Opinião
- 15 de junho de 2010
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O presbiteriano que virou o protestantismo pelo avesso
Derval Dasilio
Para a América Latina, o Espírito de Deus escolheu Richard Shaull. A revolução teológica no protestantismo brasileiro se inicia. Em 1966, Shaull foi “removido” do Brasil pela Missão Central, ou Missão Presbiteriana no Brasil, ambas remanescentes da “Foreign Missions”, que o trouxe para a América do Sul em 1942, sob a influência do extraordinário John Mackay. Mas nossa história procura outro ambiente, se bem que esquecido. Meu primeiro contato com o ministério de Shaull aconteceu enquanto trabalhava numa siderúrgica recém-fundada em Ipatinga (MG). Um ex-seminarista de Campinas, IPB, antes do Golpe de 31 de março, falava-me de um pastor que fermentava a educação teológica presbiteriana na direção de uma “revolução cristã teológica” no Brasil. Era Richard Shaull.
Comendo tutu com torresmo e outras coisas gostosas, cometendo pecados imperdoáveis contra o calvinismo dogmático ao sabor da culinária mineira, fui ler “Alternativa ao Desespero”, que ainda encontro nas mãos de muitos jovens hoje. O que mais marcou minha memória de jovem batista prisioneiro do fundamentalismo evangélico foram as greves contra o capital estrangeiro na Usiminas antes do golpe militar de 1964. Vi colegas assassinados ou presos sob o pretexto de manutenção da segurança da siderúrgica – mas eram líderes operários militantes, tão somente. Vi trabalhadores fazendo piquete nos portões da fábrica, e os vi mortos a rajadas de metralhadora, às dezenas, sem uma chave de fenda para defenderem-se.
Lembro-me dos assassinatos de sindicalistas dentro das cercas de aço da siderúrgica. Eu era “apenas um garoto latino-americano” crente, alienado, perplexo diante de algo que não era explicado dentro da igreja. Diziam-me que fé e política nada tinham a ver com a igreja; que o problema da salvação resume-se na luta contra um mundo maligno sobrenatural extraterreno. A conversão abstrata, exigida em todos os dias, livrar-me-ia do inferno, do diabo e seus anjos. Os fatos, porém, revelavam-me outra coisa: o fogo das fornalhas na siderúrgica era insignificante diante do inferno e dos demônios da ditadura militar apoiada pela sociedade civil brasileira, a partir dos bem-postos e privilegiados. Minha experiência, numa palavra: perplexidade. O protestantismo estava a seu lado! Deu no Brasil Presbiteriano...
Foi assim que descobri Richard Shaull. Minha fé sobreviveu. Jesus Cristo fala aos oprimidos, disse-me o pastor. Abandonei meu emprego, fui para o seminário estudar teologia com presbiterianos. E o que descubro? A relevância da fé diante da política, economia e sociedade corrompidas. Compromisso cristão diante de profundas desigualdades existentes, no Brasil e América Latina. Tenho até hoje exemplares de livros teológicos desse tempo: “América Hoy”, “Ética en el Contexto Cristiano”, e depois “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, entre tantos que Shaull nos ensinou a ler. Não fui diretamente seu aluno, pois ele fora expulso do Brasil. Mas fui instruído por seus discípulos ou companheiros. Joaquim Beato, Claude Labrunie, Breno Shumann ensinaram-me a ler a Bíblia em contexto ético, político e social. Jovens pastores como Rubem Alves e Jacy Maraschin passaram por lá, ensinando. E Jaime Wright nos apoiando. Estudos Brasileiros, Antropologia Cultural, Teologia Ecumênica e Política, inovações no ensino teológico, eram ministrados por Waldo César, Jether Ramalho, Esdras Borges. Todos discípulos de Richard Shaull.
A juventude protestante brasileira foi tomada pela hermenêutica libertária: teologia da libertação. Mas aí já era o tempo de Medellín e Puebla, dentro do catolicismo. Shaull também não permitiu a invasão da aculturação teológica europeia. Interessava-lhe, sim, Karl Barth, estudioso dos dogmas eclesiásticos, e Bonhoeffer, o mártir da igreja cristã engajada sob o totalitarismo nazista. A “teologia dentro das grades” clamava por uma teologia da libertação.
Pois bem, Shaull voltou para a aula inaugural da Faculdade de Teologia que recebeu seu nome em 2002. Sua coragem profética nos contagiava com o último curso ministrado em vida, acompanhado pelo fiel editor e pesquisador de sua teologia, Waldo César. O protestantismo brasileiro diante do desafio pentecostal: o reino de Deus pelo oprimido, a massa do cristianismo pobre, latino-americano. O protestantismo histórico ainda busca as elites, desde que chegou. Ignora o pobre.
Richard Shaull, na grande caminhada teológica, deixou-me algumas frases maravilhosas no último e-mail que trocamos antes de falecer (outubro de 2002). Uso a frase do neto de Hemingway: “Ele ainda toca as pessoas de um modo que a maioria dos escritores apenas sonham fazer”. O que a teologia deve a esse gigante espiritual ainda está por ser dito. Ele ensinou a perguntar: “Onde te vimos, Jesus?” (Mt 25) e a tentar ouvir o Evangelho.
• Derval Dasilio é pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil. www.derv.wordpress.com
Siga-nos no Twitter!
Para a América Latina, o Espírito de Deus escolheu Richard Shaull. A revolução teológica no protestantismo brasileiro se inicia. Em 1966, Shaull foi “removido” do Brasil pela Missão Central, ou Missão Presbiteriana no Brasil, ambas remanescentes da “Foreign Missions”, que o trouxe para a América do Sul em 1942, sob a influência do extraordinário John Mackay. Mas nossa história procura outro ambiente, se bem que esquecido. Meu primeiro contato com o ministério de Shaull aconteceu enquanto trabalhava numa siderúrgica recém-fundada em Ipatinga (MG). Um ex-seminarista de Campinas, IPB, antes do Golpe de 31 de março, falava-me de um pastor que fermentava a educação teológica presbiteriana na direção de uma “revolução cristã teológica” no Brasil. Era Richard Shaull.
Comendo tutu com torresmo e outras coisas gostosas, cometendo pecados imperdoáveis contra o calvinismo dogmático ao sabor da culinária mineira, fui ler “Alternativa ao Desespero”, que ainda encontro nas mãos de muitos jovens hoje. O que mais marcou minha memória de jovem batista prisioneiro do fundamentalismo evangélico foram as greves contra o capital estrangeiro na Usiminas antes do golpe militar de 1964. Vi colegas assassinados ou presos sob o pretexto de manutenção da segurança da siderúrgica – mas eram líderes operários militantes, tão somente. Vi trabalhadores fazendo piquete nos portões da fábrica, e os vi mortos a rajadas de metralhadora, às dezenas, sem uma chave de fenda para defenderem-se.
Lembro-me dos assassinatos de sindicalistas dentro das cercas de aço da siderúrgica. Eu era “apenas um garoto latino-americano” crente, alienado, perplexo diante de algo que não era explicado dentro da igreja. Diziam-me que fé e política nada tinham a ver com a igreja; que o problema da salvação resume-se na luta contra um mundo maligno sobrenatural extraterreno. A conversão abstrata, exigida em todos os dias, livrar-me-ia do inferno, do diabo e seus anjos. Os fatos, porém, revelavam-me outra coisa: o fogo das fornalhas na siderúrgica era insignificante diante do inferno e dos demônios da ditadura militar apoiada pela sociedade civil brasileira, a partir dos bem-postos e privilegiados. Minha experiência, numa palavra: perplexidade. O protestantismo estava a seu lado! Deu no Brasil Presbiteriano...
Foi assim que descobri Richard Shaull. Minha fé sobreviveu. Jesus Cristo fala aos oprimidos, disse-me o pastor. Abandonei meu emprego, fui para o seminário estudar teologia com presbiterianos. E o que descubro? A relevância da fé diante da política, economia e sociedade corrompidas. Compromisso cristão diante de profundas desigualdades existentes, no Brasil e América Latina. Tenho até hoje exemplares de livros teológicos desse tempo: “América Hoy”, “Ética en el Contexto Cristiano”, e depois “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, entre tantos que Shaull nos ensinou a ler. Não fui diretamente seu aluno, pois ele fora expulso do Brasil. Mas fui instruído por seus discípulos ou companheiros. Joaquim Beato, Claude Labrunie, Breno Shumann ensinaram-me a ler a Bíblia em contexto ético, político e social. Jovens pastores como Rubem Alves e Jacy Maraschin passaram por lá, ensinando. E Jaime Wright nos apoiando. Estudos Brasileiros, Antropologia Cultural, Teologia Ecumênica e Política, inovações no ensino teológico, eram ministrados por Waldo César, Jether Ramalho, Esdras Borges. Todos discípulos de Richard Shaull.
A juventude protestante brasileira foi tomada pela hermenêutica libertária: teologia da libertação. Mas aí já era o tempo de Medellín e Puebla, dentro do catolicismo. Shaull também não permitiu a invasão da aculturação teológica europeia. Interessava-lhe, sim, Karl Barth, estudioso dos dogmas eclesiásticos, e Bonhoeffer, o mártir da igreja cristã engajada sob o totalitarismo nazista. A “teologia dentro das grades” clamava por uma teologia da libertação.
Pois bem, Shaull voltou para a aula inaugural da Faculdade de Teologia que recebeu seu nome em 2002. Sua coragem profética nos contagiava com o último curso ministrado em vida, acompanhado pelo fiel editor e pesquisador de sua teologia, Waldo César. O protestantismo brasileiro diante do desafio pentecostal: o reino de Deus pelo oprimido, a massa do cristianismo pobre, latino-americano. O protestantismo histórico ainda busca as elites, desde que chegou. Ignora o pobre.
Richard Shaull, na grande caminhada teológica, deixou-me algumas frases maravilhosas no último e-mail que trocamos antes de falecer (outubro de 2002). Uso a frase do neto de Hemingway: “Ele ainda toca as pessoas de um modo que a maioria dos escritores apenas sonham fazer”. O que a teologia deve a esse gigante espiritual ainda está por ser dito. Ele ensinou a perguntar: “Onde te vimos, Jesus?” (Mt 25) e a tentar ouvir o Evangelho.
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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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