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Precisamos falar sobre racismo
Por Alexandre Brasil | Resenha
"Sem a confissão do pecado do racismo, da supremacia branca, do privilégio branco, as pessoas brancas que se autodenominam cristãs nunca serão livres."
Jim Wallis, fundador do Sojourners
A questão racial é fundamental para se entender a realidade brasileira, e não foi por acaso que os primeiros intelectuais se debruçaram sobre este tema em suas interpretações sobre o Brasil. Tanto com o “racismo cordial”, abordado por Sérgio Buarque de Holanda, ou ainda com a inacreditável e deletéria “democracia racial”, alardeada por Gilberto Freyre. Em outra chave, e menos badalado, temos a importante contribuição de Manoel Bomfim que identificou na questão racial os “males de origem” da América Latina.
Mais recentemente é o sociólogo peruano Anibal Quijano que trouxe importantes aportes ao defender o par conceitual modernidade/colonialidade como central para se compreender a América Latina, olhando especialmente para a opressão racial nos processos ocorridos no continente nos últimos séculos.
A importância desta temática é explicitada de forma bastante acessível no primeiro volume da trilogia que o jornalista e escritor Laurentino Gomes está desenvolvendo sobre a escravidão. O primeiro livro leva o título Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros) e foi publicado em 2019. Neste texto comento alguns tópicos que me vieram à mente a partir da leitura do livro.
No relato bíblico, a primeira história após a separação do ser humano de Deus é de um fratricídio. Por motivo banal, uma pessoa mata o seu próprio irmão. A história humana é marcada por conflitos, agressões, guerras e invasões. Neste processo, a compra e a venda de seres humanos era visto como algo natural até, pelo menos, o século 18. A humanidade poderia ser lida através da lente pela qual as pessoas se dividiam entre aquelas, ou seus ancestrais, que foram escravizadas e aquelas, ou seus ancestrais, que foram donas de escravos.
O grande impacto da escravidão se dá, obviamente, no continente africano. Durante dezenas de anos, cerca de 24 milhões de pessoas foram escravizadas e removidas de suas terras, afastadas de suas famílias. Calcula-se que dois terços eram homens. A estimativa é de que 60%, cerca de 15 milhões, tenham morrido sem chegar ao “novo continente”. Esse número é próximo ao total da população brasileira no início do século 20. O impacto disso para a atual pobreza e miséria africana nunca será devidamente dimensionado.
É na América, do Norte e do Sul, que a escravidão ganha contornos mais específicos e consequências mais profundas. Se, até então, a escravidão se relacionava a um processo de subordinação e negação de direitos, no novo continente passa a representar um importante componente econômico. Os escravos passam a atuar menos nas atividades domésticas e assumem papel central no sistema. Representam uma engrenagem fundamental para a produção de riqueza por meio de trabalho intensivo, seja nas grandes plantações ou na mineração, desempenhando posição similar às linhas de produção que caracterizariam as fábricas da Revolução Industrial que seriam formadas a partir do século 18.
O comércio de escravos criou mercado, estabeleceu profissões especializadas como a de “marcador de negros” e definiu uma estrutura legal e burocrática estatal. O livro de Gomes também revela uma faceta dessa era pré-capitalista. Por três ou quatro meses de um trabalho que envolvia pegar pessoas escravizadas na África e levá-las às Américas, até se conseguir a sua venda, as remunerações das diferentes posições eram profundamente desiguais. Um capitão negreiro recebia entre 500 e 750 mil reais por viagem, em valores atualizados, enquanto um marinheiro comum recebia algo em torno de 4 mil reais.
Outra diferença, ainda mais cruel, existente na escravidão no continente americano foi a sua associação à cor de pele. Foi aqui que se estabeleceu a interpretação de que negros e negras seriam inferiores e que se naturalizou a exploração do trabalho cativo africano. Vários foram os que entenderam que não caberia o mesmo aos indígenas, que estes teriam alma, sendo que parece que houve boa parte de concordância de que em relação aos negros seria diferente e que era totalmente adequada a sua escravidão. Seriam os negros naturalmente idólatras, consequentemente descartáveis e, provavelmente, somente por meio da servidão poderiam encontrar alguma “salvação”.
A religião cristã desempenhou papel central ao corroborar esta interpretação, inclusive com espaço para interpretações bíblicas errôneas relacionadas à maldição de Cam. Interpretação que incrivelmente ainda é compartilhada por alguns hoje. Isso se explica muito mais pela naturalização do racismo, por uma ideologia que se impregnou em nossa sociedade e que ainda hoje considera razoável ver meninos e meninas desamparadas nas ruas como algo natural, se a cor destes for preta. Se compadecem com brancos que são presos por tráfico ou atos de violência e que aparecem como jovens nos jornais, enquanto negros em situação similar não merecem o mesmo tratamento e são classificados como delinquentes, traficantes ou congêneres. Parecem não se incomodar com as imagens dos corpos negros que engrossam as estatísticas de mortes e extermínios de forma cotidiana nas grandes cidades brasileiras.
No passado, foi o discurso religioso que deu o amálgama necessário para estabelecer a narrativa que movimentou as cruzadas e a exploração de territórios, recursos naturais e humanos. Foi esse discurso que justificou diversos atos de violência, estupros e assassinatos, foi ele que deu, como afirma Gomes, um “verniz missionário a empreendimentos cuja verdadeira motivação era militar, mercantil e econômica”.
Não muito depois, foi o mesmo discurso religioso que deu as bases para o desenvolvimento de outras iniciativas racistas pelo mundo afora. Seja no sul dos Estados Unidos, nos diferentes movimentos que deram conformidade à Ku Klux Kan, como, por exemplo, com o pregador evangélico William Joseph Simmons, liderança do segundo movimento iniciado em 1915, que se apresentava como clérigo, afirmando que se orgulhava por isso. Também cabe lembrar do doutor em divindade e pastor da Igreja Reformada, Daniel François Malan, que, como primeiro ministro da África do Sul, foi o responsável, em 1948, pela implementação do apartheid, regime que assumia a segregação racial e afirmava que negros e mestiços eram inferiores aos brancos.
Os exemplos do papel desempenhado pela religião para matar, destruir, segregar e eliminar são abundantes, hoje e no passado. Geralmente, ao lado do discurso de ódio e do racismo há fortes interesses e elementos econômicos envolvidos. Como é exaustivamente demostrado no livro de Laurentino Gomes, com dados e informações, “a atividade econômica mais importante da expansão portuguesa no mundo foi outra: o comércio de gente”. É preciso muita atenção para que um discurso de ódio e de negação do outro não seja aceito ou acolhido, que não tenhamos novamente projetos como o que o historiador Ronaldo Vainfas denominou de “moral cristã da escravidão” ou de “projeto escravista dos religiosos”. É preciso estar atento. É preciso aprender da história.
As desigualdades de acesso a bens e direitos são gritantes; a ausência de negros e negras nas propagandas, nas mídias, nas universidades, ou, mais ainda, como professores ou pesquisadores de ponta é recorrente. Esse racismo também está presente nas grandes denominações e entre palestrantes e conferencistas de eventos evangélicos em grandes hotéis ou realizados em igrejas voltadas para as classes médias. Nestes espaços privilegiados, praticamente se mantém a máxima de que “negro não entra na Igreja, espia do lado de fora”, título do livro de José Carlos Barbosa sobre protestantismo e escravidão no Brasil Império.
No caso brasileiro, na definição de nossa identidade e para se compreender nossa história e momento atual é impossível ignorar a escravidão como um elemento central. Elemento que explica boa parte da tão presente violência e da absurda desigualdade social que caracteriza e que é singular em nosso país. Alta concentração de renda ao lado de níveis igualmente altos de pobreza. Em relação a desigualdade, o Brasil é um caso único em que convivem pessoas com renda similar aos mais ricos do mundo, como os ricos nos Estados Unidos, junto a pessoas com renda próxima aos mais pobres, como os pobres da Índia. Só que aqui estão todos em um mesmo território, em uma mesma nação.
Se a escravidão foi uma chaga que maculou nossa história e constituição enquanto nação, hoje é a desigualdade social o novo câncer, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, que impede e limita a nossa constituição enquanto sociedade democrática. É impossível compreender uma sem considerar a outra. Estão umbilicalmente ligadas. É obrigatório conhecer a nossa história e atuar de forma intencional para que certas coisas fiquem definitivamente no passado.
• Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
>> Conheça também o livro A Religião Mais Negra do Brasil, de Marco Davi de Oliveira
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