Opinião
- 27 de abril de 2010
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Por que não é difícil compreender os cristãos de esquerda?
Joanildo Burity
A desigualdade natural entre os seres humanos é um velho pensamento. Segundo sua lógica, haveria uma ordem das coisas, definida por Deus de antemão e para sempre, e tal ordem é assimétrica: pessoas nascem para mandar, outras para serem oprimidas; pessoas nascem para ter, outras para viverem em privação; pessoas nascem para serem livres, outras para serem escravizadas. O curioso é que o primeiro termo em cada categoria é sempre reservado a um pequeno número e o outro é reservado à grande maioria. Um cinismo fatalista anuncia que esta é a lei da vida e que os perdedores precisam se conformar e tocar os dias à espera da morte. Parte considerável desta atitude tem sido elaborada e defendida em nome da religião. O cristianismo não é exceção. Respeitáveis figuras da história do cristianismo são parte desta visão: ofereceram o céu, no além-túmulo, como lugar onde os miseráveis da terra poderiam esperar compensação por seu infortúnio. Alguns foram às raias do requinte e trabalharam na defesa de Deus (afinal, que Deus poderia patrocinar tamanho escândalo?) na linha da retribuição: se muitos sofrem é porque merecem – ou são moralmente reprováveis, ou são incapazes, resignados, estúpidos, incrédulos. Teologias da desigualdade natural.
Por outro lado, a história humana é violentamente marcada pelas lutas em torno de manter estruturas assentadas na desigualdade ou transformá-las. Não é difícil entender como lutar para manter ou romper a desigualdade tem diretamente a ver com lutar contra ou a favor da liberdade. Isso já nos deveria chamar a atenção para um problema na teologia da desigualdade natural: por que as pessoas resistem? Por que se insubordinam? Ou por que outras, não sendo elas mesmas vitimizadas pela miséria, opressão, discriminação e pelo desprezo, sentem indignação quando veem outros seres humanos sofrerem, independentemente de sua fé? Por que os teólogos e seguidores da desigualdade natural tantas vezes reagiram com impaciência, ira e violência à recusa, por pacífica que fosse, dos desiguais em aceitarem seu destino? Estranho, não? Somente os “de baixo” são desiguais!
Respondo: porque há algo profundamente não-natural no fato de que seres humanos criados pelo mesmo Deus sejam considerados superiores e inferiores entre si e diante de Deus. Porque essa desigualdade foi o resultado de processos históricos concretos e não de um decreto divino atemporal. Porque nem sempre foi assim, não em toda parte, nem em todo tempo. Porque na história da religião judaico-cristã (especifico apenas porque não há espaço para explorar outras tradições religiosas) há um conjunto de imagens, ideias e ideais que explicam perfeitamente o que pode levar à denúncia da desigualdade; à necessidade de construir instituições sociais falíveis e imperfeitas como uma resposta positiva a um Deus que é visto como justo, amoroso e altruísta, mas capaz de tomar partido; à idealização de futuros que nunca chegam, mas que fazem de todo presente um momento de decisão sobre o mundo em que queremos viver. Não são poucos os que, a partir de dentro, bem do fundo desta tradição judaico-cristã, ousaram, inspirados na salvação, no céu e/ou no reino de Deus, chamar a isso de socialismo. O socialismo tem raízes profundamente religiosas, disso sabiam mesmo Marx, Engels, Rosa, Gramsci, mas sobretudo cristãos: franciscanos, valdenses, Munzer e os anabatistas, Maurice, Kingsley, Carlyle, Barth, Tillich, Shaull.
Assim, a despeito de todas as distorções, desmandos e erros cometidos em nome do socialismo tanto quanto em nome do cristianismo, muitos permanecem convictos de que a luta contra a desigualdade vai além dos limites das experiências concretas que buscam enfrentá-la. Seu compromisso, sua leitura da realidade e seus valores não os permitem ignorar o desafio moral e político da opressão. Mas entre estes estão os que interpretam tais posições à luz de sua fé cristã. Não é difícil entender.
Numa edição anterior de Ultimato, Norma Braga varreu para debaixo do tapete tudo isso e se escandalizou com o fato (ao menos isso ela reconhece) de que haja tantos cristãos socialistas ainda hoje. Ignorando que a história das ideias de justiça e igualdade neste mundo está recheada da militância e do sacrifício de milhares de cristãos fieis a Deus, cuja memória temos o dever ético de respeitar, ela julga que os socialistas cristãos são partidários de César. Ora, da Europa nazista à Cuba de Porfírio, Nicarágua de Batista, Angola e Moçambique coloniais, África do Sul do apartheid, o pouco de decência que se tem podido oferecer àqueles povos, ao longo de acidentadas histórias, teve contribuições nunca ausentes desses cristãos socialistas, comunistas e anarquistas. Sua memória não pode ser desprezada e pisada impunemente, em nome de uma leitura torta da liberdade sem o grito da justiça.
Por não achar que o socialismo é a única forma histórica possível de expressão política dos valores bíblicos e cristãos, respeito a opinião de Norma Braga e defendo seu direito a defendê-la. Mas insurjo-me contra sua visão desmemoriada e despolitizada da militância cristã, que se dá num mundo de escolhas preto-no-branco, sem história e sem contingência, sem finitude, mas também sem o gosto e o risco da liberdade e da decisão. Confunde ação eficaz com pregação evangelística. Não é à toa que se autodenomina "missionária de ideias". Bonitas palavras, mas não moverão um milímetro das relações e estruturas que asseguram a desigualdade brutal do Brasil e as poderosas forças que movem o capitalismo contemporâneo em escala global.
A julgar pelas orientações dadas por Norma, Deus precisa mesmo ajudar a igreja brasileira a saber discernir entre a legitimidade das opções históricas e a pretensão de deter um oráculo divino para guiar o destino do mundo. A “genuína cosmovisão cristã” é um projeto plural, resultante de encontros e desencontros de centenas de gerações de cristãos com suas condições históricas e sociais reais. Ninguém tem como resumi-la em fórmulas sintéticas ou pretender ter a chave para separar o joio do trigo. Enquanto isso, milhares de cristãos vão ousando aliar suas esperanças por um mundo mais justo e livre com velhos sonhos de igualdade e emancipação, que sempre escapam às realizações concretas em cada tempo e lugar. Sonhos de socialismo, por que não?
• Joanildo Burity é diretor do Programa Fé e Globalização mantido pelos departamentos de Governo e Assuntos Internacionais e de Teologia e Religião da Universidade de Durham, na Inglaterra. É pesquisador licenciado da Fundação Joaquim Nabuco.
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A desigualdade natural entre os seres humanos é um velho pensamento. Segundo sua lógica, haveria uma ordem das coisas, definida por Deus de antemão e para sempre, e tal ordem é assimétrica: pessoas nascem para mandar, outras para serem oprimidas; pessoas nascem para ter, outras para viverem em privação; pessoas nascem para serem livres, outras para serem escravizadas. O curioso é que o primeiro termo em cada categoria é sempre reservado a um pequeno número e o outro é reservado à grande maioria. Um cinismo fatalista anuncia que esta é a lei da vida e que os perdedores precisam se conformar e tocar os dias à espera da morte. Parte considerável desta atitude tem sido elaborada e defendida em nome da religião. O cristianismo não é exceção. Respeitáveis figuras da história do cristianismo são parte desta visão: ofereceram o céu, no além-túmulo, como lugar onde os miseráveis da terra poderiam esperar compensação por seu infortúnio. Alguns foram às raias do requinte e trabalharam na defesa de Deus (afinal, que Deus poderia patrocinar tamanho escândalo?) na linha da retribuição: se muitos sofrem é porque merecem – ou são moralmente reprováveis, ou são incapazes, resignados, estúpidos, incrédulos. Teologias da desigualdade natural.
Por outro lado, a história humana é violentamente marcada pelas lutas em torno de manter estruturas assentadas na desigualdade ou transformá-las. Não é difícil entender como lutar para manter ou romper a desigualdade tem diretamente a ver com lutar contra ou a favor da liberdade. Isso já nos deveria chamar a atenção para um problema na teologia da desigualdade natural: por que as pessoas resistem? Por que se insubordinam? Ou por que outras, não sendo elas mesmas vitimizadas pela miséria, opressão, discriminação e pelo desprezo, sentem indignação quando veem outros seres humanos sofrerem, independentemente de sua fé? Por que os teólogos e seguidores da desigualdade natural tantas vezes reagiram com impaciência, ira e violência à recusa, por pacífica que fosse, dos desiguais em aceitarem seu destino? Estranho, não? Somente os “de baixo” são desiguais!
Respondo: porque há algo profundamente não-natural no fato de que seres humanos criados pelo mesmo Deus sejam considerados superiores e inferiores entre si e diante de Deus. Porque essa desigualdade foi o resultado de processos históricos concretos e não de um decreto divino atemporal. Porque nem sempre foi assim, não em toda parte, nem em todo tempo. Porque na história da religião judaico-cristã (especifico apenas porque não há espaço para explorar outras tradições religiosas) há um conjunto de imagens, ideias e ideais que explicam perfeitamente o que pode levar à denúncia da desigualdade; à necessidade de construir instituições sociais falíveis e imperfeitas como uma resposta positiva a um Deus que é visto como justo, amoroso e altruísta, mas capaz de tomar partido; à idealização de futuros que nunca chegam, mas que fazem de todo presente um momento de decisão sobre o mundo em que queremos viver. Não são poucos os que, a partir de dentro, bem do fundo desta tradição judaico-cristã, ousaram, inspirados na salvação, no céu e/ou no reino de Deus, chamar a isso de socialismo. O socialismo tem raízes profundamente religiosas, disso sabiam mesmo Marx, Engels, Rosa, Gramsci, mas sobretudo cristãos: franciscanos, valdenses, Munzer e os anabatistas, Maurice, Kingsley, Carlyle, Barth, Tillich, Shaull.
Assim, a despeito de todas as distorções, desmandos e erros cometidos em nome do socialismo tanto quanto em nome do cristianismo, muitos permanecem convictos de que a luta contra a desigualdade vai além dos limites das experiências concretas que buscam enfrentá-la. Seu compromisso, sua leitura da realidade e seus valores não os permitem ignorar o desafio moral e político da opressão. Mas entre estes estão os que interpretam tais posições à luz de sua fé cristã. Não é difícil entender.
Numa edição anterior de Ultimato, Norma Braga varreu para debaixo do tapete tudo isso e se escandalizou com o fato (ao menos isso ela reconhece) de que haja tantos cristãos socialistas ainda hoje. Ignorando que a história das ideias de justiça e igualdade neste mundo está recheada da militância e do sacrifício de milhares de cristãos fieis a Deus, cuja memória temos o dever ético de respeitar, ela julga que os socialistas cristãos são partidários de César. Ora, da Europa nazista à Cuba de Porfírio, Nicarágua de Batista, Angola e Moçambique coloniais, África do Sul do apartheid, o pouco de decência que se tem podido oferecer àqueles povos, ao longo de acidentadas histórias, teve contribuições nunca ausentes desses cristãos socialistas, comunistas e anarquistas. Sua memória não pode ser desprezada e pisada impunemente, em nome de uma leitura torta da liberdade sem o grito da justiça.
Por não achar que o socialismo é a única forma histórica possível de expressão política dos valores bíblicos e cristãos, respeito a opinião de Norma Braga e defendo seu direito a defendê-la. Mas insurjo-me contra sua visão desmemoriada e despolitizada da militância cristã, que se dá num mundo de escolhas preto-no-branco, sem história e sem contingência, sem finitude, mas também sem o gosto e o risco da liberdade e da decisão. Confunde ação eficaz com pregação evangelística. Não é à toa que se autodenomina "missionária de ideias". Bonitas palavras, mas não moverão um milímetro das relações e estruturas que asseguram a desigualdade brutal do Brasil e as poderosas forças que movem o capitalismo contemporâneo em escala global.
A julgar pelas orientações dadas por Norma, Deus precisa mesmo ajudar a igreja brasileira a saber discernir entre a legitimidade das opções históricas e a pretensão de deter um oráculo divino para guiar o destino do mundo. A “genuína cosmovisão cristã” é um projeto plural, resultante de encontros e desencontros de centenas de gerações de cristãos com suas condições históricas e sociais reais. Ninguém tem como resumi-la em fórmulas sintéticas ou pretender ter a chave para separar o joio do trigo. Enquanto isso, milhares de cristãos vão ousando aliar suas esperanças por um mundo mais justo e livre com velhos sonhos de igualdade e emancipação, que sempre escapam às realizações concretas em cada tempo e lugar. Sonhos de socialismo, por que não?
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