Opinião
- 04 de setembro de 2017
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Quem tem ouvidos para ouvir, ouça
Por Gabriele Greggersen
A parábola é um gênero literário que se encontra entre os textos orais narrativos. Trata-se de uma narrativa que tem um sentido moral, mas que assume uma função inversa à que normalmente atribuímos às histórias narradas, que é a de passar algum ensinamento que se deve entender quase que obrigatoriamente. No caso das fábulas, por exemplo, a moral da história já vem pronta para consumo no final da história. Já a parábola faz o contrário: ela serve para ocultar: “Por essa razão eu lhes falo por parábolas: ‘Porque vendo, eles não vêem e, ouvindo, não ouvem nem entendem’” (Mateus 13.13).
Note a relação de causa e efeito: Jesus não é a causa do ensino por parábolas, mas a nossa cegueira e surdez, ou seja, a dureza da nossa percepção e, consequentemente, do nosso coração. Mas porque dar ao que tem e tirar do que não tem, como se diz no versículo imediatamente anterior? (“A quem tem será dado, e este terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado.”- Mateus 13.12). Por que isso? Jesus não era um grande mestre? E o mestre não revela ao invés de ocultar?
Para entendermos o pulo do gato do uso de parábolas, temos que entender a fórmula que Jesus usava no final das suas narrativas: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Tudo gira em torno da nossa habilidade pessoal de ouvir e ver, mas principalmente, de ouvir. A questão toda é saber se temos os ouvidos certos. Jesus não ensinava usando essa metodologia, porque Ele quis que fosse assim, ou tinha e intenção de ocultar alguma coisa, mas para se colocar no nosso nível e nos desafiar, dentro do nosso limite.
Assim, a parábola cumpre duas funções: Primeiro, ela serve para comunicar numa linguagem simples e econtextualizada, como quem distingue o que dar de comer a uma criança pelo desenvolvimento de seus dentes. Dificilmente uma pessoa em sã consciência vai ter a ideia de oferecer um churrasco a um bebê de colo. Primeiro que ele não vai poder mastigá-lo e, segundo, que ele não vai conseguir apreciar esse tipo de comida em sua tenra idade, preferindo a papinha que, por sua vez, seria sem graça para um indivíduo adulto.
É como lemos nos provérbios: tudo tem seu tempo. E isso é muito pessoal: cada pessoa tem um ritmo particular e o momento certo do insight. Ela pode não entender a parábola naquele instante, mas anos mais tarde, e depois de ter passado por várias experiências, pode se lembrar dela e entendê-la.
Eu por exemplo, não compreendi muito bem o sentido de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa quando vi o desenho animado na infância, mas me encantei e sempre me emocionava com a história E, anos mais tarde, ela viria a se tornar a “porta aberta a qual ninguém pode fechar” (Ap. 3.8) da minha vida. Então, contar parábolas era, sim, um tipo de teste a que Jesus submetia os seus interlocutores, mas cuja intenção não era armar um tribunal de júri, mas adequar-se em seu diálogo, coisa que ele, que era um grande comunicador, fazia o tempo todo. Ajustar a linguagem ao seu público era uma das coisas que Jesus mais fazia. E como o seu público sempre foi heterogêneo, ele optou por usar a linguagem universal e simples das parábolas para se comunicar com o povo todo, os que tinham e os que não tinham ouvidos.
Em segundo lugar, as parábolas têm um sentido altamente educativo e pedagógico. Elas ocultam para revelar. Explico: elas têm o efeito que grandes psicanalistas como Freud e Bruno Bettelheim atribuíram aos sonhos e aos contos de fada, que é o de permitir que a pessoa se aproxime mais de seus problemas, e consiga lidar com eles, através do afastamento.
Ou seja, o sonho, a parábola e o conto de fadas (ou mito) têm a capacidade de causar um impacto inicial na pessoa pelo estranhamento do absurdo, de situações inesperadas ou inusitadas e, no caso dos conto de fada e mitos, personagens fantásticos. Mas esse estranhamento, que permite quase que uma ascensão da alma da pessoa para longe da realidade imediata do aqui e agora, “magicamente” faz com que ela se enxergue como se fosse outra pessoa ao lado dela mesma e passe a olhar para si mesma como que “de fora”. É como o que ocorre na experiência daqueles que passaram pela quase-morte, de saída do corpo. O fato é que, enquanto se está no corpo, tudo se apresenta de forma misturada e mesclada e nada parece fazer sentido e tudo parece assustar, de modo que a pessoa reaja e passe a se fechar para a situação (e consequentemente também para a sua solução). Já quando ela se vê transportada para uma história encantadora, como os contos de fada – dizem as pesquisas de Bettelheim com crianças com deficiência mental –, elas se tornam capazes de encarar o seu problema e achar soluções para os personagens das histórias com os quais se identificaram e assim, para si mesmas.
No entanto os adultos vivem desconfiados de histórias que envolvam fadas, gnomos e feiticeiras porque acham, equivocadamente, que as crianças não são capazes de percebê-los como invenções do inconsciente coletivo.
Fico me perguntando qual teria sido a reação desses pais e educadores diante das parábolas de Jesus em sua época. Certamente também as condenariam por serem fantasiosas demais e por envolverem a grande vilã: a imaginação.
Sem entrar nesse assunto que venho investigando por toda a minha vida acadêmica, basta dizer que a imaginação é um órgão humano como a razão, e que não é boa nem má em si mesma e, como tudo da vida, pode ser usada para ambas finalidades. E que se você – pai, mãe, educador e educadora – não ensinarem aos seus filhos e alunos a usá-la para o bem, não pela sua repressão, mas pelo uso consciente e natural dela, certamente eles vão usá-la para o mal.
A parábola é um recurso maravilhoso, inventado pelo mestre dos mestres para usar a imaginação para o bem e se valer de todo o seu poder para a formação ética da pessoa humana.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Leia mais
Para quem gosta de histórias
Imagem: Károly Ferenczy, Sermon of de Mountain (1896)
A parábola é um gênero literário que se encontra entre os textos orais narrativos. Trata-se de uma narrativa que tem um sentido moral, mas que assume uma função inversa à que normalmente atribuímos às histórias narradas, que é a de passar algum ensinamento que se deve entender quase que obrigatoriamente. No caso das fábulas, por exemplo, a moral da história já vem pronta para consumo no final da história. Já a parábola faz o contrário: ela serve para ocultar: “Por essa razão eu lhes falo por parábolas: ‘Porque vendo, eles não vêem e, ouvindo, não ouvem nem entendem’” (Mateus 13.13).
Note a relação de causa e efeito: Jesus não é a causa do ensino por parábolas, mas a nossa cegueira e surdez, ou seja, a dureza da nossa percepção e, consequentemente, do nosso coração. Mas porque dar ao que tem e tirar do que não tem, como se diz no versículo imediatamente anterior? (“A quem tem será dado, e este terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado.”- Mateus 13.12). Por que isso? Jesus não era um grande mestre? E o mestre não revela ao invés de ocultar?
Para entendermos o pulo do gato do uso de parábolas, temos que entender a fórmula que Jesus usava no final das suas narrativas: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Tudo gira em torno da nossa habilidade pessoal de ouvir e ver, mas principalmente, de ouvir. A questão toda é saber se temos os ouvidos certos. Jesus não ensinava usando essa metodologia, porque Ele quis que fosse assim, ou tinha e intenção de ocultar alguma coisa, mas para se colocar no nosso nível e nos desafiar, dentro do nosso limite.
Assim, a parábola cumpre duas funções: Primeiro, ela serve para comunicar numa linguagem simples e econtextualizada, como quem distingue o que dar de comer a uma criança pelo desenvolvimento de seus dentes. Dificilmente uma pessoa em sã consciência vai ter a ideia de oferecer um churrasco a um bebê de colo. Primeiro que ele não vai poder mastigá-lo e, segundo, que ele não vai conseguir apreciar esse tipo de comida em sua tenra idade, preferindo a papinha que, por sua vez, seria sem graça para um indivíduo adulto.
É como lemos nos provérbios: tudo tem seu tempo. E isso é muito pessoal: cada pessoa tem um ritmo particular e o momento certo do insight. Ela pode não entender a parábola naquele instante, mas anos mais tarde, e depois de ter passado por várias experiências, pode se lembrar dela e entendê-la.
Eu por exemplo, não compreendi muito bem o sentido de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa quando vi o desenho animado na infância, mas me encantei e sempre me emocionava com a história E, anos mais tarde, ela viria a se tornar a “porta aberta a qual ninguém pode fechar” (Ap. 3.8) da minha vida. Então, contar parábolas era, sim, um tipo de teste a que Jesus submetia os seus interlocutores, mas cuja intenção não era armar um tribunal de júri, mas adequar-se em seu diálogo, coisa que ele, que era um grande comunicador, fazia o tempo todo. Ajustar a linguagem ao seu público era uma das coisas que Jesus mais fazia. E como o seu público sempre foi heterogêneo, ele optou por usar a linguagem universal e simples das parábolas para se comunicar com o povo todo, os que tinham e os que não tinham ouvidos.
Em segundo lugar, as parábolas têm um sentido altamente educativo e pedagógico. Elas ocultam para revelar. Explico: elas têm o efeito que grandes psicanalistas como Freud e Bruno Bettelheim atribuíram aos sonhos e aos contos de fada, que é o de permitir que a pessoa se aproxime mais de seus problemas, e consiga lidar com eles, através do afastamento.
Ou seja, o sonho, a parábola e o conto de fadas (ou mito) têm a capacidade de causar um impacto inicial na pessoa pelo estranhamento do absurdo, de situações inesperadas ou inusitadas e, no caso dos conto de fada e mitos, personagens fantásticos. Mas esse estranhamento, que permite quase que uma ascensão da alma da pessoa para longe da realidade imediata do aqui e agora, “magicamente” faz com que ela se enxergue como se fosse outra pessoa ao lado dela mesma e passe a olhar para si mesma como que “de fora”. É como o que ocorre na experiência daqueles que passaram pela quase-morte, de saída do corpo. O fato é que, enquanto se está no corpo, tudo se apresenta de forma misturada e mesclada e nada parece fazer sentido e tudo parece assustar, de modo que a pessoa reaja e passe a se fechar para a situação (e consequentemente também para a sua solução). Já quando ela se vê transportada para uma história encantadora, como os contos de fada – dizem as pesquisas de Bettelheim com crianças com deficiência mental –, elas se tornam capazes de encarar o seu problema e achar soluções para os personagens das histórias com os quais se identificaram e assim, para si mesmas.
No entanto os adultos vivem desconfiados de histórias que envolvam fadas, gnomos e feiticeiras porque acham, equivocadamente, que as crianças não são capazes de percebê-los como invenções do inconsciente coletivo.
Fico me perguntando qual teria sido a reação desses pais e educadores diante das parábolas de Jesus em sua época. Certamente também as condenariam por serem fantasiosas demais e por envolverem a grande vilã: a imaginação.
Sem entrar nesse assunto que venho investigando por toda a minha vida acadêmica, basta dizer que a imaginação é um órgão humano como a razão, e que não é boa nem má em si mesma e, como tudo da vida, pode ser usada para ambas finalidades. E que se você – pai, mãe, educador e educadora – não ensinarem aos seus filhos e alunos a usá-la para o bem, não pela sua repressão, mas pelo uso consciente e natural dela, certamente eles vão usá-la para o mal.
A parábola é um recurso maravilhoso, inventado pelo mestre dos mestres para usar a imaginação para o bem e se valer de todo o seu poder para a formação ética da pessoa humana.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
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Para quem gosta de histórias
Imagem: Károly Ferenczy, Sermon of de Mountain (1896)
É mestre e doutora em educação (USP) e doutora em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
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