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Opinião

Qual é o pior de todos os regimes políticos? C. S. Lewis responde

Por Carlos Caldas

Aristóteles de Estagira, que viveu no século terceiro antes do nascimento de Jesus, foi um dos filósofos mais importantes e influentes de todos os tempos. Discípulo de Platão, que por sua vez fora discípulo de Sócrates, foi também o tutor do então jovem Alexandre, filho do Rei Felipe da Macedônia. Anos mais tarde seu aluno seria conhecido como Alexandre, o Grande. 

É difícil um assunto a respeito do qual Aristóteles não tenha comentado. Um, dentre tantos, foi a política. É dele a frase tantas e tantas vezes repetida, que afirma ser o homem – “humano” – um ζῷον πoλίτικoν – zoon politikón, que em bom português significa literalmente “animal político”. O filósofo grego se referia à vida na polis (literalmente, “cidade”), isto é, a sociedade. Isto porque o ser humano é uma criatura gregária por natureza. Precisa viver em grupo, em comunidade. Para tanto, há que se ter regras. Sem normas, leis que ordenam ou proíbem, a vida humana em grupo é completamente impossível. Aristóteles sistematizou sua compreensão das formas e regimes políticos em dois grupos, quais sejam, os modelos puros, ou justos (realeza, aristocracia e república) e os impuros, ou corruptos (tirania, oligarquia e democracia). Democracia era para Aristóteles um modelo político corrupto? Soa estranho não é mesmo? Vamos entender o que o Estagirita queria dizer com isso. Democracia significa “governo do povo”. A democracia seria uma forma de governo impura para Aristóteles se entendida como um modelo absolutamente sem restrições de qualquer tipo. Neste caso, que fique bem entendido, a democracia se tornaria uma tirania. Seria impossível uma sociedade na qual todo mundo fizesse o que bem entendesse. É nesse sentido que Aristóteles apresenta a democracia como uma forma de governo impura.

Pois bem, nós que vivemos, grosso modo, 23 séculos depois de Aristóteles, sabemos, pelo estudo da história, que a humanidade já experimentou e experimenta todos estes modelos políticos. Daí surge uma pergunta: Qual é o pior regime político de todos? Se fizermos esta pergunta a C. S. Lewis ele nos dará uma resposta que poderá surpreender quem não conhece o seu pensamento. Antes de prosseguir, um esclarecimento breve, mas importante: Lewis não escreveu apenas sobre temas de crítica literária, educação, literatura de fantasia ou teologia. Além destes, pelos quais se tornou tão conhecido, ele também dissertou sobre política em vários de seus ensaios. Esclarecimento feito, podemos prosseguir. Alguém poderá pensar que se alguém perguntasse a Lewis qual seria o pior regime político de todos, ele, que na sua maturidade de vida testemunhou a polarização da Guerra Fria, responderia: “a tirania do comunismo materialista ateu”. Ledo engano (como diz um amigo meu, “Ledo Ivo engano...”). Para Lewis a teocracia é o pior de todos os regimes políticos. Isso mesmo que você acabou de ler: para Lewis, a teocracia é o pior de todos os regimes políticos. Ouçamo-lo:   



Eu sou democrata porque acredito que nenhum homem ou grupo de homens é bom o suficiente para lhe ser confiado poder absoluto sobre os outros. E, quanto mais altas as pretensões de tal poder, mais perigoso eu o considero, tanto para os governantes quanto para os súditos. Daí ser a teocracia o pior de todos os governos. Se nos for necessário um tirano, um barão ladrão é muito melhor do que um inquisidor. A crueldade do barão pode, às vezes, amainar, e em algum momento sua cobiça será saciada; além disso, como ele sabe vagamente que está agindo de modo errado, pode se arrepender. Mas o inquisidor, que confunde a própria crueldade e o desejo de poder e de medo com a voz do céu, nos atormentará infinitamente, porque o faz com a aprovação de sua própria consciência, e seus melhores impulsos lhe parecem como tentações. E, uma vez que a teocracia é o pior, quanto mais qualquer governo se aproxima da teocracia, pior ele será. Uma metafísica, quando sustentada pelos governantes com a força de uma religião, é um sinal ruim. Ela os proíbe, como o inquisidor, de admitir algum grão de verdade ou de bem nos oponentes, anula as regras comuns da moralidade e dá uma sanção aparentemente exagerada e pessoal em extremo a todas as paixões humanas muito comuns pelas quais, como os demais homens, os governantes serão frequentemente impulsionados. Em uma palavra, ela proíbe a dúvida saudável1.
  
Vamos lembrar o óbvio: Lewis viveu no tempo da União Soviética, antes da queda do Muro de Berlim, ou seja, um contexto totalmente diferente do nosso. Mesmo assim ele escreveu com todas as letras que o pior, o mais nefasto e mais perigoso de todos os regimes políticos é o que, para manter seu poder, apela para os sentimentos religiosos das pessoas. Poucas realidades na vida são tão sensíveis e falam com tanta força às emoções como o fenômeno religioso. Daí o perigo da teocracia, um governo que pretende ter sua autoridade derivada, não do povo, como a democracia, nem de um grupo de pessoas, como a oligarquia, nem mesmo de uma pessoa só, como a monarquia, mas do próprio Deus. A crítica de Lewis é cirurgicamente precisa: quem se apresenta como enviado de Deus será muito, mas muito pior do que quem se apresenta como eleito por um grupo ou até mesmo por quem se apresenta como enviado por si mesmo. Em um aforisma que se tornou muito conhecido Lewis disse que de todos os homens maus, os religiosos são os piores. Por quê? Porque acreditam que são enviados de Deus e, por isso, julgam-se no direito de impor suas opiniões e vontades a todos, e, pior ainda, de perseguir, ou até mesmo eliminar, quem pensa diferente. Um exemplo concreto, dado pelo próprio Lewis em outro de seus ensaios: ele disse que, como cristão, detestaria se houvesse um governo islâmico que proibisse os cidadãos de beber cerveja (no islamismo, o consumo de álcool é tido como pecado). Pelo motivo exposto, a despeito de sua simplicidade, Lewis disse que detestaria uma teocracia islâmica. Mas, de maneira coerente com seu próprio pensamento, ele era também radicalmente contrário a uma teocracia cristã. A teocracia, não importa se de matriz islâmica, hindu ou cristã, não dá ao “outro” o direito de existência. Por isso é de fato o pior de todos os regimes políticos. A teocracia é perigosa demais.
 
Aplicando o pensamento de Lewis ao contexto brasileiro contemporâneo: o Brasil é estado laico, sem religião oficial. Durante séculos o catolicismo romano foi a religião estatal. Quando os protestantes se estabeleceram de maneira definitiva no país no século 19, e pouco mais tarde, a partir do 20, sempre lutaram para que o Brasil fosse de fato um estado laico. Nesse sentido, é uma contradição, para dizer o mínimo, quando se vê hoje evangélicos, pentecostais e não pentecostais, buscando cada vez mais poder no espaço público, mas para quê? Para promover o bem-estar social, a justiça socioeconômica, a defesa do estado democrático de direito e a preservação do meio ambiente? Infelizmente a resposta para esta pergunta é não. O que se vê é uma busca de poder pelo poder. Alguns segmentos evangélicos falam desavergonhadamente que é hora de “dominar” a sociedade, em todas as suas esferas. Quem pensa assim não entendeu nada quando Jesus falou que veio, não para ser servido, mas para servir (cf. Marcos 10.45). 
 
É triste ver a falta de senso crítico de tantos evangélicos que vibram com o lema “Deus acima de todos”, lema que este soa piedoso e devoto, mas que na verdade, não é cristão. A teologia que prega “Deus acima de todos” tem mais a ver com o islamismo que com o cristianismo. Na teologia islâmica Alá está mesmo acima de tudo e de todos. Em contraste, a teologia cristã entende que Jesus de Nazaré é a revelação máxima de Deus. E em Jesus vemos não quem está acima de todos, mas quem se humilha, quem se coloca como servo, e não como senhor. A história nos ensina que quando líderes políticos usam chavões religiosos (aparentemente) piedosos é porque não têm projeto nem proposta para o que é importante para todos na sociedade, como educação, saúde, arte, lazer e cultura. 
Deus nos livre da teocracia. 
 
Notas
1- C. S. Lewis. Uma resposta ao Professor Haldane. In Sobre histórias. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2018, p. 137-138, ênfases acrescentadas.

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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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