Opinião
- 01 de outubro de 2012
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Redenção política?
A rigor, ainda vivemos sob a democracia abstrata dos filósofos da antiguidade: democracia só para as elites dominantes e os “bem-postos” da sociedade. Igrejas, transformando altares em palanque político, treinando fieis para o uso da urna, como vimos em recentes eleições, integrando o mundo das instituições ricas, de um modo geral antidemocráticas, compartilhando privilégios constitucionais na isenção de impostos sobre arrecadações compulsórias ou espontâneas (igrejas são grandes vendedoras e consumidoras de produtos “religiosos”), enquanto suas lideranças evangélicas apresentam-se como magnatas, usando dinheiro eclesiástico1. O seminarista ou o jovem evangélico já diz: “Quero ser como ele…”, referindo-se a um destes líderes. 2
Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador midiático, mais se tende a adotar um tom banal. “Se alguém se dirige a uma pessoa, em razão da vulnerabilidade intelectual, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de sentido crítico”, dirá Noam Chomsky. Comunicadores do (anti)evangelho midiático vão ao fundo da questão, com profundo conhecimento na manipulação dos atavismos existentes na natureza da própria humanidade. A ganância em primeiro lugar, antes do sexo e do poder.
O Evangelho, porém, faz gerar novos símbolos que se contraporão às formas de linguagem e aos modelos que sustentam a sociedade consumista, juntamente com os valores desumanos a que recorrem para justificar a competição desigual galopante.
O Evangelho remete à esperança que nos mantém na ante-sala daquela casa transformado em centro teológico, o “seminário” em Cafarnaum (Marcos 9.30-37), aprendendo com Jesus a lição: “Não há nada no mundo que possa contra o homem que canta denunciando a miséria”, disse alguém. Existem coisas profundas e belas nas relações entre homens e mulheres do mundo inteiro, sejam quais forem as suas religiões, ideologias e culturas. A misericórdia, o cuidado e a compaixão pelos despoderados, pequenos, oprimidos e abandonados, são patrimônio da humanidade inteira e símbolo do grande amor de Deus pelos órfãos e viúvas, os desamparados de todas as eras.
O que Jesus revelava era um paradoxo, dos inúmeros de sua pregação em Marcos. O senso comum recusa suas palavras, enquanto sustenta a escalada de privilégios na sociedade, favorecendo o “bem-posto”, o próspero ou o rico. Ou as loterias garantidoras de privilégios. Jesus identificava a acolhida de Deus aos empobrecidos, despojados de dignidade, fracos, com o acolhimento que devemos dar às crianças. Sujeitos que não têm direitos, dignidade, cidadania, nem quem olhe por eles. Os últimos na escala social, os desprezados, “improdutivos”, levados em conta na chegada do Reino de Deus. Informa o Evangelho.
Marcos reúne numa só instrução uma série de sentenças de Jesus, conservadas e transmitidas pelas gerações e tradições primitivas da Igreja. Os socialmente humildes, sem poder econômico, sem-terra, sem-emprego, sem-teto, sem-defesa nas causas levadas aos tribunais.3
Acolher Jesus é ouvir os que não têm voz, título de eleitor, cartão da previdência, plano de saúde, escola de qualidade, teto para morar ou um bicicleta velha; é receber o diferente em sua condição, sexual, racial, social. Os depreciados desse mundo mereceram a atenção de Jesus, segundo o evangelho, por isso não podemos ser diferentes do Mestre. Se Jesus opta pelos vulneráveis, por que escolheremos outro caminho, como o da política partidária, buscando os fins da comunhão de fé atrelada em vantagens eleitorais?
É a graça de Deus que redime o mundo? No Brasil, é a política. Conceito complexo, fugidio, abstrato, face à realidade da população pobre socialmente desassistida, faminta, doente, ignorada no partir do bolo da prosperidade econômica repartido com quem já tem muito. Na redenção política, é sempre o coletivo, o grupo que está no poder que assume o papel de redentor. Provisoriamente, claro, pela alternância. Cabe, porém, a negação das mulheres violadas, crianças morrendo como moscas, jovens vitimados por morte violenta aos 18 ou 20 anos, povos indígenas roubados em seus direitos ancestrais, imigrantes ilegais como sobras à margem do crescimento econômico pretendido.
Dissemos com Drummond de Andrade: “vai ser gauche na vida”, e o mesmo poeta já descobria que “no caminho tinha uma pedra”, que é o espírito do capitalismo egoísta que não nos abandona. Falta democratizar as riquezas que certamente existem neste país. Afinal, não somos a “sexta potência econômica mundial”? O fenômeno da padronização de consumidores e eleitores repercute de forma decisiva sobre os empobrecidos e os despoderados. O vestuário, a utilização dos meios de transporte, o lazer, a proteção e seguridade social, a habitação, a escola, o sistema de saúde, demonstram o quão distantes estão os empobrecidos dos recursos disponíveis e da distribuição dos bens sociais. E vamos às urnas.
Notas
1. Revista Veja, 03/06/2012. Expoente de denominação com mais de 8 milhões de fiéis, exibindo Rolex de 100 mil reais, fala de seus bens: mansões e apartamentos dentro e fora do Brasil, jatinho, carro blindado importado, etc., defendendo a legitimidade da religião da ganância; em seguida comparece na mídia defendendo candidato político.
2. Revista Ultimato, set./out. 2010. Perguntava-se aos jovens evangélicos sobre a personalidade mais admirável. A resposta foi Silas Malafaia em primeiro lugar, Jesus Cristo em quinto.
3. A Gazeta, 20/05/2011. Despejo em Barra do Riacho, Aracruz, ES. Governo autoriza batalhão de 400 soldados e carros de choque da PM para desocupar área de empresa multinacional; hoje, os responsáveis pelo massacre social de milhares comparecem aos palanques de candidatos, eletrônicos ou não, escondendo quem são os heróis dos ricos e poderosos, do judiciário corrupto que vende sentenças, e do eleitorado sem memória
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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