Opinião
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O profissional e o Estado - Pacto de Itaici, de 4 de março de 1979
Por Ageu Heringer Lisboa
Esta nota foi preparada a convite da comissão à frente do projeto Legado & Louvor.
O Pacto de Itaici, de 4 de março de 1979, é um precioso legado e fruto do encontro interprofissional de profissionais cristãos latino-americanos convocado pela Fraternidade Teológica Latino-americana e grupos da ABU (Aliança Bíblica Universitária) em Itaici, SP, em busca de uma compreensão bíblico-teológica sobre o trabalho humano.
O contexto histórico imediato que condicionou o encontro refletia profundas desigualdades socioeconômicas no continente, reflexo do acirrado conflito geopolítico da Guerra Fria, alimentado e contaminado por ideologias que ensanguentavam o mundo. Sobravam ditaduras de todo tipo e processos de descolonização. Mundo que vivia êxtases de otimismo com avanços científicos, conquistas espaciais e avanços tecno-eletrônicos, ao mesmo tempo que acumulou artefatos atômicos e convivia com o fantasma de ameaças de guerra nuclear.
Tem-se destaques para valores e sentidos da vida em sociedade, sentido cristão do trabalho, missão da igreja. Um excelente texto de referência para estudiosos da dinâmica social com suas engrenagens técnicas, produtivas, econômicas entrelaçadas. E muitas perguntas.
Quem são os beneficiários e quem são os perdedores da batalha econômica e dos processos e estruturas econômicas e financeiras? Como são tratados os recursos naturais finitos? Sendo os humanos dotados de poderosos recursos dispositivos culturais para intervir no ambiente, quais valores devem guiar nossa apropriação destes recursos?
O texto a seguir aborda de maneira sucinta o mandato cultural dado por Deus aos humanos no Jardim. Esta nota antropológica orienta a motivação, o valor, o sentido, a direção do trabalho humano de modo muito distinto da visão utilitarista, pagã ou neopagã, materialista, egoísta e não sustentável que tem predominado especialmente desde a era industrial.
O trabalho humano pode ser redimido e servir para a realização de valores dignificantes da nossa humanitude, em fraternidade, realizando o ideal bíblico de justiça e paz.
Valorizou-se sobretudo a dimensão relacional homem e mulher, em igual dignidade ontológica, bem como o estatuto das famílias e seu papel delicado e insubstituível na constituição de personalidades saudáveis. A família como lugar de resiliência cultural, psíquica e espiritual, como nos lembra a família de Abraão chamada para abençoar as demais famílias da terra!
Outro tópico abordado foi sobre o lugar dos profissionais – aqui refletindo mais as carreiras acadêmicas dos componentes do encontro. Como integrantes do Corpo de Cristo, chamados a contribuir para sua integridade, ensino, sustento, discipulado, ampliação de horizontes culturais. Dons e capacitação a serviço do Reino de Cristo. Servos dos servos do Senhor. E com testemunho de integridade, competência e criatividade na sociedade. Cristo como Senhor da ciência e do trabalho.
O documento conclui tratando da questão da convivência com o Estado. Faz uma incursão sobre a criação, o mundo com uma estrutura harmoniosa de poder, harmonia que foi quebrada na queda gerando as distorções e morte ao longo da história. Os ensinos proféticos, a presença e ensino de Jesus trazem de volta o sonho humano de uma Terra-sem-Males, com seu Reino distinto dos reinos e ideologias deste mundo. Não por força, nem por violência, mas pelo seu Espírito. Assim, há lugar para uma participação política consciente e saudável exercida por cristãos guiados por valores do Reino de Cristo.
O profissional e o Estado1
Nossa herança espiritual e cultural, nossa vinculação a movimentos com um sentido de vocação histórica fornece-nos uma plataforma geral para compartilhar com sentido crítico o panorama político da América Latina, e analisar as funções do Estado em relação aos problemas que afligem as nações que representamos. Vemos que a realidade sociopolítica latino-americana está caracterizada pela dependência econômica, científica, cultural e religiosa das potências estrangeiras, e que, neste contexto, o Estado se vê amiúde obrigado a colaborar com grupos de interesse alheios ao seu próprio país. A isto se agrega a tradicional corrupção administrativa que afligem nossos governos, muitos dos quais são, hoje, ditaduras militares, defensores dos diferentes interesses econômicos. Esta análise faz-nos tomar consciência da necessidade de, como profissionais cristãos, buscarmos critérios que nos ajudem a definir nossa posição política nos diferentes países que representamos.
Cremos que na própria Criação Deus deixou impressa uma ordem natural das coisas, dando a cada uma a função exercida pela vontade de Deus. Antes da queda do homem encontram-se na Criação os elementos constitutivos do Estado: território (o jardim do Éden), população (simbolizada por Adão e Eva), autoridade (exercida diretamente por Deus), decretos (o mandato cultural expresso pelo senhorio de Deus sobre o homem) e normas que definem os alcances e os limites da liberdade (referente às árvores do jardim – em geral ao bem e ao mal - em particular). Ainda que o Estado, como tal, não tenha razão de ser nesta situação de perfeita harmonia entre o homem e o Criador, entre o homem e seu próximo, entre o homem e a natureza, mesmo assim existe uma estrutura de autoridade inerente à Criação elaborada por Deus.
Cremos que, com a Queda, introduziu-se no mundo uma dissociação entre os propósitos de Deus e o uso do poder, dando lugar ao surgimento do Estado. Desde então, o pecado está presente nas estruturas de poder e consequentemente, os governantes usam sua autoridade não para castigar o mal e promover o bem, mas para favorecer o mal e reprimir o bem. No mundo moderno, o Estado torna-se em um deus a quem o povo serve sem crítica; em nome do sistema, quebra-se a lei moral de Deus e se fomenta a injustiça.
Afirmamos que embora a Bíblia não contenha um programa político para o Estado, oferece critérios para julgar sua atuação e definir os seus propósitos e obrigações. Desde uma perspectiva bíblica, o princípio fundamental para o exercício do poder é o temor a Deus, a base para a estrutura social é o amor e para a estrutura econômica, a justiça, na qual se exige a proteção dos menos privilegiados. O Estado é uma expressão da providência de Deus para toda a humanidade. Suas atribuições são limitadas: não deve ocupar o espaço correspondente a grupos menores ou afetar o indivíduo nos seus direitos humanos, nem usar a força para obter benefícios e privilégios para os governantes. Suas funções são: fazer leis justas e implementar o seu cumprimento; estabelecer formas de organização política, econômica e social que fomentem a justiça e a liberdade; estar propenso à solidariedade e fraternidade entre os que são governados; amparar os desprovidos e marginalizados.
O estudo da situação histórica em que Jesus viveu comprova que o Senhor repeliu várias opções políticas (as representadas pelos fariseus, saduceus e herodianos, zelotes e essênios) e adotou a sua própria política, baseada em um novo conceito de poder: “Se alguém quer ser o primeiro, será o último, e servo de todos” (Mc 9.35). Pensamos que nos compete, como profissionais cristãos na América Latina, pôr em prática a política de Jesus no exercício de nossa vocação no contexto da Igreja e da sociedade em que Deus nos tem colocado como testemunhas do seu reino. Afirmamos, também, que há lugar para uma participação na política internacional, por parte dos profissionais com vocação e com consciência dos limites da política.
Conclusão
Nosso encontro dá-nos uma nova condição do que Deus espera de nós nesta conjuntura histórica. Confessamos que, com grande frequência, desde o passado, temos nos deixado arrastar por nossas próprias ambições egoístas e fechado os olhos ante a necessidade do nosso próximo. Confessamos que temos deixado nos condicionar pela sociedade que nos cerca, porque temos aceito seus valores sem colocá-los sob o juízo da Palavra de Deus, e, com isso, tornamo-nos cúmplices da exploração irresponsável da natureza, simbolizada pelo problema ecológico. Confessamos que nem sempre temos dado prioridade ao Reino de Deus e a sua justiça, e, amiúde, temo-nos negado a levar a cruz. Hoje renovamos o nosso compromisso com Jesus Cristo, a quem reconhecemos como o Senhor do Universo e da nossa vida, e nos propomos a exercer nossa vocação para o bem do próximo e a glória de Deus, dependendo para isto do poder do Espírito Santo. “Glória a Deus na Igreja e em Cristo Jesus, por todos os séculos e para sempre! Amém.”
Nota
1. Este documento foi produzido pelo grupo da ABU (Aliança Bíblica Universitária), na cidade de Itaici, nos dias 24 de fevereiro a 4 de março de 1979.
Ageu Heringer Lisboa, psicólogo clínico de adultos e família; mestre em ciências da religião; membro fundador do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e da Associação Brasileira de Assessoramento e Pastoral da Família (EIRENE).
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