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Pode-se conciliar Física e Religião?
A série “Física ao Vivo”, produzida pela Sociedade Brasileira de Física, recebeu em setembro o conhecido físico brasileiro e ganhador do Prêmio Templeton 2019, Marcelo Gleiser, para falar sobre "Pode-se conciliar Física e Religião?".
O presidente da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC²), também físico e professor Roberto Covolan, escreveu carta aberta à Sociedade Brasileira de Física sobre o programa, na última semana de setembro, que Ultimato publica abaixo.
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À Sociedade Brasileira de Física
Campinas, 25/09/2020
Caro Prof. Rogério Rosenfeld,
Gostaria parabenizá-lo e à SBF pela realização do programa Física ao Vivo, do dia 16/09/2020, com o Prof. Marcelo Gleiser sobre o tema “Pode-se conciliar Física e Religião?”.
É extremamente saudável que a SBF abra espaço para considerar temas que envolvam a interação da Física com outras formas de conhecer e apreender a realidade, prestando com isso grande serviço à sociedade em geral. O crescente número de visualizações do referido programa, em curto período de tempo, revela o enorme interesse despertado pelo assunto.
Certamente o tema é controverso, mas gostaria de lembrar que, muitas vezes, a controvérsia se alimenta da imprecisão no emprego dos próprios termos da discussão. Argumentos para a alegada incompatibilidade entre ciência e religião frequentemente envolvem a conflação entre naturalismo metodológico (a forma como a ciência opera) e naturalismo filosófico (uma visão de mundo), sendo que este sim, não a ciência, se contrapõe à cosmovisão teísta. A ciência e seus métodos, estritamente considerados, não têm como distinguir e decidir entre cosmovisões ou perspectivas de mundo, não obstante possa oferecer elementos valiosos para avaliar a plausibilidade das mesmas.
Uma forma exacerbada de naturalismo filosófico, o cientificismo, advoga que apenas a ciência está apta a fazer afirmações verdadeiras. Claro está, porém, que a afirmação de que “apenas a ciência está apta a fazer afirmações verdadeiras” não é ela mesma uma afirmação de cunho científico. Assim, o cientificismo constitui-se apenas e tão somente em uma atitude autocontraditória, frequentemente tão dogmática quanto os dogmatismos que diz combater.
A crença de que apenas se pode considerar real aquilo que é materialmente detectável conspira contra a própria ciência. Afinal, para ficar num terreno que nos é familiar, a lei de conservação de energia, por exemplo, é certamente real, embora em si mesma não apresente nenhuma materialidade. O mesmo se dá com as demais leis da Física. Ainda que muitas dessas leis não sejam perfeitamente conhecidas por nós, mas apenas aproximativamente, isso não elide o fato de que a ciência opera segundo a crença de que leis ontológicas estão “em algum lugar” à espera de serem reveladas. A natureza já as “conhece”, nós é que não as conhecemos. E = mc2 ontem, hoje e sempre, desde que o mundo é mundo, muito antes de Einstein. Portanto, a natureza “sabe”. Como pode ser isso?
Um dos grandes mistérios que temos diante de nós é a própria inteligibilidade do universo. De um ponto de vista meramente naturalista, devemos forçosamente tomá-la como um dado constatável, sem nos perguntar de onde vem tal estado de coisas. Esse ponto foi alvo de reflexão de figuras centrais da Física, que não dissimularam a verdadeira dimensão do problema. Em seu famoso paper de 1960, Eugene Wigner já declarava: “... it is not at all natural that ‘laws of nature’ exist, much less that man is able to discover them”. No mesmo paper, Wigner destaca em nota de rodapé que, segundo Schrödinger, este “segundo milagre” poderia estar além da compreensão humana (What is Life?, 1944). Esse mesmo ponto de vista já havia sido expresso por Einstein, em Physics and Reality (1936), nos seguintes termos: “The eternal mystery of the world is its comprehensibility. [...] The fact that it is comprehensible is a miracle.”
O fato de que os processos naturais sejam misteriosamente imbuídos de racionalidade (à qual temos acesso apenas parcial) está longe de constituir fato óbvio, que deva ser aceito de forma banal, como um dado trivial da realidade. Não há trivialidade nisso. Afinal, como esta racionalidade, que supera em zilhões de anos-luz nosso escasso entendimento, foi parar “lá”, na natureza bruta? Qual a sua origem? De onde ela procede? Por um lado, é forçoso reconhecer que esta racionalidade “natural” propicia e fundamenta a própria ciência; por outro lado, sua origem constitui um mistério que nenhuma science-of-the-gaps poderá contornar.
Da mesma forma, há outra questão misteriosa que não quer calar: “Afinal, o que significa isso tudo?”
O Nobel de Física (1979) Steven Weinberg conclui The First Three Minutes com a famosa asserção: “Quanto mais o universo parece compreensível, mais ele também parece sem sentido”. (Parênteses: Sem surpresa, o naturalismo filosófico se apresenta aqui sob a forma de niilismo.) De novo, uma distinção se faz necessária. O reducionismo metodológico tem se revelado extremamente eficaz na produção de conhecimento. O reducionismo ontológico, porém, não ajuda a ampliar nossa compreensão da realidade. Talvez Weinberg tivesse opinião diferente se atentasse para o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, segundo o qual o significado de um sistema jamais será encontrado dentro do próprio sistema.
Creio que Wittgenstein discordaria da visão de Weinberg, mas muito provavelmente concordaria com a de outro Nobel de Física (1964), Charles Townes, para o qual: “A ciência, com seus experimentos e lógica, tenta entender a ordem ou estrutura do universo. A religião, com sua inspiração e reflexão teológica, tenta compreender o propósito ou significado do universo”. É no mínimo curioso que Lorde Jonathan Sacks, rabino chefe da Grã-Bretanha, tenha expressado, de forma independente, um pensamento muito semelhante: “A ciência separa as coisas em partes para ver como elas funcionam. A religião coloca as coisas juntas para ver o que elas significam”. Temos aqui as visões de um cientista e um clérigo, ambos personalidades notáveis e de grande renome, concordando com os papéis específicos da ciência e da religião na busca pela compreensão da realidade. Em síntese, compreendidos alguns pressupostos, uma cosmovisão teísta pode sim ser inteiramente compatível com uma visão científica do mundo físico.
Em conclusão, gostaria de assinalar que um diálogo intelectual honesto e respeitoso entre os campos da ciência e da religião, tendo em conta as soberanias e especificidades das respectivas esferas, tem enorme potencial para nos ajudar a enfrentar as grandes questões da humanidade, de forma enriquecedora e mutuamente proveitosa.
Atenciosamente,
Roberto Covolan
Associação Brasileira de Cristãos na Ciência
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