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- 25 de março de 2019
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O Regresso do Peregrino: entretenimento sem deixar o cérebro flácido
Por Maurício Zágari | Resenha
A serpente se aproxima de Eva e, usando de malícia e criatividade, conta-lhe a primeira narrativa ficcional da história do gênero humano: “É claro que vocês não morrerão!”. Esse relato fictício e a realidade alternativa que ele apresenta conquistou o coração do primeiro casal — e conquistou a tal ponto que Adão e Eva fizeram suas escolhas pragmáticas estribados na ficção do tentador e não na realidade do Senhor. Sim, a ficção tem este poder: ela fascina, atrai, envolve, influencia.
Do Éden aos nossos dias, o fascínio humano pela ficção permanece inalterado. Quem entende o potencial que as realidades imaginadas têm sobre a mente e o coração humanos não abre mão desse poder. Jesus foi um exemplo. Ficcionista brilhante e habilidoso, criou mais de 40 histórias de ficção — as parábolas — para transmitir realidades vigorosas do reino de Deus, em prol do bem. Outros, como Joseph Goebbels e sua propaganda nazista, usaram a ficção em prol do mal. As redes sociais e suas fake news são a versão mais atual das narrativas criadas para conquistar mentes, corações, votos e poder. Sim, há poder na ficção, que pode ser usado para o bem ou para o mal.
Nos anos 1930, um cristão apaixonado por literatura decidiu fazer uso benigno desse poder a fim de tocar o coração e a mente de seus leitores. Foi assim que Clive Staples Lewis passou a utilizar todo o seu talento criativo para falar de questões filosóficas e religiosas. Surgia ali um dos maiores nomes da ficção cristã, que presentearia o mundo com obras imortais.
C. S. Lewis é conhecido por sua habilidade ímpar de transmitir realidades do cristianismo por meio de alegorias, fantasias e outras narrativas ficcionais, como bem mostram Cartas de um diabo a seu aprendiz e os livros da série As Crônicas de Nárnia. Mas toda sua literatura ficcional não teria causado o impacto que causou — e ainda causa — se Lewis não tivesse dado o primeiro passo no universo da ficção com uma obra marcante, cuja realização certamente lhe ensinou muito, e que chega aos leitores brasileiros em nova edição: O Regresso do Peregrino — Uma Defesa Alegórica do Cristianismo, da Razão e do Romantismo.
Nessa sua primeira incursão na literatura ficcional, de 1933, Lewis se inspirou abertamente em O Peregrino, de John Bunyan, a fim de construir uma alegoria que trata de temas como filosofia, política e ideologias socioeconômicas, além de questões da alma humana. Tal qual o clássico de Bunyan, neste debut ficcional de Lewis, um personagem central, João, se lança em uma jornada repleta de referências alegóricas, antropomorfização de conceitos e materialização geográfica de virtudes e vícios. O resultado é uma narrativa saborosa, que permite ao leitor ingressar em uma viagem por paisagens e terras que tanto mexe com o intelecto quanto proporciona deleites lúdicos.
A leitura é profunda e densa. Tão densa que causou, à época do lançamento da primeira edição, certa incompreensão de parte de críticos literários e leitores. Isso levou Lewis a escrever um prefácio à terceira edição, que a Ultimato, feliz e acertadamente, preservou. Nele, o autor procura explicar algumas abordagens da obra. O prefácio não é um mero apêndice à narrativa principal; antes, é uma aula de literatura, processo criativo, contextualização e, também, humildade autoral. Nesse prefácio, Lewis se revela, como autor e cristão consciente das próprias limitações.
Fora o prefácio, a jornada do herói João conduz o leitor ao prazer de participar de uma narrativa que, embora exija, não cansa, graças ao talento de Lewis com as palavras e à sua forma de construir e encadear as ideias. Quem já teve o privilégio de ler outras obras do autor reconhecerá a elegância estilística na elaboração de uma narrativa que transparece seu gosto pela criação ficcional. Não admira que O Regresso do Peregrino tenha dado início à trajetória profícua de Lewis pela seara da ficção: o todo da obra permite entrever o prazer do autor de criar universos e usar as páginas como trampolim para levar seus mundos extraordinários ao imaginário do leitor.
Como autor de livros cristãos de ficção, lamento que, no Brasil, sejamos tão carentes de boa literatura ficcional de cosmovisão cristã: menos de 1% dos livros lançados por editoras cristãs no país são do gênero, o que leva os amantes da ficção a dispor de muito poucas opções. Nesse cenário, quão bem-vindo é O Regresso do Peregrino! Uma obra que cumpre com zelo a tarefa de entreter sem deixar o cérebro flácido, proporcionando, com profundidade e criatividade, momentos instigantes para quem anseia por literatura testada e aprovada pelo decurso do tempo.
• Maurício Zágari é teólogo, editor da Editora Mundo Cristão, autor de nove livros publicados, comentarista bíblico e jornalista.
Leia mais
» Um livro para ler a vida toda: O Regresso do Peregrino
» Eu também comecei em “Puritânia”: um aviso de C. S. Lewis de que nos enganamos...
A serpente se aproxima de Eva e, usando de malícia e criatividade, conta-lhe a primeira narrativa ficcional da história do gênero humano: “É claro que vocês não morrerão!”. Esse relato fictício e a realidade alternativa que ele apresenta conquistou o coração do primeiro casal — e conquistou a tal ponto que Adão e Eva fizeram suas escolhas pragmáticas estribados na ficção do tentador e não na realidade do Senhor. Sim, a ficção tem este poder: ela fascina, atrai, envolve, influencia.
Do Éden aos nossos dias, o fascínio humano pela ficção permanece inalterado. Quem entende o potencial que as realidades imaginadas têm sobre a mente e o coração humanos não abre mão desse poder. Jesus foi um exemplo. Ficcionista brilhante e habilidoso, criou mais de 40 histórias de ficção — as parábolas — para transmitir realidades vigorosas do reino de Deus, em prol do bem. Outros, como Joseph Goebbels e sua propaganda nazista, usaram a ficção em prol do mal. As redes sociais e suas fake news são a versão mais atual das narrativas criadas para conquistar mentes, corações, votos e poder. Sim, há poder na ficção, que pode ser usado para o bem ou para o mal.
Nos anos 1930, um cristão apaixonado por literatura decidiu fazer uso benigno desse poder a fim de tocar o coração e a mente de seus leitores. Foi assim que Clive Staples Lewis passou a utilizar todo o seu talento criativo para falar de questões filosóficas e religiosas. Surgia ali um dos maiores nomes da ficção cristã, que presentearia o mundo com obras imortais.
C. S. Lewis é conhecido por sua habilidade ímpar de transmitir realidades do cristianismo por meio de alegorias, fantasias e outras narrativas ficcionais, como bem mostram Cartas de um diabo a seu aprendiz e os livros da série As Crônicas de Nárnia. Mas toda sua literatura ficcional não teria causado o impacto que causou — e ainda causa — se Lewis não tivesse dado o primeiro passo no universo da ficção com uma obra marcante, cuja realização certamente lhe ensinou muito, e que chega aos leitores brasileiros em nova edição: O Regresso do Peregrino — Uma Defesa Alegórica do Cristianismo, da Razão e do Romantismo.
Nessa sua primeira incursão na literatura ficcional, de 1933, Lewis se inspirou abertamente em O Peregrino, de John Bunyan, a fim de construir uma alegoria que trata de temas como filosofia, política e ideologias socioeconômicas, além de questões da alma humana. Tal qual o clássico de Bunyan, neste debut ficcional de Lewis, um personagem central, João, se lança em uma jornada repleta de referências alegóricas, antropomorfização de conceitos e materialização geográfica de virtudes e vícios. O resultado é uma narrativa saborosa, que permite ao leitor ingressar em uma viagem por paisagens e terras que tanto mexe com o intelecto quanto proporciona deleites lúdicos.
A leitura é profunda e densa. Tão densa que causou, à época do lançamento da primeira edição, certa incompreensão de parte de críticos literários e leitores. Isso levou Lewis a escrever um prefácio à terceira edição, que a Ultimato, feliz e acertadamente, preservou. Nele, o autor procura explicar algumas abordagens da obra. O prefácio não é um mero apêndice à narrativa principal; antes, é uma aula de literatura, processo criativo, contextualização e, também, humildade autoral. Nesse prefácio, Lewis se revela, como autor e cristão consciente das próprias limitações.
Fora o prefácio, a jornada do herói João conduz o leitor ao prazer de participar de uma narrativa que, embora exija, não cansa, graças ao talento de Lewis com as palavras e à sua forma de construir e encadear as ideias. Quem já teve o privilégio de ler outras obras do autor reconhecerá a elegância estilística na elaboração de uma narrativa que transparece seu gosto pela criação ficcional. Não admira que O Regresso do Peregrino tenha dado início à trajetória profícua de Lewis pela seara da ficção: o todo da obra permite entrever o prazer do autor de criar universos e usar as páginas como trampolim para levar seus mundos extraordinários ao imaginário do leitor.
Como autor de livros cristãos de ficção, lamento que, no Brasil, sejamos tão carentes de boa literatura ficcional de cosmovisão cristã: menos de 1% dos livros lançados por editoras cristãs no país são do gênero, o que leva os amantes da ficção a dispor de muito poucas opções. Nesse cenário, quão bem-vindo é O Regresso do Peregrino! Uma obra que cumpre com zelo a tarefa de entreter sem deixar o cérebro flácido, proporcionando, com profundidade e criatividade, momentos instigantes para quem anseia por literatura testada e aprovada pelo decurso do tempo.
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