagem é o islã. Em séculos passados, os muçulmanos criaram uma grande civilização e deram grandes contribuições ao mundo. A partir de meados do século 20, com o predomínio dos setores ultraconservadores e a radicalização política, criaram-se as condições para o surgimento de organizações extremistas como o Estado Islâmico e suas horrendas atrocidades. Em 2018, foram as ações do governo da Arábia Saudita que causaram enorme mal-estar. Ficou comprovado o envolvimento do príncipe herdeiro no horrível assassinato de um jornalista saudita em Istambul e foram expostas as ações genocidas desse regime no vizinho país do Iêmen. Como a Arábia Saudita é o berço e guardiã do islã, abraçando uma versão rigorosa da fé islâmica, o wahabismo, as ações dos líderes sauditas repercutem fortemente sobre essa religião.
No Brasil, o caso mais notório no âmbito religioso, em 2018, foi a prisão do médium João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, da cidade de Abadiânia, em Goiás, acusado de ter abusado de inúmeras pacientes em suas sessões de cura, além de ter praticado graves irregularidades no âmbito financeiro, sendo detentor de uma grande fortuna. Pelo fato de ser o mais conhecido líder kardecista da atualidade, sua prisão e o inquérito em andamento têm trazido sérios constrangimentos para a religião espírita, que considera um de seus fundamentos mais importantes a prática do bem e a caridade desinteressada.
Todos esses exemplos, que variam grandemente em sua amplitude e repercussões, ilustram o que pode acontecer quando indivíduos e grupos se afastam das convicções mais essenciais de suas respectivas tradições religiosas. Observa-se nos casos em discussão que as principais fontes de dificuldades são duas: desvios morais e questões políticas. Como tais, constituem uma séria advertência para os evangélicos, eles mesmos tristemente envolvidos em escândalos de diferentes naturezas ao longo dos anos. As crises religiosas atuais nos desafiam a uma vida de compromisso com Cristo, não com ideologias e governos, e de profunda integridade, em consonância com os valores do evangelho.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira, A Caminhada Cristã na História e Fundamentos da Teologia Histórica. Artigos de sua autoria estão disponíveis aqui.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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» O mal que existe em nós
*Artigo originalmente publicado na edição 376 da revista Ultimato.
A Igreja Católica e os abusos sexuais de menores, a ruptura na Igreja Ortodoxa Oriental, o distanciamento entre judeus americanos e israelenses, o desgaste da imagem do islã, João de Deus, de Abadiânia, e o espiritismo. E os evangélicos
Os sistemas religiosos, grandes ou pequenos, antigos ou recentes, vez por outra enfrentam convulsões traumáticas em suas trajetórias. O que houve de inédito em 2018 foi o fato de que isso ocorreu simultaneamente com várias tradições importantes. As razões foram diversas e obviamente variaram de intensidade de um caso para outro. Mas o fato é que tais crises macularam a imagem desses grupos e geraram enormes constrangimentos para os seus líderes e fiéis.
A Igreja Católica Romana é a que tem enfrentado as maiores dificuldades, por causa da divulgação de inúmeras acusações de abuso sexual de menores feitas contra sacerdotes e bispos dos Estados Unidos e de outros países. E o que é pior: os molestadores não somente deixaram de ser punidos por seus superiores, mas também em muitos casos foram acobertados por eles, e as vítimas ficaram entregues à sua própria dor (ver o filme Spotlight – Segredos revelados). Finalmente, o Vaticano decidiu intervir, afastando altos membros da hierarquia, estabelecendo normas mais rigorosas de conduta e convocando os bispos para se reunirem a fim de tratar da questão. Muitos fiéis estão profundamente chocados e decepcionados. Os processos judiciais têm resultado no pagamento de indenizações de dezenas e até centenas de milhões de dólares.
Outra antiga tradição cristã que enfrenta exatamente agora uma grande convulsão é a Igreja Ortodoxa Oriental, com a recente ruptura entre a igreja da Ucrânia e a igreja da Rússia. Durante séculos a ortodoxia teve quatro grandes patriarcados: Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla (Istambul). Com o crescimento da igreja entre os povos eslavos, no século 16 foi criado o Patriarcado de Moscou, sob cuja jurisdição ficaram os ucranianos. A partir de 1991, com a independência da Ucrânia, agravaram-se as tensões com Moscou, que chegaram ao auge após a anexação da Crimeia pelos russos em 2014. Essa crise política e militar entre os dois países levou a igreja ucraniana a separar-se de Moscou, fato que foi sancionado pelo patriarca de Constantinopla no dia 6 de janeiro de 2019. Os russos estão indignados e essa ruptura poderá produzir novos atos de violência entre as duas nações.
Fora do âmbito do cristianismo também surgiram ou se intensificaram dificuldades. É o caso do judaísmo, que experimenta crescente distanciamento entre os judeus americanos e os israelenses. Uma razão dessa crise é o atual governo dos Estados Unidos, admirado em Israel por ter rompido o acordo nuclear com o Irã e ter transferido a embaixada americana de Telavive para Jerusalém. Entretanto, o presidente Donald Trump tem causado profunda consternação na comunidade judaica dos Estados Unidos, que o acusa de estimular o nacionalismo, o racismo e o antissemitismo. Além disso, existem as diferenças teológicas e ideológicas entre os dois grupos, com a predominância dos ortodoxos em Israel e dos grupos conservador e reformista nos Estados Unidos.
Outra religião que tem sofrido violento desgaste em sua imagem é o islã. Em séculos passados, os muçulmanos criaram uma grande civilização e deram grandes contribuições ao mundo. A partir de meados do século 20, com o predomínio dos setores ultraconservadores e a radicalização política, criaram-se as condições para o surgimento de organizações extremistas como o Estado Islâmico e suas horrendas atrocidades. Em 2018, foram as ações do governo da Arábia Saudita que causaram enorme mal-estar. Ficou comprovado o envolvimento do príncipe herdeiro no horrível assassinato de um jornalista saudita em Istambul e foram expostas as ações genocidas desse regime no vizinho país do Iêmen. Como a Arábia Saudita é o berço e guardiã do islã, abraçando uma versão rigorosa da fé islâmica, o wahabismo, as ações dos líderes sauditas repercutem fortemente sobre essa religião.
No Brasil, o caso mais notório no âmbito religioso, em 2018, foi a prisão do médium João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, da cidade de Abadiânia, em Goiás, acusado de ter abusado de inúmeras pacientes em suas sessões de cura, além de ter praticado graves irregularidades no âmbito financeiro, sendo detentor de uma grande fortuna. Pelo fato de ser o mais conhecido líder kardecista da atualidade, sua prisão e o inquérito em andamento têm trazido sérios constrangimentos para a religião espírita, que considera um de seus fundamentos mais importantes a prática do bem e a caridade desinteressada.
Todos esses exemplos, que variam grandemente em sua amplitude e repercussões, ilustram o que pode acontecer quando indivíduos e grupos se afastam das convicções mais essenciais de suas respectivas tradições religiosas. Observa-se nos casos em discussão que as principais fontes de dificuldades são duas: desvios morais e questões políticas. Como tais, constituem uma séria advertência para os evangélicos, eles mesmos tristemente envolvidos em escândalos de diferentes naturezas ao longo dos anos. As crises religiosas atuais nos desafiam a uma vida de compromisso com Cristo, não com ideologias e governos, e de profunda integridade, em consonância com os valores do evangelho.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira, A Caminhada Cristã na História e Fundamentos da Teologia Histórica. Artigos de sua autoria estão disponíveis aqui.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Autor de A Caminhada Cristã na História, Alderi Souza de Matos é pastor presbiteriano e professor no Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. É bacharel em teologia, filosofia e direito, mestre em Novo Testamento (S.T.M.) e doutor em História da Igreja (Th.D.). É também o historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil e escreve a coluna “História” da revista Ultimato.
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