Opinião
- 28 de fevereiro de 2018
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Por que cristãos se digladiam na internet?
Por Davi C. R. Lin
Aproveitando um tempo de estudos na Bélgica, estive participando de eventos relacionados à comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante. Uma das experiências marcantes foi na conferência da Ordem dos Agostinianos. Martinho Lutero era monge Agostiniano, e utilizou da obra de Agostinho de Hipona (354-430) para ressaltar alguns elementos da Reforma, principalmente sobre a graça de Deus. Após discussões interessantes, um dos participantes (a quem chamarei de Father Bill) levantou-se e fez uma crítica veemente a Lutero, no que tange a sua apropriação do pensamento de Agostinho, chamando-a de parcial. Father Bill acusou Lutero de adaptar a doutrina da graça, mas não enfatizar suficientemente a unidade da igreja. Esta tem sido ao longo dos séculos, a principal queixa católica contra a leitura protestante de Santo Agostinho.
Me impressionou o que aconteceu no coração do Father Bill na última manhã. E isto só aconteceu pela presença de uma Luterana. Irmã Maria, com simplicidade e humildade, testemunhou como no pós-segunda guerra alguns Luteranos na Alemanha lutaram para recuperar a possibilidade da vida monástica. Após a fala dessa mulher, Father Bill se derreteu. Profundamente tocado, Bill foi ao microfone e pediu perdão pelas tantas vezes que tinha falado mal de Lutero. Father Bill pareceu-me um verdadeiro Agostiniano: sem deixar de discordar daquilo que o incomodava, afirmou a possibilidade de um encontro. A partir desta experiência, a graça beijou a verdade.
Mas isso aconteceria pela internet? Isso seria possível se eles não se encontrassem, assim, em carne e osso? Creio que não. É uma presença encarnada que nos tira dos nossos preconceitos e mobiliza nossa humanidade comum. Um encontro real entre duas pessoas retoma o que os cristãos creem: é através da encarnação que sou impelido a ouvir uma voz e um chamado. Portanto, é na presença real do encontro com o outro que se constrói a unidade da igreja.
A sociedade da informação, alimentada pelo gnosticismo da internet (que nega na prática que a vida é feita no encontro material) é o mais novo pensamento heterodoxo que enviesa nossa vida cristã. O conteúdo que dizemos está sendo distorcido pelo meio, pela forma imaterial desencarnada. Facebook não é face a face e não nos mostra a face do Livro.
>>> Ontem Esponja, Amanhã Peneira <<<
A fé cristã não é só um punhado de dogmas. As doutrinas são importantes, porque vivemos por aquilo que cremos. Mas Cristo também propôs um encontro radical na experiência diária com os discípulos. No partir do pão, juntos, corações foram transformados. Se quiser discordar de alguém na internet, convide-o para um café. E se estiver em Minas, inclua o pão de queijo!
Não estou falando da impossibilidade de discordarmos, principalmente de pessoas que negam convicções fundamentais da fé, como a divindade e humanidade de Cristo, as três pessoas da Trindade, ou a obra salvadora na cruz. Também não estou falando em revermos a ética sexual bíblica. Ou negar que existem situações complexas em que conviver não é mais possível, ou evitar uma denuncia profética contra a injustiça. Porém, o próprio Cristo, quando queria confrontar, olhava pessoas, como “o jovem rico”, nos olhos e os amava (Marcos 10:21). Ele chamava ladrões, como Zaqueu, para passarem um tempo juntos com ele.
Estou querendo combater um desencontro profundo que está adoecendo o corpo. Creio que temos dois problemas fundamentais: o primeiro é que deixamos o encontro real; e o segundo é que não desenvolvemos suficientemente uma visão teológica da unidade da igreja. Infelizmente, gente que crê nas mesmas bases de fé cristã não consegue mais conversar. A fragmentação da igreja é um dos grandes desafios dos protestantes e tem se tornado um desserviço ao evangelho.
O mundo pós-moderno não vai aceitar intolerância. É uma geração que vai rejeitar as versões fundamentalistas da fé. E isto é um chamado para os cristãos cultivarem paciência e uma “santa tolerância” uns com os outros sem perderem sua identidade, nem convicções. É sempre uma atitude humilde dos cristãos quando reconhecem que os de fora nos ajudam a recuperar uma ênfase que nós mesmos esquecemos. Paciência é ênfase bíblica e fruto do Espírito; não significa concordar com tudo, mas que em Cristo, tem algo mais essencial em você do que uma ideia que não concordo. Nós somos a fé que fez um pescador judeu sentar na mesma mesa que um centurião Romano, algo impossível no primeiro século sem a ação do Espírito reconciliando gentios e judeus.
A polarização no Brasil tem aumentado os rótulos e não permitido a possibilidade de um diálogo fraterno. Em tempos de identidade frágil, reafirmamos ainda mais o que é “nosso”, e corremos o perigo de nos fechar em guetos. Assim, damos ainda mais razão às acusações veementes contra cristãos, hoje: a de que somos intolerantes e não enxergamos o diferente de nós. Se quisermos gestar uma nova geração de cristãos no Brasil, vamos ter que replantar nosso jardim e cultivar um novo saber e sabor relacional.
Termino aqui com aquilo que Father Bill gostaria que nós protestantes enfatizássemos sobre Agostinho; Afinal, ele é o teólogo que mais influenciou Lutero e Calvino. As ideias do bispo de Hipona sobre a unidade da igreja podem ser o pedaço do quebra-cabeça que nos falta; poderão nos ajudar a navegar melhor as águas turbulentas do mundo pós-moderno sem deixarmos de sermos genuinamente cristãos evangélicos. Deixo abaixo minhas cinco teses sobre a unidade da igreja em protesto a nossa desunião e ao mesmo tempo na esperança do que o Espírito irá fazer entre nós:
5 Teses Sobre a Unidade Eclesial
Inspiradas nos sermões de Agostinho de Hipona
1
Porque Deus é paciente e misericordioso, a Igreja é paciência e tolerância. Igreja não é feita de gente pronta; é conversão, caminho de peregrinos na terra, à espera da pátria celestial.
2
Porque só Deus é juiz, ninguém pode ser acusador do coração a não ser Aquele que o vê. Julgar antes do tempo é soberba: a Igreja é corpo misturado, joio e trigo, bodes e ovelhas. Deixemos o justo juiz separá-los, não tomemos o lugar Dele.
3
Porque somos corpo de Cristo, não façamos Dele dois: Cristo, o noivo, se uniu a sua esposa, a igreja, uma totalidade. Dividir a Igreja é participar de um divórcio que crucifica o próprio Cristo.
4
Compreendemos o mistério de Cristo e de seu corpo se amamos a humildade. Aqueles que segregam o corpo usurpam o poder e demonstram orgulho: “afasta-te da vaidade, acerca-te ao médico.”
5
Permaneça na unidade, e não vá atrás da multiplicidade: ali está a felicidade. Conserve-se onde você foi plantado e lute pela preservação do jardim inteiro. Por amor a Cristo e em testemunho ao mundo (João 17), preserve a unidade de sua amada Igreja.
• Davi C. Ribeiro Lin é em mestre em teologia pelo Regent College (Canadá) e doutorando em Teologia pela FAJE e por KU Leuven (Bélgica). Possui graduação em psicologia e especialização em psicologia clínica. É parte do colegiado de líderes da Comunidade Evangélica do Castelo, em Belo Horizonte.
Leia mais
Café, leitura e revolução
7 dicas para lidar com as críticas
Os evangélicos precisam redescobrir a catolicidade?
Aproveitando um tempo de estudos na Bélgica, estive participando de eventos relacionados à comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante. Uma das experiências marcantes foi na conferência da Ordem dos Agostinianos. Martinho Lutero era monge Agostiniano, e utilizou da obra de Agostinho de Hipona (354-430) para ressaltar alguns elementos da Reforma, principalmente sobre a graça de Deus. Após discussões interessantes, um dos participantes (a quem chamarei de Father Bill) levantou-se e fez uma crítica veemente a Lutero, no que tange a sua apropriação do pensamento de Agostinho, chamando-a de parcial. Father Bill acusou Lutero de adaptar a doutrina da graça, mas não enfatizar suficientemente a unidade da igreja. Esta tem sido ao longo dos séculos, a principal queixa católica contra a leitura protestante de Santo Agostinho.
Me impressionou o que aconteceu no coração do Father Bill na última manhã. E isto só aconteceu pela presença de uma Luterana. Irmã Maria, com simplicidade e humildade, testemunhou como no pós-segunda guerra alguns Luteranos na Alemanha lutaram para recuperar a possibilidade da vida monástica. Após a fala dessa mulher, Father Bill se derreteu. Profundamente tocado, Bill foi ao microfone e pediu perdão pelas tantas vezes que tinha falado mal de Lutero. Father Bill pareceu-me um verdadeiro Agostiniano: sem deixar de discordar daquilo que o incomodava, afirmou a possibilidade de um encontro. A partir desta experiência, a graça beijou a verdade.
Mas isso aconteceria pela internet? Isso seria possível se eles não se encontrassem, assim, em carne e osso? Creio que não. É uma presença encarnada que nos tira dos nossos preconceitos e mobiliza nossa humanidade comum. Um encontro real entre duas pessoas retoma o que os cristãos creem: é através da encarnação que sou impelido a ouvir uma voz e um chamado. Portanto, é na presença real do encontro com o outro que se constrói a unidade da igreja.
A sociedade da informação, alimentada pelo gnosticismo da internet (que nega na prática que a vida é feita no encontro material) é o mais novo pensamento heterodoxo que enviesa nossa vida cristã. O conteúdo que dizemos está sendo distorcido pelo meio, pela forma imaterial desencarnada. Facebook não é face a face e não nos mostra a face do Livro.
>>> Ontem Esponja, Amanhã Peneira <<<
A fé cristã não é só um punhado de dogmas. As doutrinas são importantes, porque vivemos por aquilo que cremos. Mas Cristo também propôs um encontro radical na experiência diária com os discípulos. No partir do pão, juntos, corações foram transformados. Se quiser discordar de alguém na internet, convide-o para um café. E se estiver em Minas, inclua o pão de queijo!
Não estou falando da impossibilidade de discordarmos, principalmente de pessoas que negam convicções fundamentais da fé, como a divindade e humanidade de Cristo, as três pessoas da Trindade, ou a obra salvadora na cruz. Também não estou falando em revermos a ética sexual bíblica. Ou negar que existem situações complexas em que conviver não é mais possível, ou evitar uma denuncia profética contra a injustiça. Porém, o próprio Cristo, quando queria confrontar, olhava pessoas, como “o jovem rico”, nos olhos e os amava (Marcos 10:21). Ele chamava ladrões, como Zaqueu, para passarem um tempo juntos com ele.
Estou querendo combater um desencontro profundo que está adoecendo o corpo. Creio que temos dois problemas fundamentais: o primeiro é que deixamos o encontro real; e o segundo é que não desenvolvemos suficientemente uma visão teológica da unidade da igreja. Infelizmente, gente que crê nas mesmas bases de fé cristã não consegue mais conversar. A fragmentação da igreja é um dos grandes desafios dos protestantes e tem se tornado um desserviço ao evangelho.
O mundo pós-moderno não vai aceitar intolerância. É uma geração que vai rejeitar as versões fundamentalistas da fé. E isto é um chamado para os cristãos cultivarem paciência e uma “santa tolerância” uns com os outros sem perderem sua identidade, nem convicções. É sempre uma atitude humilde dos cristãos quando reconhecem que os de fora nos ajudam a recuperar uma ênfase que nós mesmos esquecemos. Paciência é ênfase bíblica e fruto do Espírito; não significa concordar com tudo, mas que em Cristo, tem algo mais essencial em você do que uma ideia que não concordo. Nós somos a fé que fez um pescador judeu sentar na mesma mesa que um centurião Romano, algo impossível no primeiro século sem a ação do Espírito reconciliando gentios e judeus.
A polarização no Brasil tem aumentado os rótulos e não permitido a possibilidade de um diálogo fraterno. Em tempos de identidade frágil, reafirmamos ainda mais o que é “nosso”, e corremos o perigo de nos fechar em guetos. Assim, damos ainda mais razão às acusações veementes contra cristãos, hoje: a de que somos intolerantes e não enxergamos o diferente de nós. Se quisermos gestar uma nova geração de cristãos no Brasil, vamos ter que replantar nosso jardim e cultivar um novo saber e sabor relacional.
Termino aqui com aquilo que Father Bill gostaria que nós protestantes enfatizássemos sobre Agostinho; Afinal, ele é o teólogo que mais influenciou Lutero e Calvino. As ideias do bispo de Hipona sobre a unidade da igreja podem ser o pedaço do quebra-cabeça que nos falta; poderão nos ajudar a navegar melhor as águas turbulentas do mundo pós-moderno sem deixarmos de sermos genuinamente cristãos evangélicos. Deixo abaixo minhas cinco teses sobre a unidade da igreja em protesto a nossa desunião e ao mesmo tempo na esperança do que o Espírito irá fazer entre nós:
5 Teses Sobre a Unidade Eclesial
Inspiradas nos sermões de Agostinho de Hipona
1
Porque Deus é paciente e misericordioso, a Igreja é paciência e tolerância. Igreja não é feita de gente pronta; é conversão, caminho de peregrinos na terra, à espera da pátria celestial.
2
Porque só Deus é juiz, ninguém pode ser acusador do coração a não ser Aquele que o vê. Julgar antes do tempo é soberba: a Igreja é corpo misturado, joio e trigo, bodes e ovelhas. Deixemos o justo juiz separá-los, não tomemos o lugar Dele.
3
Porque somos corpo de Cristo, não façamos Dele dois: Cristo, o noivo, se uniu a sua esposa, a igreja, uma totalidade. Dividir a Igreja é participar de um divórcio que crucifica o próprio Cristo.
4
Compreendemos o mistério de Cristo e de seu corpo se amamos a humildade. Aqueles que segregam o corpo usurpam o poder e demonstram orgulho: “afasta-te da vaidade, acerca-te ao médico.”
5
Permaneça na unidade, e não vá atrás da multiplicidade: ali está a felicidade. Conserve-se onde você foi plantado e lute pela preservação do jardim inteiro. Por amor a Cristo e em testemunho ao mundo (João 17), preserve a unidade de sua amada Igreja.
• Davi C. Ribeiro Lin é em mestre em teologia pelo Regent College (Canadá) e doutorando em Teologia pela FAJE e por KU Leuven (Bélgica). Possui graduação em psicologia e especialização em psicologia clínica. É parte do colegiado de líderes da Comunidade Evangélica do Castelo, em Belo Horizonte.
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