Opinião
- 23 de novembro de 2015
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Ocidente e Oriente: um jogo de espelhos
REFUGIADOS | Artigo 03
Os recentes atentados em Paris serviram, em primeiro lugar, para reacender o credo secularizado ocidental da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em segundo, embora o discurso da grande mídia distinga as ações do “estado islâmico radical” do conjunto do islamismo, essa religião permanece sob a suspeita de ser a matriz do mal. Em terceiro, recoloca-se o dualismo entre o ocidente civilizado e desenvolvido e o oriente atrasado sob a barbárie.
Essas concepções parciais reforçam as imagens negativas do mundo oriental que é plural e projetam a ilusão de um ocidente livre e democrático, rico e secularizado “graças a Deus”, porquanto ainda é residualmente “cristão”.1 Lembremos que esse “abençoado” credo ocidental foi construído com base na expropriação das riquezas dos outros continentes, na prática do tráfico escravo africano, no desrespeito às culturas nativas e na exploração da mão-de-obra (inclusive infantil) dessas regiões.
Entretanto, dentre muitos outros desdobramentos desse atentado, uma vez mais os refugiados são diretamente afetados.2 As fronteiras, outrora semiabertas sob o imperativo da tolerância e da solidariedade, recuam para a sombra da desconfiança e da reafirmação de identidades e das ideologias ultraconservadoras. Essa reação de parte do ocidente justifica-se, não por causa do ISIS, mas porque os refugiados apontam na direção de uma nova ordem mundial.
Trata-se de um dos mais importantes movimentos atuais, sejam os refugiados do norte da África e do oriente médio, os moradores de rua nas nossas urbes, sejam os desabrigados da barragem de Mariana por causa da ganância das empresas de minério. Slavoj Zizek identifica a causa última da fuga em massa de etnias e povos no próprio capitalismo global e seus jogos geopolíticos e, neste sentido, impõe-se a necessidade de uma redefinição da soberania nacional e de novos níveis de cooperação global.
De fato, esse movimento populacional questiona a ingerência norte-americana e europeia em regiões da Ásia e da África com seus interesses geopolíticos e econômicos. Tal intervenção tem sido fator determinante para a acentuação dos conflitos locais, atravessados também por ódios raciais e religiosos. O “estado islâmico”3 é um dos seus subprodutos históricos. Sua ação terrorista numa boate parisiense representa a reação ao estilo de vida abastado e autossuficiente do mundo ocidental e demonstra que sua presença na Europa equivale a de um vírus que invade o sistema para destruí-lo.
Esse cenário exige ultrapassar as explicações simplistas de que se trata de uma estratégia islâmica para dominar o ocidente “cristão”, com seus terroristas infiltrados. Imagina-se que o ocidente “cristão” está sendo invadido pelas hordas do inimigo, as anticruzadas da pós-modernidade, como se a humanidade se resumisse a dois lados, o do bem (Cristianismo ocidental) e o do mal (Islamismo oriental). Nada mais equivocado e absurdo. Como afirmou Edward Said, o ocidente inventou o oriente num jogo de espelhos.
Essa maneira de pensar perde a dimensão da ação de Deus na história, identificando o Senhor da vida a uma “cristandade” que suspeitamos não mais existir e, muito menos ainda mais evoluída que o oriente, que não é na sua totalidade islâmico. Por sua vez, se os islâmicos fossem inimigos o imperativo de nosso Senhor é amá-los, pois o Deus de nossa “casa comum” não faz acepção de pessoas e as ama sem as nossas construções culturais e religiosas de classificação negativa do outro.
Com tristeza, vemos discursos missiológicos que reduzem a missão à questão da conquista do território por meio da implantação de igrejas. Nada mais empobrecedor da dimensão libertadora do Evangelho que aponta para o serviço desinteressado movido pelo amor ao próximo. O samaritano não perguntou ao largado na beira da estrada se se tratava de um judeu, um grego, um romano, um rico, um pobre, um islâmico, um heterossexual ou um homossexual.
Nesse sentido, podemos ver e acolher os refugiados como pessoas e famílias enviadas até nós, numa clara oportunidade de serviço àqueles que estão à porta e batem, como sendo o próprio Senhor que está à porta e bate (Ap 3.20; Mt 25.35,40). Há algo do Reino de Deus acontecendo! Pois, se outrora se pensava que o sentido da missão era enviar mensageiros (as) aos povos distantes, nesse momento da história, são os povos que estão sendo enviados. É a inversão da missão.
Referências
SAID, Edward W. “Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente”. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1978.
Slavoj Zizek. “Não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar a crise do capitalismo global”. In: http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/slavoj-zizek/
Notas:
1. As palavras de Jesus à igreja de Laodiceia cabem a esse ocidente de verniz cristão e a uma parcela das igrejas ocidentais: “... pois dizes: estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu” (Ap 5.17).
2. O fenômeno dos refugiados representa o deslocamento e a fuga de populações causadas por perseguições religiosas, guerras e conflitos locais. A ONU e organismos internacionais classificaram tais deslocamentos como específicos em suas características contemporâneas, entendendo que, para além da assistência humanitária necessária, impõem-se relações diplomáticas, multilaterais, cooperativas e pacificadoras entre as nações e os povos atingidos.
3. Interessa ao ocidente definir a ação de radicais islâmicos como sendo um “estado”, porquanto justifica a ação militar contra um grupo que controla territórios e petróleo, a fim de financiar as ações terroristas. No entanto, não se pode compreendê-lo como sendo um estado no sentido clássico.
Foto: ©UNHCR/I.Prickett
Refugiados chegando na Europa
Os recentes atentados em Paris serviram, em primeiro lugar, para reacender o credo secularizado ocidental da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em segundo, embora o discurso da grande mídia distinga as ações do “estado islâmico radical” do conjunto do islamismo, essa religião permanece sob a suspeita de ser a matriz do mal. Em terceiro, recoloca-se o dualismo entre o ocidente civilizado e desenvolvido e o oriente atrasado sob a barbárie.
Essas concepções parciais reforçam as imagens negativas do mundo oriental que é plural e projetam a ilusão de um ocidente livre e democrático, rico e secularizado “graças a Deus”, porquanto ainda é residualmente “cristão”.1 Lembremos que esse “abençoado” credo ocidental foi construído com base na expropriação das riquezas dos outros continentes, na prática do tráfico escravo africano, no desrespeito às culturas nativas e na exploração da mão-de-obra (inclusive infantil) dessas regiões.
Entretanto, dentre muitos outros desdobramentos desse atentado, uma vez mais os refugiados são diretamente afetados.2 As fronteiras, outrora semiabertas sob o imperativo da tolerância e da solidariedade, recuam para a sombra da desconfiança e da reafirmação de identidades e das ideologias ultraconservadoras. Essa reação de parte do ocidente justifica-se, não por causa do ISIS, mas porque os refugiados apontam na direção de uma nova ordem mundial.
Trata-se de um dos mais importantes movimentos atuais, sejam os refugiados do norte da África e do oriente médio, os moradores de rua nas nossas urbes, sejam os desabrigados da barragem de Mariana por causa da ganância das empresas de minério. Slavoj Zizek identifica a causa última da fuga em massa de etnias e povos no próprio capitalismo global e seus jogos geopolíticos e, neste sentido, impõe-se a necessidade de uma redefinição da soberania nacional e de novos níveis de cooperação global.
De fato, esse movimento populacional questiona a ingerência norte-americana e europeia em regiões da Ásia e da África com seus interesses geopolíticos e econômicos. Tal intervenção tem sido fator determinante para a acentuação dos conflitos locais, atravessados também por ódios raciais e religiosos. O “estado islâmico”3 é um dos seus subprodutos históricos. Sua ação terrorista numa boate parisiense representa a reação ao estilo de vida abastado e autossuficiente do mundo ocidental e demonstra que sua presença na Europa equivale a de um vírus que invade o sistema para destruí-lo.
Esse cenário exige ultrapassar as explicações simplistas de que se trata de uma estratégia islâmica para dominar o ocidente “cristão”, com seus terroristas infiltrados. Imagina-se que o ocidente “cristão” está sendo invadido pelas hordas do inimigo, as anticruzadas da pós-modernidade, como se a humanidade se resumisse a dois lados, o do bem (Cristianismo ocidental) e o do mal (Islamismo oriental). Nada mais equivocado e absurdo. Como afirmou Edward Said, o ocidente inventou o oriente num jogo de espelhos.
Essa maneira de pensar perde a dimensão da ação de Deus na história, identificando o Senhor da vida a uma “cristandade” que suspeitamos não mais existir e, muito menos ainda mais evoluída que o oriente, que não é na sua totalidade islâmico. Por sua vez, se os islâmicos fossem inimigos o imperativo de nosso Senhor é amá-los, pois o Deus de nossa “casa comum” não faz acepção de pessoas e as ama sem as nossas construções culturais e religiosas de classificação negativa do outro.
Com tristeza, vemos discursos missiológicos que reduzem a missão à questão da conquista do território por meio da implantação de igrejas. Nada mais empobrecedor da dimensão libertadora do Evangelho que aponta para o serviço desinteressado movido pelo amor ao próximo. O samaritano não perguntou ao largado na beira da estrada se se tratava de um judeu, um grego, um romano, um rico, um pobre, um islâmico, um heterossexual ou um homossexual.
Nesse sentido, podemos ver e acolher os refugiados como pessoas e famílias enviadas até nós, numa clara oportunidade de serviço àqueles que estão à porta e batem, como sendo o próprio Senhor que está à porta e bate (Ap 3.20; Mt 25.35,40). Há algo do Reino de Deus acontecendo! Pois, se outrora se pensava que o sentido da missão era enviar mensageiros (as) aos povos distantes, nesse momento da história, são os povos que estão sendo enviados. É a inversão da missão.
Referências
SAID, Edward W. “Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente”. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1978.
Slavoj Zizek. “Não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar a crise do capitalismo global”. In: http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/slavoj-zizek/
Notas:
1. As palavras de Jesus à igreja de Laodiceia cabem a esse ocidente de verniz cristão e a uma parcela das igrejas ocidentais: “... pois dizes: estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu” (Ap 5.17).
2. O fenômeno dos refugiados representa o deslocamento e a fuga de populações causadas por perseguições religiosas, guerras e conflitos locais. A ONU e organismos internacionais classificaram tais deslocamentos como específicos em suas características contemporâneas, entendendo que, para além da assistência humanitária necessária, impõem-se relações diplomáticas, multilaterais, cooperativas e pacificadoras entre as nações e os povos atingidos.
3. Interessa ao ocidente definir a ação de radicais islâmicos como sendo um “estado”, porquanto justifica a ação militar contra um grupo que controla territórios e petróleo, a fim de financiar as ações terroristas. No entanto, não se pode compreendê-lo como sendo um estado no sentido clássico.
Foto: ©UNHCR/I.Prickett
Refugiados chegando na Europa
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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