Opinião
- 01 de junho de 2012
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Quem disse que ciência e fé são inimigas?
Todas as coisas têm a sua própria história, inclusive sobre o relacionamento entre os “Dois Livros” dados por Deus: o Livro dos livros (B) e o livro da natureza (N). Mas, às vezes, parece haver um conflito, até guerra entre os dois. No artigo anterior imaginamos que fossem como “livros” em uma estante com duas prateleiras. Também notamos que a discussão sobre este assunto não ocorre na prateleira base de como se fossem duas edições diferentes de um mesmo livro, mas sim na prateleira de cima, a saber entre os comentaristas sobre esses dois livros básicos (cB↔cN). E percebemos ainda que esta discussão é causada frequentemente por enganos na interpretação dos livros (↓↘ e ↙↓). Ocasionalmente há uma tendência de desqualificar a conjuntura entre os relatos da Bíblia e as observações da natureza, mas a visão dos “dois livros” tem documentos históricos muito respeitáveis. Neste artigo vamos ver uns retratos falados guardados no arquivo da família cristã sobre esse relacionamento entre esses ‘dois livros’, a Bíblia e a natureza.*
1. Apologistas e reformadores
Por volta de 200 A.D., um certo Minúcio Felix escreveu (em latim) sua apologia Octavius na qual ele refutou a crítica pagã contra o cristianismo. Numa praia de Óstia, enquanto dois meninos estão jogando pedrinhas achatadas sobre a superficie da água, o cristão Octavius mantem um diálogo com um amigo sobre o Criador. Usando argumentos de Cícero, ele rejeita o atomismo ateísta grego que tudo no universo seria um mero aglomerado de átomos. Para Octavius parece que quem pensa assim não reflete o suficiente sobre a complexidade da natureza porque tudo mostra que deve ter sido o artista mais inteligente para formar tudo isso. Pouco depois desta apologia de Felix apareceu a conhecida metáfora, usada até hoje: ver a natureza significa ler o “livro da natureza”.
Também ambos os reformadores Lutero (†1546) e Calvino (†1564) enfatizaram que o livro da natureza deve ser estudado à luz do Livro dos livros. Ao mesmo tempo reconheceram que a Bíblia fala sobre a natureza em termos não científicos, usando a linguagem do homem comum. Esta é uma regra importante na hermenêutica bíblica.
2. Kepler e Boyle
O astrônomo João Kepler (†1630), luterano, o qual descobriu as leis que governam os movimentos dos planetas, estava convencido que Deus usou qualidades geométricas ao organizar o firmamento, e que o estudo astronômico era um trabalho que glorificava a Deus, pois a Bíblia fala com muita apreciação sobre o livro da natureza. Seu contemporâneo Galileo Galilei (†1642), católico, lembrou que a Bíblia fala em primeiro lugar sobre “como vamos ao céu”, e não “como os céus vão”. Aparentes contradições entre os dois livros de Deus podem ser causadas tanto por observações errôneas dos céus como por interpretações superficiais do texto bíblico.
O filósofo inglês Francis Bacon (†1626), anglicano, defendeu que fatos somente podem ser estabelecidos por experiências. Por isso se requer profundo estudo do ‘livro da Palavra de Deus’ e do ‘livro das obras de Deus’, o qual nos fornece a chave para entender bem a Escritura. O mais consequente ‘baconiano’ era o filósofo e químico Robert Boyle (†1691). Ele não quer separar teologia e ciências naturais, pois Deus é o autor de ambos os “livros”, que não podem se contradizer. Boyle concorda com Bacon de que estudos naturais superficiais podem levar incidentalmente ao ateísmo, mas estudos profundos levam de volta à religião.
As “Palestras de Boyle” (1692-) foram instituídas na base de um legado deixado por Boyle ‘para apoiar a religião cristã contra descrentes notórios’ através de preleções como ele mesmo já tinha feito. Essas palestras (“lectures”) trouxeram muitas conferencistas que defenderam a existência de Deus na base de observações da natureza, estudos conhecidos como “fisico-teológicos”. O próprio Isaac Newton ficou feliz ao saber que seu livro sobre as leis da gravidade serviu para levar as pessoas a acreditarem em Deus.
3. Euler e Maxwell
O suiço Leonhard Euler (†1783), filho de pastor reformado, era o maior matemático do século 18. Desde que o racionalismo combatia a revelação divina, ele escreveu uma apologia em que usou cálculos para provar que o mundo devia ter tido um começo e teria sem dúvida um fim, exigindo o reconhecimento da intervenção de Deus na história.
James C. Maxwell (†1879), físico escocês, mandou colocar Salmo 111.2 sobre a entrada do laboratório onde trabalhava, mas evitou temas religiosos num contexto estritamente científico, e vice-versa. Desde que hipóteses científicas mudam mais rapidamente do que as interpretações bíblicas, não convém basear uma interpretação numa hipótese já sepultada.
4. Gray e Stokes
Asa Gray (†1888) era botânico na universidade de Harvard. Ele se confessava “cientificamente um darwinista, filosoficamente um teista e religiosamente um cristão” (baseando-se na Confissão de Nicéia. 325 A.D.). Apontava para o projeto claro na natureza, independente da sua origem.
George Stokes (†1903) trabalhava na universidade de Cambridge. Foi professor de Maxwell e apontava para a impossibilidade de pensar que orgãos complexos como o olho pudessem ter originados por acaso, requerendo um projeto. Reconhecia abertamente a metáfora dos “dois livros” dados por Deus, que não podem ter contradições quando intrerpretados corretamente. Mas, sendo convencidos da verdade da revelação, podemos nos enganar na amplitude ou na interpretação da mesma. Por outro lado, teorias científicas, por definição, não são mais do que prováveis, sempre sendo possível que mais conhecimento e entendimento possam levar a mudança de opinião.
Conclusão
A posição de Stokes sobre os “dois livros” resume a opinião equilibrada de muitos cientistas e teólogos através dos séculos. Isto deve ser o suficiente para um alerta crítico sobre a posição de que existe uma guerra entre ciência e fé como sugerido por ateístas fundamentalistas, entre eles seu sumo sacerdote Richard Dawkins. Obviamente a metáfora de “guerra” entre os “dois livros” não é adequada. O professor Hooykaas foi feliz quando disse: “Nem tudo que é científico é necessariamente verdade, e nem tudo que é verdade é necessariamente científico”. Para a discussão atual se requer, como a dezoito séculos atrás naquela brincadeira com as pedrinhas sobre a água, uma visão clara e uma posição encurvada, ou seja uma atitude de humildade.
Nota:
* Este resumo adaptado se baseia num artigo do Dr. Cees de Pater, “De kunst van het keilen” (A arte de jogar pedrinhas sobre a água) na revista Soφie I-5, p4ss (Amsterdam, 2011). Professor De Pater leciona história das ciências na Universidade Livre (Vrije Universiteit, VU), Amsterdam, Holanda. O primeiro professor nesta cadeira da VU era o conhecido Dr. Reijer Hooykaas (f 1994).
Francisco Leonardo Schalkwijk mora na Holanda com sua esposa Margarida, com quem serviu como missionário no Brasil por quase 40 anos. É doutor em história e pastor emérito da Igreja Evangélica Reformada. É autor de Confissão de Um Peregrino, "Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630 - 1654" e da gramática grega Coine.
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