Opinião
- 14 de março de 2023
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O que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram... The Chosen (Primeira temporada)
Por Carlos Caldas
O autor da primeira epístola de João1 inicia seu relato dizendo “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram [...] o que vimos e ouvimos nós [...] anunciamos” (1 Jo 1.1,3, Tradução Ecumênica da Bíblia). Tais frases se prestam perfeitamente bem para descrever a proposta de The Chosen – “Os Escolhidos”, a primeira série da história da TV e do cinema a respeito da vida de Jesus de Nazaré2. A série é criada e dirigida por Dallas Jenkins, cineasta estadunidense que é evangélico. Jenkins também tomou parte na escrita de alguns dos roteiros. The Chosen é na verdade uma produção independente, e já tem um recorde: é a produção campeã em crowfunding (financiamento coletivo e voluntário) da história do cinema e da TV.
A série conta a história de Jesus na perspectiva dos “escolhidos”, isto é, daqueles que “desde o princípio ouviram, viram, contemplaram, tocaram” a e em Jesus. Nesse artigo será comentada apenas a primeira temporada, disponível na plataforma de streaming Netflix3. Antes de prosseguir, uma explicação breve sobre a linguagem das narrativas, a bíblica e a fílmica. São duas linguagens diferentes. Muita gente quer que a adaptação fílmica de uma narrativa bíblica apresente apenas, unicamente e somente o que o texto bíblico apresenta. Acontece que as narrativas bíblicas são extremamente sucintas e lacônicas, o que faz com que seja literalmente impossível transpô-las “como estão” para cinema ou televisão4. Daí a necessidade incontornável de roteiristas imaginarem diálogos e situações que não constam dos textos bíblicos. Isso não é o fim do mundo, mas muita gente bem-intencionada, mas com uma visão ingênua e superficial não se dá conta disso de jeito nenhum, e se escandaliza ao ver um filme (ou, no caso de The Chosen, uma série) e reclama dizendo “ah, mas a Bíblia não fala isso”. Quem pensa assim não sabe que os evangelhos não são biografias de Jesus, no sentido contemporâneo da palavra. Os evangelistas não estavam preocupados em escrever história. Os relatos que produziram são teológicos. Quando lemos os evangelhos não vemos uma história cronológica, tal como entendemos atualmente a palavra “história”. Antes, encontramos uma teologia narrada, que não se preocupa em apresentar uma sequência ordenada dos eventos mencionados. É por essa razão que muitos tentaram escrever uma harmonia dos evangelhos, mas ninguém conseguiu, e nem vai conseguir. Não há como harmonizar cronologicamente os relatos dos evangelhos. O exemplo mais claro disso é o relato da assim chamada “purificação do templo”, que nos Sinóticos aparece imediatamente antes da prisão, julgamento e execução de Jesus na cruz (Mt 21.12-13; Mc 11.15-17; Lc 19.45-46) mas em João aparece no início do seu ministério (Jo 2.13-17). Evidentemente não se trata de contradição entre os Sinóticos e João: os evangelistas escreveram para audiências diferentes, tratando de problemas diferentes em contextos diferentes e com objetivos teológicos diferentes. Eles não tinham a menor preocupação em apresentar fatos em sequência cronológica. Essa preocupação é nossa, mas não era deles.
O que foi afirmado até o momento ajuda a entender a maneira como The Chosen conta a história de Jesus: a narrativa (não custa repetir: o presente texto foca apenas na primeira temporada da série) é apresentada na perspectiva dos “escolhidos” que dão título à série, no caso, Nicodemos, Mateus e Simão, aquele que mais tarde foi apelidado de Pedro, “a pedra”. Há alguns equívocos históricos. Um exemplo: uma cena em um dos primeiros episódios mostra Nicodemos e sua esposa sendo carregados por escravos em uma liteira. Os especialistas na história e no contexto socioeconômico e cultural da terra de Israel no tempo de Jesus são unânimes em afirmar que os fariseus, grupo do qual Nicodemos era parte, eram pessoas respeitadas (ou toleradas) pelo povo, mas não eram integrantes de uma elite econômica. Em outras palavras: os fariseus eram pessoas cultas, mas pobres. Mas deslizes como esses dos roteiristas da série são pequenos, não comprometem a qualidade da série. Alguns certamente estranharão também a inclusão de cenas que não existem nos evangelhos. Exemplo: Simão, endividado, se envolve em lutas por dinheiro em uma “rinha” ao ar livre, em uma tentativa de tentar saldar seus compromissos, e seu irmão André é seu “empresário”, por assim dizer. Claro, não há disso na Bíblia. Mas isso não compromete a qualidade da série. É um detalhe criativo acrescentado pelo(s) roteirista(s), em uma licença narrativa que não prejudica em nada o todo da história.
O ponto forte da série está a meu ver nos diálogos, muito bonitos, e na atuação de Jonatham Roumie, ator norte-americano de nascimento, de origem britânica e egípcia, que interpreta Jesus. Roumie tem a aparência física típica de um homem do Oriente Médio, e treinou bastante para falar com um sotaque de alguém daquela parte do mundo que não tem o inglês como língua materna. O Jesus interpretado por Roumie é sorridente, brincalhão, dependendo da situação ele pisca para seu interlocutor, e tudo isso de uma maneira muito natural, espontânea, sem afetação. Ele não tem a austeridade exagerada comum em filmes antigos de Jesus, que nunca jamais em hipótese alguma era apresentado sorrindo.
The Chosen inova na maneira de apresentar Jesus. Os produtores são corajosos o bastante para não se incomodar com críticas de, repita-se, pessoas que têm boa intenção, mas são ingênuas e superficiais na maneira como recepcionam o texto bíblico. A iniciativa de The Chosen é ousada, criativa, e muito bem-vinda, pois apresenta o homem Jesus, aquele que sempre será maior que nossas tentativas de compreendê-lo, como alguém que próximo a nós, um amigo, alguém em quem podemos confiar. Por essas e outras, vale muito a pena assistir The Chosen.
Notas:
1. Não é objetivo deste texto entrar no mérito da discussão quanto à identidade do autor do texto de 1 João. A tradição antiga atribui a autoria do quarto Evangelho, das três epístolas denominadas “de João” e do Apocalipse ao João que era do grupo dos Doze Apóstolos de Jesus (João “Evangelista”, que não deve ser confundido com seu xará, João “Batista”), mas a erudição contemporânea questiona essa atribuição. Para os propósitos do presente texto é mais importante considerar o que o texto afirma que saber quem o escreveu. Daí a opção por se referir ao “autor da primeira epístola de João”.
2. Há uma quantidade muito grande de filmes a respeito da vida de Jesus, mas é a primeira vez que se produz uma série a seu respeito. Quem quiser saber mais sobre filmes sobre Jesus deverá consultar Filmes de Cristo. Oito aproximações, de Luiz Vadico (São Paulo: A Lápis, 2009). Luiz Vadico é a maior autoridade no Brasil a respeito do tema do cinema religioso e do religioso no cinema em geral, e de filmes de Cristo em particular.
3. Quem quiser assistir as temporadas 2 e 3 poderá baixar o aplicativo da Angel Studios (nome extremamente sugestivo!) disponível na Play Store e na App Store.
4. O aspecto lacônico das narrativas bíblicas foi muito bem apresentado pelo crítico literário alemão Erich Auerbach no ensaio “A cicatriz de Ulisses”, que consta de seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo: Perspectiva, 7ª edição, 2021). Neste ensaio Auerbach compara dois modos antigos de contar histórias: o homérico e o bíblico. Uma das marcas da narrativa bíblica é justamente a economia na apresentação de detalhes.
O QUE ESPERAM OS CRISTÃOS? | REVISTA ULTIMATO
Saiba mais:
» Engolidos Pela Cultura Pop
» Cinema e Fé Cristã
» A redenção das sete artes: cinema
» The Chosen – a série sobre a vida de Jesus que já alcança milhões de pessoas
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A série conta a história de Jesus na perspectiva dos “escolhidos”, isto é, daqueles que “desde o princípio ouviram, viram, contemplaram, tocaram” a e em Jesus. Nesse artigo será comentada apenas a primeira temporada, disponível na plataforma de streaming Netflix3. Antes de prosseguir, uma explicação breve sobre a linguagem das narrativas, a bíblica e a fílmica. São duas linguagens diferentes. Muita gente quer que a adaptação fílmica de uma narrativa bíblica apresente apenas, unicamente e somente o que o texto bíblico apresenta. Acontece que as narrativas bíblicas são extremamente sucintas e lacônicas, o que faz com que seja literalmente impossível transpô-las “como estão” para cinema ou televisão4. Daí a necessidade incontornável de roteiristas imaginarem diálogos e situações que não constam dos textos bíblicos. Isso não é o fim do mundo, mas muita gente bem-intencionada, mas com uma visão ingênua e superficial não se dá conta disso de jeito nenhum, e se escandaliza ao ver um filme (ou, no caso de The Chosen, uma série) e reclama dizendo “ah, mas a Bíblia não fala isso”. Quem pensa assim não sabe que os evangelhos não são biografias de Jesus, no sentido contemporâneo da palavra. Os evangelistas não estavam preocupados em escrever história. Os relatos que produziram são teológicos. Quando lemos os evangelhos não vemos uma história cronológica, tal como entendemos atualmente a palavra “história”. Antes, encontramos uma teologia narrada, que não se preocupa em apresentar uma sequência ordenada dos eventos mencionados. É por essa razão que muitos tentaram escrever uma harmonia dos evangelhos, mas ninguém conseguiu, e nem vai conseguir. Não há como harmonizar cronologicamente os relatos dos evangelhos. O exemplo mais claro disso é o relato da assim chamada “purificação do templo”, que nos Sinóticos aparece imediatamente antes da prisão, julgamento e execução de Jesus na cruz (Mt 21.12-13; Mc 11.15-17; Lc 19.45-46) mas em João aparece no início do seu ministério (Jo 2.13-17). Evidentemente não se trata de contradição entre os Sinóticos e João: os evangelistas escreveram para audiências diferentes, tratando de problemas diferentes em contextos diferentes e com objetivos teológicos diferentes. Eles não tinham a menor preocupação em apresentar fatos em sequência cronológica. Essa preocupação é nossa, mas não era deles.
O que foi afirmado até o momento ajuda a entender a maneira como The Chosen conta a história de Jesus: a narrativa (não custa repetir: o presente texto foca apenas na primeira temporada da série) é apresentada na perspectiva dos “escolhidos” que dão título à série, no caso, Nicodemos, Mateus e Simão, aquele que mais tarde foi apelidado de Pedro, “a pedra”. Há alguns equívocos históricos. Um exemplo: uma cena em um dos primeiros episódios mostra Nicodemos e sua esposa sendo carregados por escravos em uma liteira. Os especialistas na história e no contexto socioeconômico e cultural da terra de Israel no tempo de Jesus são unânimes em afirmar que os fariseus, grupo do qual Nicodemos era parte, eram pessoas respeitadas (ou toleradas) pelo povo, mas não eram integrantes de uma elite econômica. Em outras palavras: os fariseus eram pessoas cultas, mas pobres. Mas deslizes como esses dos roteiristas da série são pequenos, não comprometem a qualidade da série. Alguns certamente estranharão também a inclusão de cenas que não existem nos evangelhos. Exemplo: Simão, endividado, se envolve em lutas por dinheiro em uma “rinha” ao ar livre, em uma tentativa de tentar saldar seus compromissos, e seu irmão André é seu “empresário”, por assim dizer. Claro, não há disso na Bíblia. Mas isso não compromete a qualidade da série. É um detalhe criativo acrescentado pelo(s) roteirista(s), em uma licença narrativa que não prejudica em nada o todo da história.
O ponto forte da série está a meu ver nos diálogos, muito bonitos, e na atuação de Jonatham Roumie, ator norte-americano de nascimento, de origem britânica e egípcia, que interpreta Jesus. Roumie tem a aparência física típica de um homem do Oriente Médio, e treinou bastante para falar com um sotaque de alguém daquela parte do mundo que não tem o inglês como língua materna. O Jesus interpretado por Roumie é sorridente, brincalhão, dependendo da situação ele pisca para seu interlocutor, e tudo isso de uma maneira muito natural, espontânea, sem afetação. Ele não tem a austeridade exagerada comum em filmes antigos de Jesus, que nunca jamais em hipótese alguma era apresentado sorrindo.
The Chosen inova na maneira de apresentar Jesus. Os produtores são corajosos o bastante para não se incomodar com críticas de, repita-se, pessoas que têm boa intenção, mas são ingênuas e superficiais na maneira como recepcionam o texto bíblico. A iniciativa de The Chosen é ousada, criativa, e muito bem-vinda, pois apresenta o homem Jesus, aquele que sempre será maior que nossas tentativas de compreendê-lo, como alguém que próximo a nós, um amigo, alguém em quem podemos confiar. Por essas e outras, vale muito a pena assistir The Chosen.
Notas:
1. Não é objetivo deste texto entrar no mérito da discussão quanto à identidade do autor do texto de 1 João. A tradição antiga atribui a autoria do quarto Evangelho, das três epístolas denominadas “de João” e do Apocalipse ao João que era do grupo dos Doze Apóstolos de Jesus (João “Evangelista”, que não deve ser confundido com seu xará, João “Batista”), mas a erudição contemporânea questiona essa atribuição. Para os propósitos do presente texto é mais importante considerar o que o texto afirma que saber quem o escreveu. Daí a opção por se referir ao “autor da primeira epístola de João”.
2. Há uma quantidade muito grande de filmes a respeito da vida de Jesus, mas é a primeira vez que se produz uma série a seu respeito. Quem quiser saber mais sobre filmes sobre Jesus deverá consultar Filmes de Cristo. Oito aproximações, de Luiz Vadico (São Paulo: A Lápis, 2009). Luiz Vadico é a maior autoridade no Brasil a respeito do tema do cinema religioso e do religioso no cinema em geral, e de filmes de Cristo em particular.
3. Quem quiser assistir as temporadas 2 e 3 poderá baixar o aplicativo da Angel Studios (nome extremamente sugestivo!) disponível na Play Store e na App Store.
4. O aspecto lacônico das narrativas bíblicas foi muito bem apresentado pelo crítico literário alemão Erich Auerbach no ensaio “A cicatriz de Ulisses”, que consta de seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo: Perspectiva, 7ª edição, 2021). Neste ensaio Auerbach compara dois modos antigos de contar histórias: o homérico e o bíblico. Uma das marcas da narrativa bíblica é justamente a economia na apresentação de detalhes.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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