Opinião
- 23 de janeiro de 2014
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Pedrinhas, as lagostas e o reino de Deus
Qual a relação entre a violência na penitenciária de Pedrinhas (MA), as lagostas da governadora e o reino de Deus?
No ano de 1968 o então governador do estado do Maranhão José Sarney discursava no púlpito do templo central da Assembleia de Deus em São Luís.1 Na época, suas promessas eram (conforme demonstra o filme encomendado por ele ao cineasta Glauber Rocha em 1966): modernizar o estado, eliminar a pobreza, garantir saúde e moradia, diminuir o analfabetismo e eliminar o atraso. A população depositou na sua liderança política as esperanças de outro destino e os evangélicos apoiaram a sua ascensão política.
Naquele mesmo ano de 68 era promulgado o AI5, ato institucional que concedeu ao governo dos militares a legitimidade do uso da violência contra os cidadãos. Passados 50 anos, o “clã Sarney” manteve o Maranhão nos piores índices sociais e humanos do Brasil, os evangélicos cresceram para cerca de 30% da população do estado (IBGE/2010) e a violência explodiu na penitenciária de Pedrinhas, atingindo também a população. Pedrinhas foi a boca do vulcão e a chacina foi a erupção, as lagostas representam a indiferença e o retrato do governo.
Roseana Sarney governou o estado por quatro mandatos, fora os outros governadores ligados ao pai. Ruas, bairros, prédios públicos, viadutos, hospitais, entidades e organizações possuem o nome “Sarney”, e até um mausoléu apropriado do estado, o Convento das Mercês, está preparado para o sonho faraônico da imortalidade. Isto porque no Maranhão há um agravante, em que pese a situação semelhante a todo o país em termos de sistema prisional: o controle político de uma família e seus agregados que se apropriam do aparelho do estado para usufruto privado.
A pobreza e a miséria deixaram de negociar com o sistema decaído por um momento e se manifestaram com violência incontida e ressentida pelas suas brechas, contradições, concessões e conivências. Estas, inclusive dos evangélicos também. A modernização nas décadas recentes aumentou o PIB do estado, mas aguçou as desigualdades sociais e não eliminou a miséria. No Maranhão, em 2002 eram 18,97% da população vivendo na linha da miséria e, em 2012, eram 12,90% ainda na mesma condição. O Piauí no mesmo período diminuiu de 22,58% para 4,26%.2
Enquanto as facções do tráfico de drogas importadas realizavam atos desumanos sob a aquiescência e inoperância do estado, a governadora encomendava lagostas, camarões e sorvetes ao preço de 1 milhão de reais para o Palácio do Governo e a sua casa. Como em todo o Brasil, a violência nos presídios aponta para a ineficiência do estado e do judiciário em garantir aos presos as mínimas condições humanas de sobrevivência e de justiça. Um dos decapitados estava em prisão provisória por ter receptado pneus roubados, preso junto com criminosos muito mais perigosos!
Mas, como ver (Jo 3.5) o Reino de Deus nisto tudo? O recado de Pedrinhas é que a justiça, a alegria e a paz (Rm 14.17) não têm vez e nem voz na história, que a lógica perversa do sistema as supera por meio da violência arbitrária dos criminosos, das lagostas absurdas da governadora e das mortes de inocentes como a da menina Ana Clara. No entanto, lembro-me da pergunta feita sobre Auschwitz após o fim da segunda guerra (1939-1945), aqui modificada: “como não falar de Deus depois de Pedrinhas”?
O reino está justamente neste paradoxo, pois ele se mostra quando é negado de forma extrema. As mortes, a violência, a corrupção, a indiferença para com os pobres e a violação dos direitos humanos em graus inimagináveis negam este reino e anulam qualquer afirmação de termos no Brasil uma sociedade cristã e uma igreja que se diz evangélica. Naquele “vale de ossos, sangues e cabeças decapitadas” há que soprar a Vida que nega esta negação e triunfa sobre a morte. A esperança, tal como diz Jürgen Moltmann, irrompe no vazio da presença de Deus.
O reino de Deus pode ser visto na indignação ante a necessidade da justiça; nas muitas vozes – até agnósticas! – que falaram como se fossem seus profetas; nos gestos de solidariedade e humanidade que surgiram para com as vítimas; nas consciências e nos corações tristes e indignados; na sensibilidade da igreja que se compadeceu, orou e agiu a favor dos que não podem falar; na menina Ana Clara que morreu queimada no ônibus incendiado, inocente e sem poder reagir, como o Cordeiro que foi morto em nosso lugar. Ana Clara clama por justiça e, por isso, o reino de Deus reclama a sua presença.
Quando Jesus disse que o “reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17.21), ele pode ter afirmado que este reino se esconde e se reserva. Assim como os peixes se refugiam nos lugares mais profundos dos rios em tempos de ausência da chuva, o reino se refugia em nós e nas pessoas quando seus sinais são negados. Mas ele não permanece somente aí; antes sinaliza a si mesmo nas ações transformadoras de justiça, de amor e de serviço.
Que os políticos como Sarney nunca mais subam nos púlpitos de nossas igrejas. Que a igreja se arrependa das alianças, das vantagens e das conivências com o poder. Que o povo de Deus ore pelo fim de um domínio que só trouxe injustiça e desigualdade, sofrimento e violência. Tal como foi Elias que orou e desestabilizou o poder em seus dias, oremos para que este domínio acabe.
Notas:
1. Jornal Mensageiro da Paz – Novembro de 1968.
2. Jornal O Globo, de 11/01/2014.
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Corrupção – do Éden ao jeitinho brasileiro
Cristianismo e política
A falência dos deuses
No ano de 1968 o então governador do estado do Maranhão José Sarney discursava no púlpito do templo central da Assembleia de Deus em São Luís.1 Na época, suas promessas eram (conforme demonstra o filme encomendado por ele ao cineasta Glauber Rocha em 1966): modernizar o estado, eliminar a pobreza, garantir saúde e moradia, diminuir o analfabetismo e eliminar o atraso. A população depositou na sua liderança política as esperanças de outro destino e os evangélicos apoiaram a sua ascensão política.
Naquele mesmo ano de 68 era promulgado o AI5, ato institucional que concedeu ao governo dos militares a legitimidade do uso da violência contra os cidadãos. Passados 50 anos, o “clã Sarney” manteve o Maranhão nos piores índices sociais e humanos do Brasil, os evangélicos cresceram para cerca de 30% da população do estado (IBGE/2010) e a violência explodiu na penitenciária de Pedrinhas, atingindo também a população. Pedrinhas foi a boca do vulcão e a chacina foi a erupção, as lagostas representam a indiferença e o retrato do governo.
Roseana Sarney governou o estado por quatro mandatos, fora os outros governadores ligados ao pai. Ruas, bairros, prédios públicos, viadutos, hospitais, entidades e organizações possuem o nome “Sarney”, e até um mausoléu apropriado do estado, o Convento das Mercês, está preparado para o sonho faraônico da imortalidade. Isto porque no Maranhão há um agravante, em que pese a situação semelhante a todo o país em termos de sistema prisional: o controle político de uma família e seus agregados que se apropriam do aparelho do estado para usufruto privado.
A pobreza e a miséria deixaram de negociar com o sistema decaído por um momento e se manifestaram com violência incontida e ressentida pelas suas brechas, contradições, concessões e conivências. Estas, inclusive dos evangélicos também. A modernização nas décadas recentes aumentou o PIB do estado, mas aguçou as desigualdades sociais e não eliminou a miséria. No Maranhão, em 2002 eram 18,97% da população vivendo na linha da miséria e, em 2012, eram 12,90% ainda na mesma condição. O Piauí no mesmo período diminuiu de 22,58% para 4,26%.2
Enquanto as facções do tráfico de drogas importadas realizavam atos desumanos sob a aquiescência e inoperância do estado, a governadora encomendava lagostas, camarões e sorvetes ao preço de 1 milhão de reais para o Palácio do Governo e a sua casa. Como em todo o Brasil, a violência nos presídios aponta para a ineficiência do estado e do judiciário em garantir aos presos as mínimas condições humanas de sobrevivência e de justiça. Um dos decapitados estava em prisão provisória por ter receptado pneus roubados, preso junto com criminosos muito mais perigosos!
Mas, como ver (Jo 3.5) o Reino de Deus nisto tudo? O recado de Pedrinhas é que a justiça, a alegria e a paz (Rm 14.17) não têm vez e nem voz na história, que a lógica perversa do sistema as supera por meio da violência arbitrária dos criminosos, das lagostas absurdas da governadora e das mortes de inocentes como a da menina Ana Clara. No entanto, lembro-me da pergunta feita sobre Auschwitz após o fim da segunda guerra (1939-1945), aqui modificada: “como não falar de Deus depois de Pedrinhas”?
O reino está justamente neste paradoxo, pois ele se mostra quando é negado de forma extrema. As mortes, a violência, a corrupção, a indiferença para com os pobres e a violação dos direitos humanos em graus inimagináveis negam este reino e anulam qualquer afirmação de termos no Brasil uma sociedade cristã e uma igreja que se diz evangélica. Naquele “vale de ossos, sangues e cabeças decapitadas” há que soprar a Vida que nega esta negação e triunfa sobre a morte. A esperança, tal como diz Jürgen Moltmann, irrompe no vazio da presença de Deus.
O reino de Deus pode ser visto na indignação ante a necessidade da justiça; nas muitas vozes – até agnósticas! – que falaram como se fossem seus profetas; nos gestos de solidariedade e humanidade que surgiram para com as vítimas; nas consciências e nos corações tristes e indignados; na sensibilidade da igreja que se compadeceu, orou e agiu a favor dos que não podem falar; na menina Ana Clara que morreu queimada no ônibus incendiado, inocente e sem poder reagir, como o Cordeiro que foi morto em nosso lugar. Ana Clara clama por justiça e, por isso, o reino de Deus reclama a sua presença.
Quando Jesus disse que o “reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17.21), ele pode ter afirmado que este reino se esconde e se reserva. Assim como os peixes se refugiam nos lugares mais profundos dos rios em tempos de ausência da chuva, o reino se refugia em nós e nas pessoas quando seus sinais são negados. Mas ele não permanece somente aí; antes sinaliza a si mesmo nas ações transformadoras de justiça, de amor e de serviço.
Que os políticos como Sarney nunca mais subam nos púlpitos de nossas igrejas. Que a igreja se arrependa das alianças, das vantagens e das conivências com o poder. Que o povo de Deus ore pelo fim de um domínio que só trouxe injustiça e desigualdade, sofrimento e violência. Tal como foi Elias que orou e desestabilizou o poder em seus dias, oremos para que este domínio acabe.
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Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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