Opinião
- 21 de agosto de 2020
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Que Bíblia lemos?
Por Usiel Souza
Certa ocasião, um perito na lei levantou-se para pôr Jesus à prova e lhe perguntou: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”
“O que está escrito na Lei?”, respondeu Jesus. “Como você a lê?”
(Lucas 10:25-26)
Como um rabino, Jesus respondeu à pergunta do perito na Lei com outra pergunta. Na verdade, com duas outras perguntas. A primeira foi fácil de responder. O perito sabia o que estava escrito na Lei e citou o texto perfeitamente. A segunda requereu um esforço maior. Dizia respeito à maneira como ele a compreendia. E é sobre esta pergunta que lhe convido a refletir. Como temos lido as Escrituras?
Há algum tempo ouvi um líder cristão brasileiro, que admiro muito, responder à pergunta: “Qual é o problema dos cristãos evangélicos brasileiros?” A pergunta tinha sido feita em resposta à clara divisão e às posições antagônicas dos evangélicos e de seus líderes no ambiente público, entre outras questões. Ele foi direto: “A Bíblia”. Levou alguns minutos para entender a resposta dele plenamente. E eu a entendi ao lembrar daquela conversa entre Jesus e o perito na Lei.
A maneira como lemos a Bíblia revela raízes profundas, assim como concepções de vida do ser humano, de Deus e de nós mesmos. Portanto, nem todos nós lemos a mesma Bíblia, embora seja o mesmo livro. As diferenças em nossa compreensão de leitura não são realmente o problema. A questão é que podemos lê-la de maneira antagônica e irreconciliável. Há leituras pobres que levam a uma espiritualidade pobre!
Martin Luther King Jr. não leu a mesma Bíblia que a Ku Klux Klan. Ele também divergiu em sua leitura da maioria dos evangélicos do sul dos Estados Unidos, em particular. Dietrich Bonhoeffer não leu a mesma Bíblia que a igreja alemã. As igrejas alemãs que permaneceram em silêncio diante dos horrores nazistas liam a “mesma” Bíblia de uma maneira completamente diferente da do jovem teólogo. As diferenças de leitura e postura continuam por toda parte! Que Bíblia lemos? Será que nosso Senhor a leria como nós a lemos?
Voltando ao diálogo entre Jesus e o perito da Lei, deparamos com o mesmo problema ou desafio atual – o significado que damos ao que lemos e as implicações que aceitamos para nossas vidas ao ler a Bíblia. Ela foi escrita, mas como deve ser vivida? Desafiado pelo dever de amar a Deus e aos nossos semelhantes, o perito na Lei não tinha certeza sobre quem deveria ser essa pessoa. Curiosamente, ele não tinha dúvidas em relação a amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento.
Às vezes tenho a sensação de que, como ele, nos tornamos especialistas em Deus. Sabemos tudo sobre a sua natureza divina. Sabemos do que Deus gosta e não gosta, o que Deus aceita e do que Deus não gosta, quem tem uma chance com Deus e quem não tem. Mas, tal como aquele perito na Lei, somos ignorantes em relação a quem são as outras pessoas. Não sabemos quem são. Não vemos isso como nossa responsabilidade. Somos ávidos para julgar e lentos para ter misericórdia. E nem todo semelhante é aceitável ou candidato para receber o nosso amor. De alguma forma, nosso amor tem alguns critérios que significam que algumas pessoas precisam negar a si mesmas para poder prová-lo. Esquecemos que esse critério pertence a Cristo e não a seus seguidores.
Tudo isso me leva a ponderar se 2 mil anos depois que Jesus e o perito na Lei conversaram, nós entendemos o Evangelho que Jesus vivenciou. Construímos templos, criamos liturgias, formamos religiões, escrevemos doutrinas e sistematizamos a Deus. Também organizamos movimentos, criamos redes, lançamos projetos e escrevemos declarações. Ainda assim, em vez de sermos mais fortes e unidos, somos mais fracos e divididos. E até nos antagonizamos! A segunda pergunta de Jesus é muito relevante para nós. A resposta que surge requer reflexão, oração e conversas. Como temos lido a Bíblia? Com que olhos, coração e mente? Com que perspectivas, suposições e preconceitos? Nossas atitudes em relação aos outros revelam a nossa leitura. O que sabemos sobre as pessoas é talvez mais importante do que afirmamos saber sobre Deus ao lermos a Bíblia.
Penso que não podemos conhecer bem a Deus se não conhecemos os nossos semelhantes. E um verdadeiro conhecimento de Deus nos levará a conhecer melhor o nosso “próximo”. O nosso próximo é tão importante em nosso relacionamento com Deus que, na perspectiva apresentada por Jesus em Mateus 25, o único que servirá a Deus é aquele que serve ao seu próximo.
Você pode não ter lido a Bíblia toda uma única vez, do começo ao fim. Considere ler mais! Você pode tê-la lido dezenas de vezes, do começo ao fim, e até mesmo ter uma medalha ou certificado de honra por sua louvável disciplina. Continue lendo! Mas não deixemos de nos avaliar quanto às nossas posturas e atitudes em relação à vida e às pessoas. O livro de Atos chama a nossa fé de "O Caminho". O escritor da carta aos Hebreus disse que Jesus inaugurou um caminho novo e vivo para nós. Se estamos "no Caminho", sabemos que às vezes ele é suave, simples e plano. No entanto, às vezes é difícil, complexo e acidentado. Isso requer fé e coragem. Coragem para ver, ouvir e compreender. Coragem para aceitar, arrepender-se e corrigir os nossos erros. Requer aprender a abandonar os caminhos errados e descobrir novos caminhos, porque a graça está viva em sua manifestação na história. É o aroma do vinho novo que sempre requer odres novos. A nossa fé é um caminho de discípulos e não de adeptos.
O que está escrito? Como se lê? Que nós, auxiliados pelo Espírito Santo, sejamos capazes de ler nossas Bíblias de tal forma que o Reino de Deus se manifeste e que sejamos, cada um de nós, sinais vivos da presença de Deus.
• Usiel Souza, pastor e membro do Conselho de Administração da Miqueias Global / Brasil.
>> Conheça os livros Para Entender a Bíblia (John Stott) e O Caminho – Meditações Diárias (Stanley Jones)
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