Opinião
- 01 de março de 2012
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Profetismo -- item esquecido da missão integral
Robinson Cavalcanti
A missão integral da Igreja não é uma corrente teológica contemporânea, mas a explicitação do conteúdo da missão, conforme o exemplo e o ensino de Jesus Cristo. Ao longo da história, aspectos dessa missão têm sido sub ou superenfatizados. A Igreja legitima a própria existência como agência missionária na totalidade da missão a ela confiada, na diversidade de dons e vocações dos integrantes e nas possibilidades e oportunidades de cada conjuntura. A missão integral inclui cinco itens: evangelismo (“kerigma”), comunhão (“koinonia”), ensino (“diakonia”), serviço e profetismo (estes na “diakonia”). Denominados “avenidas da missão” pela Conferência de Lambeth de 1988 dos bispos anglicanos, eles são assim definidos: 1) proclamar o evangelho do reino de Deus; 2) batizar e integrar os convertidos a uma comunidade de fé; 3) ensinar todo o conselho de Deus; 4) despertar no coração dos fiéis respostas de misericórdia às necessidades humanas; 5) denunciar as estruturas iníquas da sociedade, defender a vida e a integridade da criação. A missão integral foi esquartejada contemporaneamente pela polarização entre o “evangelho individual” e o “evangelho social” e seus derivativos, como o fundamentalismo e a teologia da libertação. O Brasil foi, depois, afetado por essa polarização parcializante e mutilante.
Conservadores não têm problema com o evangelismo, a integração a uma igreja ou o ensino. Porém, nem sempre estiveram livres do reducionismo de uma “graça barata”, do sectarismo ou de ensinos de escassa (ou nenhuma) base bíblica. Alguns aceitam a necessidade do serviço como “isca” para o evangelismo ou como forma opcional e bondosa de “caridade”, enquanto outros pensam que a responsabilidade social é do governo ou que os problemas sociais decorrem apenas de pecados individuais, e a conversão é o que interessa. A dimensão profética é ignorada ou negada, seja pelo pessimismo escatológico pré-milenista e pré-tribulacionista, seja pelo adesismo acrítico aos sistemas políticos e econômicos (“obedecer às autoridades”), seja pela sacralização destes sistemas pela “civilização ocidental” ou pelo destino manifesto de um país “escolhido” como ensaio da nova humanidade. Liberais tendem a não se envolver com o evangelismo, visto pejorativamente como “proselitismo”, além de desnecessário para uma soteriologia universalista (todos salvos) em que o batismo e a vinculação à Igreja são algo bom, mas opcional, pois “Jesus veio para trazer o reino e não para criar a Igreja”. Para eles, esta é uma instituição transitória, e o ensino deve ser plural e especulativo, pois a Bíblia é uma literatura religiosa humana plena de erros e a verdade revelada absoluta não existe; ensiná-la é fomentar alienação, intolerância, misoginia, sexismo e homofobia. Quanto ao serviço, alguns o acham necessário enquanto uma sociedade utópica não virar tópica, e outros o combatem por ser um mero paliativo alienante, obstáculo às reformas estruturais necessárias. A missão se reduz ao profetismo sempre atrelado a uma ideologia secular, como foi, por um tempo, o nazismo ou o marxismo.
O evangelicalismo, que tem procurado resgatar a integralidade da missão em todas as dimensões, deságua no Movimento de Lausanne e tem expressões regionais, como a Fraternidade Teológica Latinoamericana (FTL). O Pacto de Lausanne ou a Declaração de Jarabacoa, da FTL, sobre a responsabilidade política dos cristãos, são documentos sólidos relativos ao que os católicos romanos chamam de “doutrina social da Igreja” e os protestantes, de “pensamento social cristão”. Na prática, porém, evangelismo, comunhão e ensino formam a “missão quase integral” -- tanto nacional quanto importada, com o serviço extremamente débil (“boas obras é negócio para católico querendo escapar do purgatório ou de espírita querendo uma melhor reencarnação”) --, não considerada como evidência necessária e desdobramento da salvação (“para que nelas andássemos”). O profetismo é algo ausente do que se crê, do que se ensina e do que se pratica. Se as utopias seculares “foram para o espaço”, “levando de roldão” a esquerda teológica -- hoje relativista, cética ou mística, acendendo incenso ou abraçando árvores --, a direita teológica ainda a vê como “coisa de comunista” e afirma que não adianta fazer nada, pois o mundo vai de mal a pior e, já que as pessoas vão mesmo ferver no inferno, é bom que comecem ensaiando neste mundo. A defesa da integridade da criação (ecoteologia) divide os cristãos quanto à consciência e à atitude, bem como a defesa da vida no tocante ao aborto, à eutanásia, à tortura e às desigualdades sociais. Isso porque, para além de meras opções individuais, ou algo histórico e cultural, elas decorrem de políticas públicas, decididas por governantes concretos, seus partidos, programas e ideologias, que representam interesses econômicos.
Os cristãos não querem sair da zona de conforto, se engajar, se libertar da imprensa manipuladora, lançar mão das ferramentas das ciências sociais, se chocar com os donos do poder (aliados na troca clientelística de interesses), ou porque os “filhos do rei” querem integrar o “andar de cima” (sinal da bênção da prosperidade), e essa coisa de ética e “denunciar as estruturas iníquas da sociedade” pode resultar em perda de emprego, cadeia ou perda de vida (esse negócio de martírio...).
“A tarefa da Igreja é uma só: mudar o mundo” (Charles Finney).
Texto publicado na edição 335 da revista Ultimato (março-abril)
Texto publicado na edição 335 da revista Ultimato (março-abril)
Foi bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada. Faleceu no dia 26 de fevereiro de 2012 em Olinda (PE).
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