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Opinião

O Perfuraneve/O Expresso do Amanhã: a HQ, o filme e a série

Por Carlos Caldas

Le Transperceneige – “O Perfuraneve” no Brasil – é uma HQ francesa para adultos, criada por Jacques Lob (1932-1990, roteiro) e Jean-Marc Rochette (arte). As histórias foram publicadas a partir de 1984 na revista franco-belga À Suivre. Após o falecimento de Lob em 1990, as histórias tiveram continuação, com roteiro de Benjamin Legrand. Em 2015, foi publicada no Brasil pela Editora Aleph, que tem na ficção científica o carro chefe de sua linha editorial. A edição brasileira traz em volume único três histórias: O Perfuraneve (Le Transperceneige, no original de 1982 de Lob e Rochette), O Explorador (L’Arpenteur, no original de 1999) e A Travessia (La Traversée, no original de 2000), as duas últimas de Legrand e Rochette). É uma típica ficção científica futurista distópica[1], que tem como mote uma questão cujas seriedade e importância dificilmente poderão ser exageradas: o aquecimento global.

Ninguém sabe ao certo o que poderá ou não acontecer se a média de temperatura do planeta continuar a subir. O que se tem são cálculos e estimativas, e mesmo os especialistas em questões climatológicas reconhecem que o estágio atual de conhecimento a respeito deste tema tão complexo é ainda muito precário. Todavia, todos concordam que se a atual situação não mudar, as consequências, quaisquer que sejam, não serão boas para ninguém. Muitos escritores de ficção, que não têm obrigação nenhuma de precisão “científica”, há tempos têm alertado quanto a tais riscos. Um exemplo neste sentido é Waterworld – O segredo das águas, de 1995, que imagina como seria – será? – uma Terra sem as calotas polares.

A sequência de histórias em quadrinhos d’O Perfuraneve vai tratar exatamente deste tema: em um futuro, aparentemente não muito distante, o aquecimento global elevou as temperaturas do planeta a níveis insuportáveis, e um grupo de cientistas inventa um sistema para resfriar o mundo. Só que a experiência dá errado, e a Terra entra em outra era do gelo, com temperaturas mais baixas que 70 graus Celsius. Diante dessa situação dantesca, um industrial com QI acima da média inventa uma locomotiva com moto perpétuo, isto é, um sistema que consome energia para movimentar a máquina, mas que nunca para. A locomotiva é dividida em três grupos: primeira classe, onde evidentemente estão os afortunados e endinheirados, que viajam em vagões de alto luxo e nível superior a cinco estrelas; segunda classe; e o fundo, onde estão pessoas pobres que forçaram sua entrada no trem, e foram acomodadas em condições subumanas, sem higiene, sem cuidados de qualquer espécie. A saga do Perfuraneve na HQ começa com uma descrição melancolicamente bela:
 
Percorrendo a branca imensidão
de um eterno e congelante inverno de solidão,
corre, de uma ponta à outra da Terra,
um trem cujo movimento nunca se encerra.
É o Expresso Perfuraneve com seus mil e um vagões.
    
A obra foi adaptada para o cinema em 2015 com o título Snowpiercer – O Expresso do Amanhã no Brasil, dirigida pelo sul-coreano Bong Joon-ho, o mesmo que dirigiu O Parasita, ganhador do cobiçadíssimo Oscar na categoria “Melhor Filme” em 2020. O elenco do filme de Bong Joon-ho conta com figuras famosas como John Hurt, Ed Harris, Octavia Spencer, Tilda Swinton e Chris Evans, o Capitão América do UCM (Universo Cinematográfico Marvel).
 
Por fim, em 2020 a obra recebeu uma adaptação da adaptação, na forma de uma série do canal de streaming Netflix com o mesmo título do filme, com (por enquanto) duas temporadas. As figuras mais conhecidas do elenco da série televisiva são a bela Jennifer Connely e Sean Bean.
 
Como são três trabalhos diferentes, para mídias diferentes (HQ, cinema e televisão), cada qual com suas particularidades, não se apresentará nesta breve reflexão uma análise de cada um deles. Não apenas os formatos são diferentes, mas também os enredos em si. Mas os três compartilham do mesmo mote, para o qual será dirigida a atenção do presente texto.
 
A ideia central é que em um futuro talvez não muito distante, o aquecimento global atingiu níveis insuportáveis. Aconteceu uma guerra nuclear que devastou quase toda a população mundial. Nesse contexto caótico, um grupo de cientistas tentou um experimento para resfriar o planeta, só que a experiência deu errado, e o clima do planeta foi de um extremo para o outro, fazendo com que a Terra entrasse em outra era do gelo. Um grupo de pessoas conseguiu embarcar no Perfuraneve, um trem de 1001 vagões movido por um engenho de moto contínuo que circula o mundo sem parar. Quem não conseguiu embarcar, pereceu miseravelmente. O trem é dividido em três grupos: a primeira classe, que transporta uma minoria milionária, que vive em uma eterna colônia de férias em um hotel muito superior a cinco estrelas; a segunda classe, intermediária em todos os sentidos; e o “fundo”, onde comprimem-se centenas de pessoas em condições subumanas, sem qualquer conforto, privacidade ou higiene. A administração do trem trata os “fundistas”, como são chamados, da maneira mais violenta e desrespeitosa possível, não considerando-os como pessoas com direitos. Afinal, eles não têm dinheiro para pagar o luxo excessivo da primeira classe. Como seria de se esperar, surge uma revolução entre os oprimidos do fundo, que terá consequências de grande monta para todos no trem.
 
A obra levanta muitas questões importantes, que precisam ser consideradas com toda atenção por todos que têm sensibilidade ao que está a acontecer na grande casa comum que é o nosso mundo. Uma destas questões é o problema grave do aquecimento global, mencionado en passant na introdução do presente texto. Negacionistas dizem que isso é "coisa de comunista”, e que não há com o que se preocupar, pois o avanço constante da tecnologia dará conta de resolver qualquer problema. Desnecessário dizer que quem diz isso não sabe o que é comunismo e não tem a menor noção dos riscos reais ao meio ambiente que enfrentamos há décadas. A literatura de ficção científica da obra de Lob e Rochette, que inspirou as adaptações para o cinema e a TV, é um alerta que não pode ser ignorado. Nesse sentido, é terrivelmente lamentável que muitos cristãos, que dizem acreditar que o mundo existe por ter sido criado por Deus, enfatizam apenas uma ética pessoal, e ignoram por completo uma ética ambiental, como se não fosse necessária.
 
Outro alerta sério da obra de Lob e Rochette é quanto à questão social, expressa na desigualdade brutal entre os ricos e os despossuídos: os pobres, que forçaram sua entrada no Perfuraneve, são tratados como menos que humanos, brutalizados constantemente pela força policial do trem. Quando a tensão atinge níveis insuportáveis, a revolução explode, com um banho de sangue que faz com que a já diminuta população do mundo diminua ainda mais.
 
Estes mesmos alertas dados na forma de uma literatura de ficção científica foram dados em forma de exposição teológica direta por Jΰrgen Moltmann, o maior teólogo reformado da atualidade, em seu livro A vinda de Deus[2]. Neste livro, Moltmann fala de três “apocalipses contemporâneos”: o nuclear, o ambiental e o socioeconômico. São três ameaças que, qual a espada de Dâmocles da lenda grega, pairam por sobre o nosso mundo, suspensas de maneira frágil. A tendência de muitos cristãos evangélicos é de não se preocupar com nada disso, pois toda sua atenção está voltada única e exclusivamente para questões de natureza moral e individual. Uma postura assim, consciente ou inconscientemente, “joga nas costas” de Deus toda responsabilidade para com o planeta, dizendo que se Deus é soberano, não precisamos nos preocupar com o mundo. Afinal de contas, Cristo voltará, e tudo se resolverá. E quanto aos pobres e despossuídos, bem, Jesus mesmo disse que “os pobres sempre os tereis convosco”. Logo, a desigualdade socioeconômica foi prevista por Cristo, então, também não há motivo para se preocupar com isso.
 
Não é preciso muito esforço para perceber que este tipo de raciocínio exposto no parágrafo anterior é a expressão máxima da ingenuidade, resultado de uma leitura da Bíblia que é desatenta e superficial, que resultará em uma praxis que é qualquer coisa, menos cristã. Os cristãos precisam levar a sério o todo do ensino bíblico, e não apenas algumas partes.
 
Em uma de suas parábolas mais difíceis, Jesus disse que os “filhos deste mundo” são mais sábios que os “filhos da luz” (Lc 16.8). Uma peça literária como o Perfuraneve, escrita sem qualquer preocupação religiosa explícita, com suas denúncias e críticas sérias, comprova que o Mestre tem razão. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. quem tem olhos para ver, veja. Quem tem entendimento para entender, entenda.

Notas
1. Os conceitos de distopia e utopia na crítica literária da ficção científica referem-se a uma visão de como se espera ou se imagina que será o futuro, sempre tendo o presente como critério de comparação: a utopia imagina um futuro melhor que o presente, e a distopia, um pior. A maioria esmagadora das obras de ficção científica futurista é distópica.
2. MOLTMANN, Jΰrgen. A vinda de Deus. Escatologia cristã. Coleção Theologia Publica 3. São Leopoldo: UNISINOS, 2002.

>> Conheça os livros Cinema e Fé Cristã (Brian Godawa) e Engolidos Pela Cultura Pop (Steve Turner), publicados pela Editora Ultimato
 
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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