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- 22 de julho de 2013
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O papa argentino e os evangélicos brasileiros
A eleição de um papa latino-americano atiçou a curiosidade de jornalistas do mundo inteiro, dos quais alguns poucos vieram bater à minha porta (pelo menos, por telefone ou virtualmente). Queriam saber se eu achava que a escolha de um papa latino-americano mudaria substancialmente os destinos da Igreja Católica e das igrejas evangélicas na região. Reproduzo logo abaixo minha resposta a essa indagação. Porém houve um jornalista que até perguntava, com seriedade, se a ideia de um papa argentino desagradaria os brasileiros a tal ponto de acelerar ainda mais a saída de católicos brasileiros para o protestantismo! Pelo menos devemos dar crédito a esse jornalista estrangeiro por saber da rivalidade entre os dois povos sul-americanos; mas, claro, expliquei-lhe que, apesar da avalanche de piadas (algumas muito boas) que resultaram da escolha cardinalícia, as identidades religiosas brasileiras não costumam ser decididas sobre bases tão frágeis.
Não demorou para que as primeiras pesquisas de opinião pública revelassem a posição nuançada da população brasileira. Segundo o Datafolha,1 a aprovação geral da identidade do novo ocupante do Vaticano veio misturada com insatisfações generalizadas a respeito de certas posições oficiais da Igreja. Enquanto 74% dos brasileiros consideravam ótima ou boa a eleição do cardeal Bergoglio, 83% gostariam que a Igreja aprovasse o uso de preservativos e 77%, a pílula anticoncepcional. A maioria também queria a ordenação de mulheres (58%) e o fim do celibato obrigatório para padres (56%).
Ainda estamos (escrevo na primeira quinzena de abril) na fase de “lua de mel” do papa Francisco. Tudo que ele faz atrai a atenção da mídia internacional, e o simbolismo de suas primeiras ações lhe têm granjeado muita simpatia. Ajuda nisso, claro, o fato de ser o primeiro papa não europeu desde o oitavo século e o primeiro do “sul global”. Mesmo assim, o fato de ser argentino filho de italianos e de falar fluentemente o italiano significa que ele representa uma maneira cautelosa de o Vaticano “sair da Europa”.
Todo o processo de renúncia de Bento XVI, convocação do conclave, eleição do novo papa e acompanhamento de seus primeiros atos colocou em evidência as imensas vantagens de que o catolicismo dispõe. Quanta exposição midiática gratuita, a maior parte favorável, a Igreja ganhou! Quantas dimensões positivas na sua hierarquia global centralizada, continuidade histórica e cerimônias antiquíssimas! (E quanta idiotice nos comentários de algumas pessoas que diziam que o Vaticano deveria revelar a conclusão da eleição pelo Twitter em vez de continuar a fazê-lo pela fumaça branca! É a própria antiguidade e idiossincrasia da fumaça que encerra o seu fascínio. Daqui a poucos anos, o Twitter estará esquecido e superado por outra tecnologia... mas a fumaça das eleições papais atravessará muitos séculos ainda.)
As últimas semanas, então, deixaram mais em evidência as vantagens da Igreja Católica em termos de tradição, visibilidade e simbolismo. A escolha do nome papal, o relato de algumas características do seu ministério episcopal em Buenos Aires e a ênfase na simplicidade representada pelos seus primeiros gestos pontifícios criaram uma primeira impressão bastante positiva, tanto dentro como fora do mundo católico. Claro que podemos perguntar até onde irá, de fato, essa simplicidade; de qualquer forma, se mais líderes evangélicos brasileiros demonstrassem semelhante simplicidade de vida, fariam milagres para a imagem pública evangélica tão deteriorada.
Quando a poeira se assentar, no entanto, as desvantagens católicas voltarão à tona. É relativamente fácil fazer gestos simbólicos iniciais e mudanças no estilo papal. Contudo, é muito mais difícil levar a cabo reformas reais, tanto na dimensão administrativa como nas dimensões doutrinária e pastoral ao redor do mundo. Nesse sentido, cabe a indagação se um “Francisco” (nos moldes daquele de Assis) pode continuar por muito tempo como papa.
Os escândalos que têm afligido a Igreja Católica cobrem as três dimensões clássicas: dinheiro, sexo e poder. Porém a corrupção financeira e as lutas internas repercutem menos do que os abusos sexuais. Estes representam uma tragédia, primeiramente para as vítimas, mas também para a igreja, que priorizou por muitos anos a preservação institucional em vez da justiça do reino de Deus e agora terá de pagar o preço, não só em dinheiro como pelo desprezo de muitas pessoas. Mas representam também uma tragédia para o mundo, uma vez que enfraquecem o trabalho em defesa dos direitos humanos, que caracteriza boa parte da igreja desde o Concílio Vaticano II. É difícil imaginar que mudanças dramáticas aconteçam em consequência dos abusos, a não ser que a crise chegue a comprometer um número expressivo de membros da hierarquia. Novamente, é forçoso reconhecer que a imagem pública dos evangélicos brasileiros também está muito ligada a escândalos nas mesmas dimensões, sobretudo dinheiro e poder.
Outro problema que Francisco poderá enfrentar, infelizmente, é o fantasma do passado. Nos estudos acadêmicos sobre o catolicismo latino-americano, as igrejas brasileira e argentina são sempre usadas como exemplos contrastantes. Enquanto a igreja brasileira (pelo menos, depois de 1968) se opôs à ditadura e aos abusos dos direitos humanos, a igreja argentina não denunciou a “guerra suja” e manteve uma forte identificação com o regime militar, a ponto de o então arcebispo de Buenos Aires afirmar que todos os “desaparecidos” não haviam sido torturados e assassinados, mas estavam vivendo muito bem no exílio em Paris. Nesse contexto, Jorge Bergoglio era então chefe dos jesuítas no país. Algumas pessoas o acusam de ter colaborado com o sequestro de dois padres jesuítas pelas forças da repressão em 1976. Os fatos são contestados, e não está claro se o fantasma desse período vai anuviar todo o pontificado de Francisco ou não. De qualquer forma, novamente os evangélicos terão de ser humildes, já que atualmente está em curso na Guatemala o julgamento do primeiro presidente evangélico de país latino-americano, o ex-general Efraín Ríos Montt, por crimes contra a humanidade perpetrados durante a sua presidência nos anos 80. Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra!
Para terminar, volto à pergunta dos jornalistas: a eleição de um papa latino-americano vai mudar a trajetória da Igreja Católica, a ponto de conseguir diminuir o crescimento das igrejas evangélicas na região?
O catolicismo na América Latina vive um momento paradoxal em pelo menos dois sentidos. Primeiro, ao mesmo tempo em que tem aumentado a sua importância no conjunto global do catolicismo (já 42% de todos os católicos do mundo são latino-americanos), vem perdendo terreno dentro da própria região (a porcentagem de católicos tem diminuído em todos os países latino-americanos devido ao crescimento evangélico e também ao crescimento dos “sem-religião”). E, em segundo lugar, esse novo centro do catolicismo mundial sofre uma falta crônica de clero em todos os níveis; tanto que, no conclave que votou pelo novo papa, a América Latina foi a região mais sub-representada. Deveria ter pelo menos o dobro do número de cardeais que tem.
A eleição de Francisco dará um impulso momentâneo à Igreja Católica na América Latina. É bem provável que, quando o novo papa vier ao Brasil em julho para a Jornada Mundial da Juventude, haja mais gente e mais atenção midiática. Mas é improvável que faça muita diferença a longo prazo, porque o destino do catolicismo na região depende muito mais do que a Igreja fizer nas bases da sociedade. Não é no âmbito do Vaticano que essas coisas são decididas, mas sim no dia a dia das igrejas nacionais e locais. E, aí, o problema principal é que a Igreja parece não saber o que fazer para enfrentar esse novo momento na história religiosa latino-americana, seja por ignorância da realidade e pela prepotência de uma antiga religião monopolista – como no caso dos hierarcas católicos que ainda resmungam a respeito das “seitas” –, seja pelas desvantagens – como o clericalismo e imobilismo territorial – que dificultam a reação por parte daqueles que percebem mais claramente as exigências da nova situação.
Há estudiosos que dizem que a eleição de um papa latino-americano vai “atiçar” ainda mais a “sanha proselitista” dos evangélicos. Bobagem. Há um bom tempo que a imitação vai mais no sentido contrário, ou seja, as iniciativas evangélicas não são mais reações, mas ações tomadas por impulso próprio. Se Francisco conseguir inverter novamente essa relação, terá conseguido um feito notável. Mas é provável que acabe seguindo o exemplo de Bento XVI, que dizia preferir que houvesse poucos católicos, mas bons. Aliás, “poucos, mas bons” não seria uma má ideia para os evangélicos também...
Nota
1. Artigo publicado originalmente na edição 342 da revista Ultimato.
2. www1.folha.uol.com.br/mundo/1251514-brasileiro-aprova-papa-mas-quer-franscisco-mais-liberal-diz-datafolha.shtml
Não demorou para que as primeiras pesquisas de opinião pública revelassem a posição nuançada da população brasileira. Segundo o Datafolha,1 a aprovação geral da identidade do novo ocupante do Vaticano veio misturada com insatisfações generalizadas a respeito de certas posições oficiais da Igreja. Enquanto 74% dos brasileiros consideravam ótima ou boa a eleição do cardeal Bergoglio, 83% gostariam que a Igreja aprovasse o uso de preservativos e 77%, a pílula anticoncepcional. A maioria também queria a ordenação de mulheres (58%) e o fim do celibato obrigatório para padres (56%).
Ainda estamos (escrevo na primeira quinzena de abril) na fase de “lua de mel” do papa Francisco. Tudo que ele faz atrai a atenção da mídia internacional, e o simbolismo de suas primeiras ações lhe têm granjeado muita simpatia. Ajuda nisso, claro, o fato de ser o primeiro papa não europeu desde o oitavo século e o primeiro do “sul global”. Mesmo assim, o fato de ser argentino filho de italianos e de falar fluentemente o italiano significa que ele representa uma maneira cautelosa de o Vaticano “sair da Europa”.
Todo o processo de renúncia de Bento XVI, convocação do conclave, eleição do novo papa e acompanhamento de seus primeiros atos colocou em evidência as imensas vantagens de que o catolicismo dispõe. Quanta exposição midiática gratuita, a maior parte favorável, a Igreja ganhou! Quantas dimensões positivas na sua hierarquia global centralizada, continuidade histórica e cerimônias antiquíssimas! (E quanta idiotice nos comentários de algumas pessoas que diziam que o Vaticano deveria revelar a conclusão da eleição pelo Twitter em vez de continuar a fazê-lo pela fumaça branca! É a própria antiguidade e idiossincrasia da fumaça que encerra o seu fascínio. Daqui a poucos anos, o Twitter estará esquecido e superado por outra tecnologia... mas a fumaça das eleições papais atravessará muitos séculos ainda.)
As últimas semanas, então, deixaram mais em evidência as vantagens da Igreja Católica em termos de tradição, visibilidade e simbolismo. A escolha do nome papal, o relato de algumas características do seu ministério episcopal em Buenos Aires e a ênfase na simplicidade representada pelos seus primeiros gestos pontifícios criaram uma primeira impressão bastante positiva, tanto dentro como fora do mundo católico. Claro que podemos perguntar até onde irá, de fato, essa simplicidade; de qualquer forma, se mais líderes evangélicos brasileiros demonstrassem semelhante simplicidade de vida, fariam milagres para a imagem pública evangélica tão deteriorada.
Quando a poeira se assentar, no entanto, as desvantagens católicas voltarão à tona. É relativamente fácil fazer gestos simbólicos iniciais e mudanças no estilo papal. Contudo, é muito mais difícil levar a cabo reformas reais, tanto na dimensão administrativa como nas dimensões doutrinária e pastoral ao redor do mundo. Nesse sentido, cabe a indagação se um “Francisco” (nos moldes daquele de Assis) pode continuar por muito tempo como papa.
Os escândalos que têm afligido a Igreja Católica cobrem as três dimensões clássicas: dinheiro, sexo e poder. Porém a corrupção financeira e as lutas internas repercutem menos do que os abusos sexuais. Estes representam uma tragédia, primeiramente para as vítimas, mas também para a igreja, que priorizou por muitos anos a preservação institucional em vez da justiça do reino de Deus e agora terá de pagar o preço, não só em dinheiro como pelo desprezo de muitas pessoas. Mas representam também uma tragédia para o mundo, uma vez que enfraquecem o trabalho em defesa dos direitos humanos, que caracteriza boa parte da igreja desde o Concílio Vaticano II. É difícil imaginar que mudanças dramáticas aconteçam em consequência dos abusos, a não ser que a crise chegue a comprometer um número expressivo de membros da hierarquia. Novamente, é forçoso reconhecer que a imagem pública dos evangélicos brasileiros também está muito ligada a escândalos nas mesmas dimensões, sobretudo dinheiro e poder.
Outro problema que Francisco poderá enfrentar, infelizmente, é o fantasma do passado. Nos estudos acadêmicos sobre o catolicismo latino-americano, as igrejas brasileira e argentina são sempre usadas como exemplos contrastantes. Enquanto a igreja brasileira (pelo menos, depois de 1968) se opôs à ditadura e aos abusos dos direitos humanos, a igreja argentina não denunciou a “guerra suja” e manteve uma forte identificação com o regime militar, a ponto de o então arcebispo de Buenos Aires afirmar que todos os “desaparecidos” não haviam sido torturados e assassinados, mas estavam vivendo muito bem no exílio em Paris. Nesse contexto, Jorge Bergoglio era então chefe dos jesuítas no país. Algumas pessoas o acusam de ter colaborado com o sequestro de dois padres jesuítas pelas forças da repressão em 1976. Os fatos são contestados, e não está claro se o fantasma desse período vai anuviar todo o pontificado de Francisco ou não. De qualquer forma, novamente os evangélicos terão de ser humildes, já que atualmente está em curso na Guatemala o julgamento do primeiro presidente evangélico de país latino-americano, o ex-general Efraín Ríos Montt, por crimes contra a humanidade perpetrados durante a sua presidência nos anos 80. Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra!
Para terminar, volto à pergunta dos jornalistas: a eleição de um papa latino-americano vai mudar a trajetória da Igreja Católica, a ponto de conseguir diminuir o crescimento das igrejas evangélicas na região?
O catolicismo na América Latina vive um momento paradoxal em pelo menos dois sentidos. Primeiro, ao mesmo tempo em que tem aumentado a sua importância no conjunto global do catolicismo (já 42% de todos os católicos do mundo são latino-americanos), vem perdendo terreno dentro da própria região (a porcentagem de católicos tem diminuído em todos os países latino-americanos devido ao crescimento evangélico e também ao crescimento dos “sem-religião”). E, em segundo lugar, esse novo centro do catolicismo mundial sofre uma falta crônica de clero em todos os níveis; tanto que, no conclave que votou pelo novo papa, a América Latina foi a região mais sub-representada. Deveria ter pelo menos o dobro do número de cardeais que tem.
A eleição de Francisco dará um impulso momentâneo à Igreja Católica na América Latina. É bem provável que, quando o novo papa vier ao Brasil em julho para a Jornada Mundial da Juventude, haja mais gente e mais atenção midiática. Mas é improvável que faça muita diferença a longo prazo, porque o destino do catolicismo na região depende muito mais do que a Igreja fizer nas bases da sociedade. Não é no âmbito do Vaticano que essas coisas são decididas, mas sim no dia a dia das igrejas nacionais e locais. E, aí, o problema principal é que a Igreja parece não saber o que fazer para enfrentar esse novo momento na história religiosa latino-americana, seja por ignorância da realidade e pela prepotência de uma antiga religião monopolista – como no caso dos hierarcas católicos que ainda resmungam a respeito das “seitas” –, seja pelas desvantagens – como o clericalismo e imobilismo territorial – que dificultam a reação por parte daqueles que percebem mais claramente as exigências da nova situação.
Há estudiosos que dizem que a eleição de um papa latino-americano vai “atiçar” ainda mais a “sanha proselitista” dos evangélicos. Bobagem. Há um bom tempo que a imitação vai mais no sentido contrário, ou seja, as iniciativas evangélicas não são mais reações, mas ações tomadas por impulso próprio. Se Francisco conseguir inverter novamente essa relação, terá conseguido um feito notável. Mas é provável que acabe seguindo o exemplo de Bento XVI, que dizia preferir que houvesse poucos católicos, mas bons. Aliás, “poucos, mas bons” não seria uma má ideia para os evangélicos também...
Nota
1. Artigo publicado originalmente na edição 342 da revista Ultimato.
2. www1.folha.uol.com.br/mundo/1251514-brasileiro-aprova-papa-mas-quer-franscisco-mais-liberal-diz-datafolha.shtml
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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