Opinião
- 11 de setembro de 2019
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Os textos bíblicos mais discutidos pelos tradutores
Por Vilson Scholz
Tradução, que é a transferência de uma língua para outra, é uma necessidade absolutamente intransferível – e ao mesmo tempo fascinante – no mundo pós-Babel. Tradução é “uma impossibilidade possível”. Por mais complexa que seja uma mensagem, sempre é possível expressá-la em outra língua, de uma ou de outra forma. Tradução é um processo de perdas e ganhos, em que muitas vezes um texto “perde”, ao ser traduzido, mas, em determinadas circunstâncias, também “sai ganhando”. Isto vale também para a tradução bíblica: nem sempre é possível transmitir todas as nuanças do original, o que é uma perda, mas há momentos em que a tradução “ajuda” o texto original, seja em termos de aperfeiçoamento do estilo, seja na forma de um ocultamento das dificuldades ligadas à sua tradução.
Antes de falar sobre textos difíceis de traduzir, é preciso deixar claro que todos os versículos da Bíblia podem ser traduzidos, como de fato já estão traduzidos. É difícil encontrar alguma tradução bíblica em que apareçam pontinhos ou algo assim, para indicar que não há como traduzir. A grande maioria dos textos bíblicos pode ser traduzida com relativa facilidade. Isto não significa que a explicação do texto é fácil. Por exemplo, não há maior dificuldade em traduzir Ap 13.11, o clássico texto da “besta”. O termo grego theríon designa um animal selvagem, que, pelo contexto, é um monstro, como diz a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). Na verdade, porém, é um símbolo, e não um animal de quatro patas. Traduzir é tão fácil quanto escrever “besta” ou “monstro”. Mas a quem ou a que se refere? Está aberto o debate.
Começando com “no princípio”
Não é preciso esperar muito para entrar numa discussão a respeito de tradução bíblica, porque ela pode começar com a primeira palavra de Gênesis, a locução preposicional “no princípio”. Em hebraico, é bereshit. Consta que rabinos já discutiam por que a revelação de Deus começa com a letra “b”, e não com a letra “a”. Conclusão – divertida, mas não desprovida de dimensão teológica –: o Santo Deus reservou o “a” para si mesmo, começando a revelação com a segunda letra. (A dimensão teológica é esta: revelação sempre vem precedida por ocultamento, e o ocultamento pode ser maior do que a revelação, mesmo que esta seja bem extensa, como de fato é). Mas não é este o problema que aflige os tradutores. O real problema vem expresso numa nota na Bíblia de Estudo da NTLH (e também em outras Bíblias de estudo): “O texto original hebraico também pode ser traduzido assim: No começo, quando Deus criou os céus e a terra... ou Quando Deus começou a criar os céus e a terra...”. Neste caso, o primeiro versículo da Bíblia é uma oração subordinada de tempo, e a frase principal é o versículo 2. O resultado é este: “Quando Deus começou a criar os céus e a terra, a terra era sem forma e vazia”. No entanto, é preciso acrescentar imediatamente que mesmo quem registra essa possibilidade de tradução, normalmente numa nota de rodapé, conclui que a melhor opção é seguir as traduções antigas e dizer: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. Em outras palavras, Gênesis 1.1 é um versículo independente, uma espécie de título daquela seção do livro.
Espírito ou vento?
Ao passar adiante, entrando em Gênesis 1.2, o tradutor depara-se com mais uma dificuldade (ou mais de uma, se quiser começar pela discussão do significado de “sem forma e vazia”): como traduzir “o Espírito de Deus”, na frase “o Espírito de Deus se movia sobre as águas”. Ué, mas qual é a dificuldade? Não está escrito “Espírito de Deus”? E “Espírito” não tem a letra inicial maiúscula? Sim, está traduzido, mas o que está escrito em hebraico é ruach Elohim. E o termo hebraico ruach, assim como o termo grego pneuma, pode significar “vento”. Tanto assim que a Bíblia de Jerusalém traduz esse texto assim: “um sopro de Deus agitava a superfície das águas”. A mesma tradução bíblica oferece uma opção, em nota de pé de página: “um grande vento agitava a superfície das águas”. Quem defende esta tradução por “vento” afirma que o uso do termo “Espírito” resultaria na imposição de uma doutrina do Novo Testamento a um texto do Antigo Testamento. Mas, se alguém examinar o texto em outras tantas (dezenas) de traduções, verá que, em Gn 1.2, a grande maioria traz “Espírito de Deus”.
Quando Adam passa a ser “Adão”?
Outra dificuldade, no início do Gênesis, é o termo hebraico adam, que pode significar “homem” ou “humanidade”, mas que é também o nome de “Adão”. Em que momento, nessa narrativa, o tradutor deveria deixar de lado a tradução por “homem” e começar a usar “Adão”? As traduções não são unânimes. Algumas começam a mencionar “Adão” em Gênesis 2.7 (o Targum ou tradução aramaica), enquanto outras o fazem em Gn 2.16 (a Septuaginta grega). Em outras traduções, essa passagem é feita em Gn 2.19 (King James Version, Almeida Revista e Atualizada e Nova Almeida Atualizada), em Gn 2.20 (NTLH e NVI) ou em Gn 2.23 (O Livro, de Portugal). Mas algumas traduções esperam até Gn 3.17 (RSV, Tradução Brasileira e Almeida Revista e Atualizada). Em outras, “Adão” não aparece antes de Gn 3.21 (New English Bible) ou até mesmo antes de Gn 4.25 (New Revised Standard Version).
A polêmica em torno de Isaías 7.14
Aquilo que se verifica no caso da tradução de Gênesis 1.2, em que existem implicações teológicas (“Espírito” ou “vento”), aparece em muito maior escala na tradução de Isaías 7.14. Este texto é citado em Mateus 1.23 e é, com certeza, um dos textos mais discutidos no campo da tradução bíblica. A discussão gira em torno do significado da palavra hebraica almáh, geralmente traduzida por “virgem”. Tudo estaria em paz, não fosse a NTLH dizer: “a jovem que está grávida dará à luz um filho”. Esta tradução existe desde 1988. No entanto, a respeitável e famosa Tradução Brasileira, de 1917, já dizia: “eis que uma donzela conceberá, e dará à luz um filho”. Sempre que alguém traduz por algo que não seja “virgem”, surge a acusação de que os tradutores não acreditam que Jesus nasceu de uma virgem. Ignora-se o fato de que, em Mt 1.23, esta verdade está expressa com todas as letras.
Qual a dificuldade ou o problema em Is 7.14? O termo hebraico é almáh, que ocorre sete vezes no Antigo Testamento e que designa uma jovem com idade para casar. Em Is 7.14 e em mais uma passagem, a Septuaginta, que é a tradução grega do Antigo Testamento, feita ainda no período antes de Cristo, optou pelo termo grego parthénos, que designa uma “virgem”, no sentido de uma pessoa que ainda não teve relações sexuais. Nos outros cinco textos, a Septuaginta costuma usar neanís, que quer dizer “jovem” ou “moça”. Existe outro termo hebraico, betuláh, que significa “virgem”. Mas não é este o termo que aparece em Is 7.14. Fosse betuláh, e não almáh, necessariamente teria de aparecer o termo “virgem”, na tradução.
Ao optarem pelo termo grego parthénos, os tradutores da Septuaginta escolheram uma palavra mais específica para traduzir uma ideia mais ampla. Escolheram o termo “virgem” para traduzir “jovem” ou “donzela”. Seria como escolher “cascavel” para traduzir “cobra”. Os judeus, nos primeiros séculos da era cristã, olharam para essa tradução da Septuaginta – que eles mesmos, os judeus, tinham feito – e acharam que ela era “cristã” demais, pois favorecia a confissão de fé “nasceu da virgem Maria”. Isto fez com que rejeitassem a Septuaginta e tratassem de fazer outras traduções.
Hoje acontece o contrário: rejeita-se a Bíblia que traduz o hebraico sem prestar atenção à tradução grega e à citação da mesma no Novo Testamento. Isto levanta a seguinte questão: ao se traduzir o Antigo Testamento, é necessário levar em conta a maneira como esses textos foram citados no Novo Testamento? É preciso usar o termo “virgem” em Isaías 7.14 porque este texto, ao ser citado em Mt 1.23, inclui a palavra “virgem”? Ou seria necessário traduzir o Antigo Testamento em termos do hebraico, sem levar em conta o que ocorre no Novo Testamento grego? A tradução de Almeida (e a grande maioria das demais) tende a seguir o primeiro caminho, pois, neste caso, parece traduzir o Antigo Testamento com um ouvido atento para o Novo. A Bíblia na Linguagem de Hoje (NTLH) traduz o texto hebraico, sem levar em conta como o texto foi usado mais tarde.
Normalmente, a discussão sobre Is 7.14 isola esse texto, ignorando o contexto. Lendo adiante, em Isaías, percebe-se que, no momento em que aquele menino chegasse a certa idade, as terras dos inimigos do rei Acaz estariam completamente abandonadas. E a gravidez daquela “jovem” seria um sinal para o rei Acaz. Portanto, aquela moça ficaria grávida no tempo de Isaías. Era uma virgem? Se fosse, teríamos mais alguém, além de Jesus, que teria nascido de virgem. Pode-se afirmar algo assim? Parece claro que aquela profecia de Isaías se cumpriu em mais de uma ocasião: no tempo de Acaz, quando uma jovem (talvez princesa ou a própria rainha) teve um filho, e no tempo do Novo Testamento, quando Jesus nasceu. O cumprimento maior, é claro, se deu com o nascimento de Jesus. Isto está anunciado no Antigo Testamento, mas só fica bem claro no Novo.
Os textos favoritos, como Salmo 116.15
Existem também textos bíblicos que são difíceis de traduzir porque têm um significado especial para as pessoas. Pode ser um versículo do qual foi tirado o nome específico da igreja. Por exemplo, “chuva serôdia”. Se esta tradução for modernizada para “chuva fora de época”, isto não será prontamente aceito. Pode ser um versículo que tem um significado especial porque foi o texto da pregação no funeral de um membro da família. O exemplo que logo vem à mente é Salmo 116.15: “Preciosa é aos olhos do SENHOR a morte dos seus santos”. Houve – e ainda há – muitos protestos, porque a NTLH optou pela formulação “O SENHOR Deus sente pesar quando vê morrerem os que são fiéis a ele”. De lá para cá, a Nova Versão Internacional também diz o mesmo – “o SENHOR vê com pesar a morte de seus fiéis” –, mas quem continua com as “costas largas” e sob o fogo da crítica é a NTLH. Aqui, a tradução costumeira sugere que Deus fica feliz quando morre um fiel. A nova tradução diz claramente que Deus vê isso com pesar. Parece uma total inversão. Será que isso tem a ver com o termo traduzido por “preciosa”? O mesmo termo hebraico aparece em Sl 36.7, onde se lê: “Como é preciosa, ó Deus, a tua misericórdia!”. Precioso é o que tem alto preço ou custa caro. Se a morte de alguém custa caro e quem paga o preço é Deus, certamente a morte de um fiel não será um prazer para ele. No entanto, no caso de Salmo 116.15, são acima de tudo razões de ordem contextual que levam à tradução que aparece na NTLH. Ao longo de todo o Salmo 116, a ênfase reside no fato de se ter escapado da morte. Ou seja, o autor confessa que Deus o livrou da morte. Entre outros motivos, porque tal acontecimento causaria pesar ou seria algo “custoso” para Deus.
> Para ler a continuação do artigo acesse A Bíblia e os tradutores: os desafios e os textos mais difíceis.
Os textos favoritos, como Salmo 116.15
Existem também textos bíblicos que são difíceis de traduzir porque têm um significado especial para as pessoas. Pode ser um versículo do qual foi tirado o nome específico da igreja. Por exemplo, “chuva serôdia”. Se esta tradução for modernizada para “chuva fora de época”, isto não será prontamente aceito. Pode ser um versículo que tem um significado especial porque foi o texto da pregação no funeral de um membro da família. O exemplo que logo vem à mente é Salmo 116.15: “Preciosa é aos olhos do SENHOR a morte dos seus santos”. Houve – e ainda há – muitos protestos, porque a NTLH optou pela formulação “O SENHOR Deus sente pesar quando vê morrerem os que são fiéis a ele”. De lá para cá, a Nova Versão Internacional também diz o mesmo – “o SENHOR vê com pesar a morte de seus fiéis” –, mas quem continua com as “costas largas” e sob o fogo da crítica é a NTLH. Aqui, a tradução costumeira sugere que Deus fica feliz quando morre um fiel. A nova tradução diz claramente que Deus vê isso com pesar. Parece uma total inversão. Será que isso tem a ver com o termo traduzido por “preciosa”? O mesmo termo hebraico aparece em Sl 36.7, onde se lê: “Como é preciosa, ó Deus, a tua misericórdia!”. Precioso é o que tem alto preço ou custa caro. Se a morte de alguém custa caro e quem paga o preço é Deus, certamente a morte de um fiel não será um prazer para ele. No entanto, no caso de Salmo 116.15, são acima de tudo razões de ordem contextual que levam à tradução que aparece na NTLH. Ao longo de todo o Salmo 116, a ênfase reside no fato de se ter escapado da morte. Ou seja, o autor confessa que Deus o livrou da morte. Entre outros motivos, porque tal acontecimento causaria pesar ou seria algo “custoso” para Deus.
> Para ler a continuação do artigo acesse A Bíblia e os tradutores: os desafios e os textos mais difíceis.
• Vilson Scholz é pastor e professor de Teologia Exegética, tem mestrado e doutorado na área do Novo Testamento. Consultor de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, Scholz é professor da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas (RS), tradutor do Novo Testamento Interlinear Grego-Português (SBB) e autor de Princípios de Interpretação Bíblica (Editora da Ulbra).
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