Opinião
- 26 de fevereiro de 2021
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Os dons do Espírito Santo não são ornamentos
Por César Moisés Carvalho
Trinta anos depois de publicar sua Introdução ao Cristianismo, o então cardeal alemão, Joseph Ratzinger, hoje mundialmente conhecido como Bento XVI — seu nome de pontificado, exercido entre 2005 e 2013 —, escreveu no prefácio à reedição que a religião vem sendo redescoberta, principalmente no novo milênio, como “experiência”, afastando-se das “igrejas cristãs tradicionais”, pois para a mentalidade atual, “instituições e dogmas estão atrapalhando”.1 Já se vão mais de duas décadas e as palavras do teólogo católico, especialmente no Brasil, parecem tão atuais quanto o foram naquele já longínquo abril de 2000.
Ungido com o Espírito
A encarnação de Jesus Cristo é um mistério (Jo 1.1-14). Deus se fez homem e tornou-se como um de nós habitando conosco, sofrendo todas as nossas dores e enfrentando nossos dilemas sem, todavia, ter deixado de ser Deus (Fp 2.5-11). A despeito disso, em sua condição terrena, Ele não prescindiu da assistência e capacitação do Espírito Santo. O Nazareno, pelo Espírito, foi conduzido ao deserto para ser tentado, acompanhado pelo Espírito para executar sua missão e ungido com o Espírito Santo, por intermédio do Pai, para fazer “o bem e curar a todos os oprimidos do diabo” (At 10.38 cf. Lc 4.1-20; 5.17).
Com a redenção plenamente garantida, o Mestre assegurou aos seus discípulos que não os deixaria órfãos, mas que enviaria outro Consolador que estaria com eles para ajudar-lhes no cumprimento da parte inacabada da missão de continuarem anunciando o Reino de Deus (Jo 14.16-27; 16.1-15). Tal mensagem possui uma integralidade, pois o que Jesus anunciava não era apenas querigmático, mas igualmente proléptico, ou seja, antecipatório da realidade final, por isso, suas palavras e obras formavam uma unidade indivisível, uma práxis que demarcava claramente a diferença entre seu ensino e o dos escribas e fariseus (Mc 1.21-28; Lc 24.19; At 1.1; Mt 28.19,20; Mc 16.15-20).
A necessidade dos dons do Espírito
É comum atribuir-se os conflitos da igreja de Corinto ao fato de ela ser uma comunidade carismática, todavia, estando sob o signo do pecado, tudo que o ser humano faz tem a possibilidade de exceder culminando em prejuízos individuais e coletivos. Neste aspecto, os dons não são o problema e sim o mau exercício deles. Sendo um microcosmo eclesiástico, Corinto configura uma amostragem interessante do perigo que significa possuir carisma sem o exercício do amor ágape, pois este, antes de qualquer coisa, é alteritativo e doador. Não é à toa que entre os capítulos 12 e 14 da primeira epístola aos Coríntios, instrutivos sobre os dons, tenha o capítulo 13, um monumento ao amor.
Os dons não são ornamentos e, apesar de serem ferramentas e instrumentos imprescindíveis ao cumprimento da missão deixada por Jesus Cristo aos seus discípulos, não devem ser utilizados para benefício próprio (At 8.9-24). Se o próprio Cristo, Cabeça da Igreja, não prescindiu da unção e capacitação do Espírito, o Corpo jamais pode imaginar-se autossuficiente e achar que, à parte dos carismas, será possível cumprir a missão que lhe foi confiada. Justamente por isso, as listas de dons apresentadas nas Escrituras não são exaustivas e nem limitantes (Rm 12.6-8; 1Co 12.8-10, 28-30; Ef 4.11), pois o que se requer do exercício dos dons, além do amor, é discernimento comunitário e utilização a serviço do outro (1Co 12.7; 1Ts 5.21), sendo as Escrituras igualmente contrárias a sua obstrução, pois a recomendação paulina continua vigente: “Não extingais o Espírito” (1Ts 5.19).
A contemporaneidade dos dons do Espírito
Para o cristianismo e, particularmente, para as tradições protestantes, sejam elas carismáticas ou não, existe um postulado básico que não apenas ensejou a Reforma, em 1517, mas deu origem a tudo que somos até então: a centralidade das Escrituras. Neste sentido, toda e qualquer doutrina deve contar não apenas com o respaldo histórico, mas, sobretudo, bíblico. Com essa perspectiva, as expressões de fé cristã que são adeptas do cessacionismo — posição teológica que defende a cessação dos dons do Espírito com “a morte do último apóstolo” —, assim se posicionam por entenderem que a continuidade experiencial subverte a autoridade e a suficiência das Escrituras.
Do outro lado do espectro, as tradições carismáticas e continuístas creem que a manifestação dos dons do Espírito não é apenas plenamente legítima, mas desejável. Isso pelo simples fato de que a Igreja continua sua missão e o Reino de Deus ainda não está plenamente instaurado, ou seja, o que é “perfeito” ainda não se completou e, por isso, os dons são imprescindíveis (1Co 14.10). Um simples e rápido olhar nas epístolas paulinas mostra os perigos e excessos que rondam tanto uma quanto a outra posição (1Ts 5.19,20; 1Co 14.1ss). Todavia, não se pode ignorar a verdade de que a ordem é imperativa e peremptória quanto a não apagar o Espírito e não desprezar as profecias, ao passo que, os excessos no exercício dos dons devem ser corrigidos com entendimento e zelo, mas não se afirma que os dons não devem ter lugar e espaço, antes sua busca é incentivada (1Co 14.26-33).
Sob esse prisma bíblico-autoritativo, as tradições carismáticas, pentecostais ou renovadas, existem e apresentam o evangelho com a promessa de que seus membros podem e devem vivenciar as mesmas experiências dos cristãos do primeiro século, sendo os dons do Espírito uma de suas principais características. Em nosso país, tais tradições estão experimentando um momento especial com o despertamento teológico, a partir da hermenêutica, mostrando que há legitimidade interpretativa na forma de os carismático-pentecostais lerem a Bíblia. Com 110 anos de implantação em solo pátrio, resta saber quais serão os rumos que as comunidades de fé que se alinham às tradições carismáticas tomarão, pois o erro, de acordo com o que disse Jesus, vem de não conhecer as “Escrituras, nem o poder de Deus” (Mt 22.29).
NOTA
1 RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. Preleções sobre o Símbolo Apostólico. 6.ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 16.
• César Moisés Carvalho, pastor assembleiano, pós-graduado em Teologia pela PUC-Rio e mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de, entre outros, Pentecostalismo e Pós-Modernidade (CPAD).
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