Prateleira
- 09 de junho de 2016
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Perfurando a cultura para não esquecer quem somos
ENTREVISTA
Com Gerson Borges
Por Lissânder Dias
Conversamos com o educador, pastor, músico, poeta e nosso colunista Gerson Borges sobre cultura, identidade cristã, leitura e pastoreio. O autor de Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro é do Rio de Janeiro, mas mora em São Paulo, pastoreando uma igreja da Comunidade de Jesus, em São Bernardo. Confira!
***
Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro fala sobre música e cultura, mas fala muito mais sobre identidade, não é?
Gerson Borges - Sim, isso mesmo. Identidade é o que exclusiva e propriamente nos caracteriza como indivíduos, sociedade, instituição, nação. E, é claro, falar de identidade coletiva, social, é falar de cultura e vice-versa. Eu sinceramente estou convencido de que tanto individual quanto coletivamente precisamos desse exercício: perguntar repetida e profundamente sobre o que ou quem somos, voltar às bases e raízes. Ou deixaremos de sê-lo. Podemos já não ser brasileiros nem evangelicais e manter o nome. É como a “casca” de cigarra, aquele inseto de metamorfose incompleta. Não é mais a cigarra, é só o seu esqueleto externo. Uma boa parábola de diversas condições, eu acho.
Então por que está mais difícil definir nossa identidade evangélica hoje? Estamos em crise?
Gerson Borges - Muitas são as possíveis respostas. Eu diria que pela ausência de autoreflexão. Pela pobreza teológica, espiritual e ética dos nossos líderes. Pela facilidade com que qualquer um se autodenomina evangélico/pastor evangélico/bispo/apóstolo, essa bobagem hierárquica, essa busca de poder, essa doença toda que estamos cansados de ver. Pela natureza não centralizada do movimento (falo sobre isso no livro - a “grande ideia do protestantismo”, frase de Alister McGrath para o autoexame e interpretação das Escrituras). Se qualquer um pode interpretar a Bíblia (bom), qualquer um pode falar o que pensa (ruim). É uma das principais contradições da Reforma… o bônus e o ônus do individualismo protestante.
Décadas atrás, o medo de misturar-se com a cultura “do mundo” fez com que a maioria dos evangélicos se isolasse em guetos religiosos. Que prejuízos isso trouxe para nós?
Gerson Borges - Muitos. Por exemplo, a dificuldade de verdadeiramente contextualizar a proclamação do evangelho. A mensagem da Graça de Deus revelada em Cristo sempre será supracultural. Mas para o “kerigma”, é necessário conhecer a cultura dos povos a quem pregamos a Salvação. Sem contextualização, a consequência, tão bem conhecida pelo protestantismo de missão norte-americano e europeu que está na base da nossa igreja brasileira. Não podemos espiritualizar. O mesmo Paulo que disse aos Coríntios (1 Co 2.4) “a minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder”, conhecia bem tanto a cultura judaica quanto a greco-romana. É preciso conhecer para refutar e ir além: “engajar-se e/ou perfurar a cultura”, na frase feliz de Tim Keller.
Uma outra consequência é o desprezo que as camadas mais intelectualizadas da nossa sociedade brasileira demonstra pela “mente evangélica”, se posso usar tal expressão. Não existe mente evangélica, mas mentes evangélicas. Assim como é correto falar de distintas, complementares ou quase opostas expressões de catolicismo. Um católico carismático é bem diferente de um monge beneditino. O catolicismo popular passa longe da teologia e da espiritualidade monástica.
O outro lado da moeda é que a cultura é cheia de armadilhas também, não? Não foi legítimo (e até certo ponto compreensível) o esforço sincero de muitos evangélicos em não caírem nas tentações que a cultura brasileira trazia e traz? Por exemplo, se antes não era permitido envolver-se com política, hoje muitos se envolveram e se lambuzaram do pior jeito com ela.
Gerson Borges - Sim, é claro. É preciso desenvolver um discernimento sério entre Graça Comum e pecado - mas penso que historicamente temos nos fixado mais no “pecado cultural”. A cultura é boa, mas boa parte dela foi maculada pelo pecado. Isso é fato. O que tento argumentar no livro é que temos a tendência de assumir a polarização “Cristo/Cristão contra a cultura”, que sugere que a mesma é derivada da Queda - não é - e, portanto, deve ser inteiramente rejeitada, como se tal coisa fosse possível. Posso não ouvir MPB, mas vou comprar literatura! Posso não frequentar o teatro, mas assistirei filmes! Compreende? Não podemos fugir da cultura. Precisamos interpretá-la com os critérios das Escrituras. Ou cairemos no outro polo: mergulhar sem discernimento em manifestações absolutamente corrosivas à fé. Não é simples, mas não tem jeito. “No mundo, mas não do mundo”, pensando na oração do Nosso Senhor pelos discípulos.
Como sua fé em Cristo o ajudou a resgatar sua brasilidade?
Gerson Borges - Entendendo que Jesus era judeu. Compreendendo que Paulo era judeu, cidadão romano e fluente no helenismo. E assim também, a seu tempo e modo, Agostinho, Aquino, Teresa de Ávila, Lutero, Calvino, Wesley, Kuyper, Barth, Bonhoeffer, Luther King Jr, Teresa de Calcutá, C. S. Lewis, Cherterton, Billy Graham, Francis Schaeffer, Irmão André, René Padilla, Elbén Cesar, Antônio Elias, Russel Shedd, Robinson Cavalcanti, John Stott… todos lidaram com os desafios de seu tempo e contexto. O Cristianismo é o mesmo. Cristo não muda. O Evangelho da Graça é “para todo homem e o homem todo”, como diria Stott.
Seu livro fala sobre a “graça da cultura” e a “cultura da graça”. O que este trocadilho significa?
Gerson Borges - Com a expressão “a graça da cultura”, quero sublinhar o que há de Graça Comum na nossa brasilidade. Essa é uma doutrina reformada pouco conhecida, temida até, eu diria. Uma pena. Com “cultura da graça”, quero enfatizar a necessidade dos evangélicos serem mais graciosos, mais coerentes com seu discurso e pregação. Sei que posso ser taxado de “baratear, edulcorar a loucura da Cruz”, de supostamente negociar a radicalidade do Evangelho, a mensagem do arrependimento e de novo nascimento, mas não é o caso. Claro que não. Sou um ortodoxo, um conservador. Mas fecho com Jaroslav Pelikan no que ele sugere ao dizer: “A tradição é a fé viva do morto; o tradicionalismo é a fé morta do vivo”.
Além de pastor, você é músico. Comunica-se, portanto, com membros de uma comunidade local, gente que você conhece pelo nome, pela história, mas também com gente distante, que você não conhece ou conhece muito superficialmente. Como é pregar o Evangelho (no sentido mais profundo da expressão) para esta geração?
Gerson Borges - Um desafio extra extra extraordinário… é preciso conhecer o ethos , o modos vivendi dessa geração. É preciso sólida espiritualidade, e reflexão idem. Esse é um tempo muito difícil, não apenas para o evangelicalismo, mas para o Cristianismo como um todo. Penso que meus amigos sacerdotes e monges católicos diriam “amém”. Digo isso pelo tal “aumento da iniquidade” advertido na Escritura. Por exemplo, preciso confrontar o hedonismo narcisista que o abuso tecnológico propõe (Jacques Ellul, Munford Lewis, Heidegger entre outros, avisaram, mas não demos ouvido). Os fones são smart, mas os usuários são dumb, você não acha? Os psiquiatras estão falando em Nomofobia (“No mobile phobia”), uma espécie de síndrome de abstinência observada quando acaba a bateria do celular, ou não tem 3G… transtorno de ansiedade, pânico. Uma loucura isso! A leitura está morrendo, diriam porta-vozes do humanismo, como o recém-falecido Umberto Eco. Agora imagine a leitura profunda, tanto da Bíblia quanto dos clássicos literários e devocionais! A mente acelerada, hiper estimulada pela Era Digital não consegue parar nem para ouvir as pessoas; quanto mais “aquele sussurro suave”, a voz do Espírito de Deus! Aliás, as pessoas não querem Deus, querem resolver seus problemas. As pessoas não querem comunidade, querem serviços religiosos. A igreja deveria ser (olha a questão da identidade novamente) a comunidade dos discípulos de Jesus de Nazaré e não uma “sociedade individualizada”, termo este de Zygmund Bauman. Ouço mais e mais a expressão “estou indo na igreja tal”, o que considero o equivalente ao famigerado “estou ficando com fulano(a)”. Compromisso zero com tudo. Exceto com o máximo de prazer com o mínimo custo.
Você também está bem presente nas redes sociais. Quais as armadilhas e as bênçãos das redes sociais?
Gerson Borges - Assunto vasto...vamos lá! Em três frases:
1. A tecnologia não é neutra. Afeta-nos biológica, psíquica e espiritualmente;
2. É uma amiga e uma inimiga. Dá coisas, tira coisas. Não tem jeito.
3. Uso a tecnologia (que é muito mais que TIC, Tecnologia da Informação e Comunicação). Não quero ser usado por ela.
Enfim, concordo com a observação de que as redes sociais (só um aspecto da TIC) tem a tendência de aproximar quem está longe e afastar quem está perto. Mas como disse o brilhante crítico cultural e educador judeu e americano Neil Postman: “não podemos ser profetas caolhos, ou tecnófobos ou tecnófilos”. Esse assunto tem sido fonte de pesquisa e reflexão para mim. Quem sabe um novo livro em alguns meses...
Além de músico e pastor, você também é um leitor (compulsivo?). Por que a fé evangélica não produz mais tão bons escritores para o grande público?
Gerson Borges - Sim, leio sem parar. Vários livros, diversos gêneros ao mesmo tempo, tanto ficção quanto ensaios sobre assuntos que vão desde pedagogia, passando por filosofia, teologia e até tecnologia, como disse há pouco. Arte, Leitura e Espiritualidade são o tripé da minha sanidade. Sem ler e escrever eu surtaria num mundo louco como esse. Acho que o evangelicalismo não produz tantos escritores porque não (já) produz tantos leitores também. Já fomos “os Bíblia”, agora somos “os Gospel”. Trocamos a “leiturização” pelo entretenimento. Levamos a Igreja para a TV e agora estamos levando a TV para a igreja - nossas celebrações ou são miniprogramas televisivos (de auditório) ou ibope zero… Mas voltando à produção de escritores, sem leitura não há escrita. Sem uma mente que tenha prazer em ler não haverá mentes capazes de escrever. Falta imaginação ao nosso pobre e imaturo evangelicalismo. No livro eu cito exemplos americanos e ingleses. Onde estarão os nossos ficcionistas, poetas e dramaturgos? Eu gostaria de responder a essa pergunta, mas sinceramente não sei.
Qual sua esperança para o futuro da Igreja Evangélica no Brasil?
Gerson Borges - Não tem uma pergunta mais fácil, meu caro amigo? Bom, eu creio sinceramente no que propõe John Stott: simplicidade, compromisso e devoção. A simplicidade da leitura diária das Escrituras, da oração fervorosa, moda antiga, joelhos dobrados, coração quebrantado, sabe? E uma igreja menos empresa, menos ISO 9000 e alguma coisa, menos qualidade total, menos fé no marketing e mais na “comunhão dos santos”, mais seriedade na Ceia do Senhor, no Batismo e na disciplina comunitária, igrejas menores - nada contra as grandes, mas tudo a favor da gente se conhecer e conviver -, igrejas mais acolhedoras, onde ninguém chegue e saia sem ser notado e abraçado, igrejas mais inseridas na sua comunidade, igrejas que trabalhem pela justiça e pela paz, num país de tantas e vergonhosas disparidades sociais, um igreja profética, portanto, igrejas mais bíblicas, contemporâneas e relevantes. Uma igreja que celebra a hinologia protestante, mas não despreza o 2 por 4 do samba e do baião, poética, também; uma igreja com menos versões enlatadas na liturgia, uma igreja onde qualquer um tenha acesso ao pastor e o pastor não seja visto como um messias, como alguém que pode ser santo em nosso lugar, que resolva todos os nossos problemas etc. É um sonho, eu sei. Uma utopia. Mas eu tô nessa. Ou desisto de pastorear. Minha família e amigos sabem disso. E me ajudam. Graças a Deus.
Leia também
A Arte e a Bíblia (Francis Schaeffer)
A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja (Ricardo Barbosa)
Igreja Evangélica: identidade, unidade e serviço (Robinson Cavalcanti)
Ontem Esponja, Amanhã Peneira (Marcos Botelho e Victor Fontana)
Engolidos pela Cultura Pop (Steve Turner)
Foto de Gerson: ©marcelo_talassuh
Foto da manchete na home: Rafael Neddermeyer
Com Gerson Borges
Por Lissânder Dias
Conversamos com o educador, pastor, músico, poeta e nosso colunista Gerson Borges sobre cultura, identidade cristã, leitura e pastoreio. O autor de Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro é do Rio de Janeiro, mas mora em São Paulo, pastoreando uma igreja da Comunidade de Jesus, em São Bernardo. Confira!
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Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro fala sobre música e cultura, mas fala muito mais sobre identidade, não é?
Gerson Borges - Sim, isso mesmo. Identidade é o que exclusiva e propriamente nos caracteriza como indivíduos, sociedade, instituição, nação. E, é claro, falar de identidade coletiva, social, é falar de cultura e vice-versa. Eu sinceramente estou convencido de que tanto individual quanto coletivamente precisamos desse exercício: perguntar repetida e profundamente sobre o que ou quem somos, voltar às bases e raízes. Ou deixaremos de sê-lo. Podemos já não ser brasileiros nem evangelicais e manter o nome. É como a “casca” de cigarra, aquele inseto de metamorfose incompleta. Não é mais a cigarra, é só o seu esqueleto externo. Uma boa parábola de diversas condições, eu acho.
Então por que está mais difícil definir nossa identidade evangélica hoje? Estamos em crise?
Gerson Borges - Muitas são as possíveis respostas. Eu diria que pela ausência de autoreflexão. Pela pobreza teológica, espiritual e ética dos nossos líderes. Pela facilidade com que qualquer um se autodenomina evangélico/pastor evangélico/bispo/apóstolo, essa bobagem hierárquica, essa busca de poder, essa doença toda que estamos cansados de ver. Pela natureza não centralizada do movimento (falo sobre isso no livro - a “grande ideia do protestantismo”, frase de Alister McGrath para o autoexame e interpretação das Escrituras). Se qualquer um pode interpretar a Bíblia (bom), qualquer um pode falar o que pensa (ruim). É uma das principais contradições da Reforma… o bônus e o ônus do individualismo protestante.
Décadas atrás, o medo de misturar-se com a cultura “do mundo” fez com que a maioria dos evangélicos se isolasse em guetos religiosos. Que prejuízos isso trouxe para nós?
Gerson Borges - Muitos. Por exemplo, a dificuldade de verdadeiramente contextualizar a proclamação do evangelho. A mensagem da Graça de Deus revelada em Cristo sempre será supracultural. Mas para o “kerigma”, é necessário conhecer a cultura dos povos a quem pregamos a Salvação. Sem contextualização, a consequência, tão bem conhecida pelo protestantismo de missão norte-americano e europeu que está na base da nossa igreja brasileira. Não podemos espiritualizar. O mesmo Paulo que disse aos Coríntios (1 Co 2.4) “a minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder”, conhecia bem tanto a cultura judaica quanto a greco-romana. É preciso conhecer para refutar e ir além: “engajar-se e/ou perfurar a cultura”, na frase feliz de Tim Keller.
Uma outra consequência é o desprezo que as camadas mais intelectualizadas da nossa sociedade brasileira demonstra pela “mente evangélica”, se posso usar tal expressão. Não existe mente evangélica, mas mentes evangélicas. Assim como é correto falar de distintas, complementares ou quase opostas expressões de catolicismo. Um católico carismático é bem diferente de um monge beneditino. O catolicismo popular passa longe da teologia e da espiritualidade monástica.
O outro lado da moeda é que a cultura é cheia de armadilhas também, não? Não foi legítimo (e até certo ponto compreensível) o esforço sincero de muitos evangélicos em não caírem nas tentações que a cultura brasileira trazia e traz? Por exemplo, se antes não era permitido envolver-se com política, hoje muitos se envolveram e se lambuzaram do pior jeito com ela.
Gerson Borges - Sim, é claro. É preciso desenvolver um discernimento sério entre Graça Comum e pecado - mas penso que historicamente temos nos fixado mais no “pecado cultural”. A cultura é boa, mas boa parte dela foi maculada pelo pecado. Isso é fato. O que tento argumentar no livro é que temos a tendência de assumir a polarização “Cristo/Cristão contra a cultura”, que sugere que a mesma é derivada da Queda - não é - e, portanto, deve ser inteiramente rejeitada, como se tal coisa fosse possível. Posso não ouvir MPB, mas vou comprar literatura! Posso não frequentar o teatro, mas assistirei filmes! Compreende? Não podemos fugir da cultura. Precisamos interpretá-la com os critérios das Escrituras. Ou cairemos no outro polo: mergulhar sem discernimento em manifestações absolutamente corrosivas à fé. Não é simples, mas não tem jeito. “No mundo, mas não do mundo”, pensando na oração do Nosso Senhor pelos discípulos.
Como sua fé em Cristo o ajudou a resgatar sua brasilidade?
Gerson Borges - Entendendo que Jesus era judeu. Compreendendo que Paulo era judeu, cidadão romano e fluente no helenismo. E assim também, a seu tempo e modo, Agostinho, Aquino, Teresa de Ávila, Lutero, Calvino, Wesley, Kuyper, Barth, Bonhoeffer, Luther King Jr, Teresa de Calcutá, C. S. Lewis, Cherterton, Billy Graham, Francis Schaeffer, Irmão André, René Padilla, Elbén Cesar, Antônio Elias, Russel Shedd, Robinson Cavalcanti, John Stott… todos lidaram com os desafios de seu tempo e contexto. O Cristianismo é o mesmo. Cristo não muda. O Evangelho da Graça é “para todo homem e o homem todo”, como diria Stott.
Seu livro fala sobre a “graça da cultura” e a “cultura da graça”. O que este trocadilho significa?
Gerson Borges - Com a expressão “a graça da cultura”, quero sublinhar o que há de Graça Comum na nossa brasilidade. Essa é uma doutrina reformada pouco conhecida, temida até, eu diria. Uma pena. Com “cultura da graça”, quero enfatizar a necessidade dos evangélicos serem mais graciosos, mais coerentes com seu discurso e pregação. Sei que posso ser taxado de “baratear, edulcorar a loucura da Cruz”, de supostamente negociar a radicalidade do Evangelho, a mensagem do arrependimento e de novo nascimento, mas não é o caso. Claro que não. Sou um ortodoxo, um conservador. Mas fecho com Jaroslav Pelikan no que ele sugere ao dizer: “A tradição é a fé viva do morto; o tradicionalismo é a fé morta do vivo”.
Além de pastor, você é músico. Comunica-se, portanto, com membros de uma comunidade local, gente que você conhece pelo nome, pela história, mas também com gente distante, que você não conhece ou conhece muito superficialmente. Como é pregar o Evangelho (no sentido mais profundo da expressão) para esta geração?
Gerson Borges - Um desafio extra extra extraordinário… é preciso conhecer o ethos , o modos vivendi dessa geração. É preciso sólida espiritualidade, e reflexão idem. Esse é um tempo muito difícil, não apenas para o evangelicalismo, mas para o Cristianismo como um todo. Penso que meus amigos sacerdotes e monges católicos diriam “amém”. Digo isso pelo tal “aumento da iniquidade” advertido na Escritura. Por exemplo, preciso confrontar o hedonismo narcisista que o abuso tecnológico propõe (Jacques Ellul, Munford Lewis, Heidegger entre outros, avisaram, mas não demos ouvido). Os fones são smart, mas os usuários são dumb, você não acha? Os psiquiatras estão falando em Nomofobia (“No mobile phobia”), uma espécie de síndrome de abstinência observada quando acaba a bateria do celular, ou não tem 3G… transtorno de ansiedade, pânico. Uma loucura isso! A leitura está morrendo, diriam porta-vozes do humanismo, como o recém-falecido Umberto Eco. Agora imagine a leitura profunda, tanto da Bíblia quanto dos clássicos literários e devocionais! A mente acelerada, hiper estimulada pela Era Digital não consegue parar nem para ouvir as pessoas; quanto mais “aquele sussurro suave”, a voz do Espírito de Deus! Aliás, as pessoas não querem Deus, querem resolver seus problemas. As pessoas não querem comunidade, querem serviços religiosos. A igreja deveria ser (olha a questão da identidade novamente) a comunidade dos discípulos de Jesus de Nazaré e não uma “sociedade individualizada”, termo este de Zygmund Bauman. Ouço mais e mais a expressão “estou indo na igreja tal”, o que considero o equivalente ao famigerado “estou ficando com fulano(a)”. Compromisso zero com tudo. Exceto com o máximo de prazer com o mínimo custo.
Você também está bem presente nas redes sociais. Quais as armadilhas e as bênçãos das redes sociais?
Gerson Borges - Assunto vasto...vamos lá! Em três frases:
1. A tecnologia não é neutra. Afeta-nos biológica, psíquica e espiritualmente;
2. É uma amiga e uma inimiga. Dá coisas, tira coisas. Não tem jeito.
3. Uso a tecnologia (que é muito mais que TIC, Tecnologia da Informação e Comunicação). Não quero ser usado por ela.
Enfim, concordo com a observação de que as redes sociais (só um aspecto da TIC) tem a tendência de aproximar quem está longe e afastar quem está perto. Mas como disse o brilhante crítico cultural e educador judeu e americano Neil Postman: “não podemos ser profetas caolhos, ou tecnófobos ou tecnófilos”. Esse assunto tem sido fonte de pesquisa e reflexão para mim. Quem sabe um novo livro em alguns meses...
Além de músico e pastor, você também é um leitor (compulsivo?). Por que a fé evangélica não produz mais tão bons escritores para o grande público?
Gerson Borges - Sim, leio sem parar. Vários livros, diversos gêneros ao mesmo tempo, tanto ficção quanto ensaios sobre assuntos que vão desde pedagogia, passando por filosofia, teologia e até tecnologia, como disse há pouco. Arte, Leitura e Espiritualidade são o tripé da minha sanidade. Sem ler e escrever eu surtaria num mundo louco como esse. Acho que o evangelicalismo não produz tantos escritores porque não (já) produz tantos leitores também. Já fomos “os Bíblia”, agora somos “os Gospel”. Trocamos a “leiturização” pelo entretenimento. Levamos a Igreja para a TV e agora estamos levando a TV para a igreja - nossas celebrações ou são miniprogramas televisivos (de auditório) ou ibope zero… Mas voltando à produção de escritores, sem leitura não há escrita. Sem uma mente que tenha prazer em ler não haverá mentes capazes de escrever. Falta imaginação ao nosso pobre e imaturo evangelicalismo. No livro eu cito exemplos americanos e ingleses. Onde estarão os nossos ficcionistas, poetas e dramaturgos? Eu gostaria de responder a essa pergunta, mas sinceramente não sei.
Qual sua esperança para o futuro da Igreja Evangélica no Brasil?
Gerson Borges - Não tem uma pergunta mais fácil, meu caro amigo? Bom, eu creio sinceramente no que propõe John Stott: simplicidade, compromisso e devoção. A simplicidade da leitura diária das Escrituras, da oração fervorosa, moda antiga, joelhos dobrados, coração quebrantado, sabe? E uma igreja menos empresa, menos ISO 9000 e alguma coisa, menos qualidade total, menos fé no marketing e mais na “comunhão dos santos”, mais seriedade na Ceia do Senhor, no Batismo e na disciplina comunitária, igrejas menores - nada contra as grandes, mas tudo a favor da gente se conhecer e conviver -, igrejas mais acolhedoras, onde ninguém chegue e saia sem ser notado e abraçado, igrejas mais inseridas na sua comunidade, igrejas que trabalhem pela justiça e pela paz, num país de tantas e vergonhosas disparidades sociais, um igreja profética, portanto, igrejas mais bíblicas, contemporâneas e relevantes. Uma igreja que celebra a hinologia protestante, mas não despreza o 2 por 4 do samba e do baião, poética, também; uma igreja com menos versões enlatadas na liturgia, uma igreja onde qualquer um tenha acesso ao pastor e o pastor não seja visto como um messias, como alguém que pode ser santo em nosso lugar, que resolva todos os nossos problemas etc. É um sonho, eu sei. Uma utopia. Mas eu tô nessa. Ou desisto de pastorear. Minha família e amigos sabem disso. E me ajudam. Graças a Deus.
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A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja (Ricardo Barbosa)
Igreja Evangélica: identidade, unidade e serviço (Robinson Cavalcanti)
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Lissânder Dias do Amaral é jornalista, blogueiro, poeta e editor de livros. Integra o Conselho Nacional da Interserve Brasil e o Conselho da Unimissional. É autor de “O Cotidiano Extraordinário – a vida em pequenas crônicas” e responsável pelo blog Fatos e Correlatos do Portal Ultimato. É um dos fundadores do Movimento Vocare e ajudou a criar as organizações cristãs de cooperação Rede Mãos Dadas e Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS).
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Site: http://www.fatosecorrelatos.com.br
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