Opinião
- 30 de janeiro de 2019
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O que é a nossa vida?
Por Luiz Fernando dos Santos
"Sim, lembre-se dele, antes que se rompa o cordão de prata, ou se quebre a taça de ouro; antes que o cântaro se despedace junto à fonte, a roda se quebre junto ao poço, o pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o deu." (Ecl 12.6-7)
"Sim, lembre-se dele, antes que se rompa o cordão de prata, ou se quebre a taça de ouro; antes que o cântaro se despedace junto à fonte, a roda se quebre junto ao poço, o pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o deu." (Ecl 12.6-7)
A antiquíssima regra beneditina exorta o monge a ter todos os dias, diante dos olhos, a morte como a surpreendê-lo. É um sábio conselho à vigilância e também um gracioso convite para que o monge viva cada “pedacinho” da vida confiado na graça de Deus e vivendo com intensidade e integridade as coisas mais essenciais.
Esse trechinho da regra dos monges tem profundas raízes bíblicas: “Mostra-me, Senhor, o fim da minha vida e o número dos meus dias, para que eu saiba quão frágil sou” (Sl 39.4); “Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa” (Tg 4.14); “Meus dias são como sombras crescentes; sou como a relva que vai murchando” (Sl 102.11) e ainda: “Lembra-te, ó Deus, de que a minha vida não passa de um sopro; meus olhos jamais tornarão a ver a felicidade” (Jó 7.7).
Também os puritanos dos séculos XVI e XVII cultivavam uma espiritualidade semelhante e homens como John Flavel; John Owen; Thomas Goodwin e Robert Macheynne, ensinavam, em suas pregações e tratados, os cristãos a considerarem com gravidade e solenidade o fim de seus dias e a hora da morte. Em nossa sociedade e cultura superficiais e inconsistentes, esses ensinamentos soam como inoportunos, mórbidos e doentios.
Claro, nosso tempo banalizou a morte e esvaziou o seu sentido do sagrado. Basta ver as séries de Tvs como CSI; Law & Order; Walking Dead, para ficar nesses exemplos, como a vida e o corpo humano são coisificados e a morte tratada com profundo secularismo, isto é, esvaziado de qualquer traço de transcendência ou relação com o sagrado.
Escrevo essa pastoral tendo em mente a horrível tragédia de Brumadinho-MG. Mais que uma tragédia, até onde se pode entender o caso, um crime brutal. Penso em todas as vítimas envolvidas e como deve ter sido aquele pedacinho da vida que antecedeu o infortúnio.
Penso no marido saindo de casa para o trabalho e deixando a esposa no portão, dela se despedindo com um beijo e prometendo chegar mais cedo do trabalho. Penso naquela mãe que deixou o filho adolescente dormindo, aproveitando o restinho das férias, saiu para o trabalho e deixou um bilhetinho com instruções para o dia até a sua chegada.
Penso nos amigos, saídos do refeitório, num papo animado sobre o clássico do futebol mineiro que se realizaria dali uns dias. Uma conversa animada, daquelas que devolvem a sanidade e renovam as forças para a continuação da faina.
Difícil não pensar nos hóspedes daquela pousada, um tempo de celebração da vida e pensar na última mensagem de WhatsApp que terminou com reticências e depois o ensurdecedor silêncio.
De repente aquele pedacinho da vida foi abruptamente interrompido e sei que parece absurdo o que escrevo, a morte chegou de improviso sobre todos. Seus planos futuros, grandes ou pequenos, importantes ou triviais, seus sonhos, realizáveis ou delirantes, tudo soterrado pelo pesado manto dos rejeitos minerais e lama.
Eventos assim devem provocar sempre nos cristãos profundas reflexões sobre a natureza da vida, seu propósito e como a temos administrado. Sim, a vida deve ser entendida em termos de uma administração da qual daremos contas um dia.
Em tragédias como essas – passados os dias do engajamento emergencial, engajamento em orações, solidariedade concreta em forma de doações, serviço voluntário e engajamento por justiça e transformação da realidade política para que essas coisas não mais ocorram por negligência e avareza – é preciso que façamos uma espécie de auditoria em nossa consciência em busca de desperdício e mau uso dos “pedaços” de vida que a soberania do Senhor nos entrega para viver.
Creia, a vida não nos vem por inteiro, mas em “pedacinhos” e o Senhor faz assim para que possamos saborear sem pressa, degustar com intensidade, ter prazer em distinguir os sabores de cada momento que podem ir do amaríssimo à doçura mais inefável. Esses pedaços de vida e da vida nos oferecem em cada instante a oportunidade de buscar o que é o essencial do porquê estarmos aqui, viver para a glória de Deus, desfrutar de suas bênçãos no recesso do lar e no aconchego daqueles que nos foram dados para amar, a família.
Viver dentro do pacto como povo de Deus na Igreja e desfrutar das conquistas de Cristo e participar da missão dele no mundo. Viver com intensidade o nosso chamado a santidade a partir de nossa vocação que se realiza em nossa profissão, para que quando a morte chegar, não tenhamos outra coisa a fazer, se não morrer para que a vida jamais se acabe.
• Rev. Luiz Fernando dos Santos é Ministro na Igreja Presbiteriana Central de Itapira, casado com Regina, pai da Talita. É Coordenador do Departamento de Teologia Pastoral do Seminário Presbiteriano do Sul em Campinas e professor. É professor de Teologia Histórica, Filosofia e Teologia no Seminário Teológico Servo de Cristo em São Paulo.
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Luiz Fernando dos Santos (1970-2022), foi ministro presbiteriano e era casado com Regina, pai da Talita e professor de teologia no Seminário Presbiteriano do Sul e no Seminário Teológico Servo de Cristo.
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