Opinião
- 10 de dezembro de 2024
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O Natal em um lugar incerto
Jesus não nasceu isolado da hospitalidade, mas, pelo contrário, ele foi acolhido em uma família
Por Lidice Meyer
Quando paramos para pensar na vida de Maria, algo que não se pode dizer é que foi monótona! Desde o anúncio de sua gravidez por um anjo, à desconfiança de seu noivo José e de, provavelmente, seus familiares, a viagem para a casa de Isabel para esconder-se dos olhares curiosos, o retorno para Nazaré e o casamento com José. Tudo havia acontecido em apenas poucos meses. Agora, com sua gravidez em estado avançado, Maria recebe mais uma novidade: uma viagem às pressas.
Nazaré, a cidade natal de Maria, e todo o seu entorno estava sob o domínio do imperador romano César Augusto. O evangelista Lucas relata que houve uma convocação para recenseamento durante a gravidez de Maria. E José, sendo descendente de Davi precisaria ir com sua família até a cidade de Belém para se cadastrar. Embora a tradição e o senso comum coloquem esta viagem nos últimos dias da gravidez de Maria, não há nada no texto bíblico que indique isto. Da publicação do édito imperial à viagem do casal não sabemos quanto tempo terá decorrido, mas com certeza o deslocamento para longe dos olhares curiosos da família de Maria deve ter sido providencial. Ao destacar que Maria “estava grávida” (Lc 2.5), o evangelista pode indicar o motivo velado de uma viagem, que a nossos olhos parece até arriscada demais para mãe e bebê.
Lucas também não dá detalhes da viagem e nem afirma quanto tempo depois da chegada à Belém os dias da gravidez de Maria chegaram ao fim. O texto simplesmente diz: “E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz” (Lc 2.6). Podemos perceber, então, que a imagem tradicional de uma Maria com uma gravidez avançadíssima montada num burrico a ser conduzido pela mão de José é uma extrapolação poética da nossa imaginação perpetuada há séculos. Afinal, o texto bíblico não nos dá estes detalhes.
Da mesma forma, o relato que se segue também merece um olhar mais atento. Diz o texto: “E teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7). Deste breve texto, muito se escreveu, muitos hinos foram compostos e muitos quadros foram pintados. Sempre o destaque foi a pobreza e simplicidade do nascimento daquele que era o Rei dos Reis e a insensibilidade dos que lhe negaram um local mais digno. Mas será esta a realidade deste texto?
A hospitalidade sempre foi algo extremamente importante para o povo do antigo Médio Oriente. No Antigo Testamento são diversos os relatos de hospitalidade, vindo de pessoas de posses como Abraão (Gênesis 18) ou de pessoas muito pobres como a viúva de Sarepta (1 Reis 17). A hospitalidade independia das condições financeiras. Como então entender que numa situação de recenseamento fosse negado um lugar de pouso a uma jovem grávida? Isto iria contra todos os valores comunitários judaicos!
Nas pequenas aldeias da Judeia não existiam pousadas ou hotéis como hoje estamos acostumados. O único lugar onde existiam locais semelhantes a pousadas era ao longo das estradas romanas oficiais. No caso de um recenseamento como o relatado por Lucas, os viajantes seriam acolhidos nas casas de seus familiares e amigos de familiares. É claro que já podemos perceber que algumas casas ficariam superlotadas, mas pela prática judaica, não se negaria a hospedagem, mesmo que para isso alguém tivesse de dar a sua própria cama ao hóspede.
O fato de José ter de se recensear em Belém indica que sua família era originária deste local. Logo, quando José e Maria chegaram a cidade, com certeza foram acolhidos pela família de José ou por amigos chegados.
Então, como explicar o fato do texto dizer “não haver lugar para eles na hospedaria”? A explicação reside em uma falha de tradução para o português. A palavra traduzida como hospedaria é em grego katalyma (καταλύμα) cuja tradução correta seria uma sala ou quarto de hóspedes. Curiosamente o texto da Bíblia em português traduz katayma como sala em Lucas 22.11 e como casa em Mateus 2.11. Nas casas, construídas em dois pisos, existia um cômodo no piso superior comumente reservado para hóspedes ou para alguma reunião especial. O texto de Marcos 14.14-15 é bem elucidativo sobre a sala ou quarto de hóspedes (katalyma) onde ocorreu a última Páscoa de Jesus: o cenáculo.
Se a intenção do evangelista era narrar sobre uma hospedaria ou estalagem, ele usaria a palavra pandoxion (πανδοχεῖον), termo que pode ser visto na parábola do bom samaritano, quando este, ao encontrar um homem agredido por salteadores, “levou-o para uma estalagem (pandoxion) e cuidou dele” (Lc 10.34).
Outra percepção errada vinda da tradução para o português deste pequeno versículo é a ideia do menino Jesus nascendo em um local cercado por animais e dormindo em uma manjedoura usada para alimentação da criação. O texto grego, traduzido para o português traz a palavra phátnē (φάτνῃ) que foi tradicionalmente traduzida como manjedoura. Mas esta é apenas uma das possíveis traduções deste termo. Segundo a concordância Strong, a palavra phatné também pode significar tanto uma pequena cama para um bebê como um estábulo. Logo, a tradução de Lucas 2.7 poderia bem ser: “e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa pequena cama, por não haver lugar para eles no quarto de hóspedes” ou “e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou num estábulo, por não haver lugar para eles no quarto de hóspedes”.
Os parentes de José muito provavelmente estavam recebendo vários outros familiares vindos de outras cidades e a casa deveria estar cheia, inclusive o quarto de hóspedes. Isso não impede que José e Maria estivessem alojados junto com todo os demais familiares. Mas, quando as dores do parto começaram, dificilmente Maria estaria à vontade para dar à luz cercada de tanta gente. Isso explicaria o fato de ter se deslocado, por conselho dos anfitriões ou mesmo por escolha própria, para um local mais reservado. Talvez para isto tenha ido à parte adjacente à casa usada normalmente para abrigar animais nas estações chuvosas. Isto explicaria a presença de uma manjedoura na cena do nascimento de Jesus, ou mesmo a possibilidade da tradução de phatné como estábulo. Apesar do improviso, Maria teria conseguido um pouco mais de privacidade para o parto.
Como o local só era usado para a guarda de animais no inverno ou no período das chuvas, dificilmente os animais teriam presenciado o nascimento de Jesus. Isto porque um recenseamento nunca seria convocado no inverno ou no período das chuvas!
Mas podemos perceber que a tradição moldou as traduções do texto, unindo o fato da visita dos pastores à presença de animais (ovelhas e outros) junto ao local de nascimento de Jesus, conformando o texto bíblico à imagem tão conhecida do presépio. Isso não nos impede de gostar dos presépios. Eles vão continuar a contar a bela história do Natal em sua simplicidade e humildade.
Ao mesmo tempo, a tradução equivocada acabou por incutir uma ideia de falta de hospitalidade e de compaixão relacionada aos habitantes da aldeia de Belém. É como se o povo da Judeia já rejeitasse Jesus antes mesmo de seu nascimento, o que não é verdade.
Recolocar o texto bíblico em sua origem cultural não deve desconstruir nossas ideias sobre o nascimento de Jesus, mas sim ampliar nossa visão sobre esse acontecimento único e maravilhoso. Jesus não nasceu isolado da hospitalidade, mas pelo contrário ele foi acolhido em uma família, a família de José, a família de Davi.
A cada ano, com a celebração do Natal, é hora de também refletirmos sobre como temos acolhido Jesus em nossa casa e em nossa vida. A sagrada família transcende os limites da maternidade e paternidade de Maria e José para alcançar a todo aquele que recebe Jesus em seu coração. Somos todos parte da grande família de Jesus.
REVISTA ULTIMATO – BÍBLIA: REVELAÇÃO E LITERATURA
Ultimato mostra, entre outras coisas, a riqueza das Escrituras quando lidas como literatura, sem diminuir o seu caráter sagrado — a sua inspiração divina.
E reafirmamos o que publicamos em outra edição recente: A Bíblia Ainda Fala — “As Escrituras contêm a narrativa que dá sentido, esclarece e comunica a soberania e sabedoria de Deus. A lealdade ao que está exposto no Livro deve ser a marca dos cristãos”.
É disso que trata a matéria de capa da edição 410 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» A Bíblia Toda o Ano Todo, John Stott
» Não Perca Jesus de Vista, Elben Magalhães Lenz César
» Advento: um tempo para renovar a esperança, por Luiz Fernando dos Santos
» Encerrando o ano litúrgico – Jesus vem!, por Ariane Gomes
Por Lidice Meyer
Quando paramos para pensar na vida de Maria, algo que não se pode dizer é que foi monótona! Desde o anúncio de sua gravidez por um anjo, à desconfiança de seu noivo José e de, provavelmente, seus familiares, a viagem para a casa de Isabel para esconder-se dos olhares curiosos, o retorno para Nazaré e o casamento com José. Tudo havia acontecido em apenas poucos meses. Agora, com sua gravidez em estado avançado, Maria recebe mais uma novidade: uma viagem às pressas.
Nazaré, a cidade natal de Maria, e todo o seu entorno estava sob o domínio do imperador romano César Augusto. O evangelista Lucas relata que houve uma convocação para recenseamento durante a gravidez de Maria. E José, sendo descendente de Davi precisaria ir com sua família até a cidade de Belém para se cadastrar. Embora a tradição e o senso comum coloquem esta viagem nos últimos dias da gravidez de Maria, não há nada no texto bíblico que indique isto. Da publicação do édito imperial à viagem do casal não sabemos quanto tempo terá decorrido, mas com certeza o deslocamento para longe dos olhares curiosos da família de Maria deve ter sido providencial. Ao destacar que Maria “estava grávida” (Lc 2.5), o evangelista pode indicar o motivo velado de uma viagem, que a nossos olhos parece até arriscada demais para mãe e bebê.
Lucas também não dá detalhes da viagem e nem afirma quanto tempo depois da chegada à Belém os dias da gravidez de Maria chegaram ao fim. O texto simplesmente diz: “E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz” (Lc 2.6). Podemos perceber, então, que a imagem tradicional de uma Maria com uma gravidez avançadíssima montada num burrico a ser conduzido pela mão de José é uma extrapolação poética da nossa imaginação perpetuada há séculos. Afinal, o texto bíblico não nos dá estes detalhes.
Da mesma forma, o relato que se segue também merece um olhar mais atento. Diz o texto: “E teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7). Deste breve texto, muito se escreveu, muitos hinos foram compostos e muitos quadros foram pintados. Sempre o destaque foi a pobreza e simplicidade do nascimento daquele que era o Rei dos Reis e a insensibilidade dos que lhe negaram um local mais digno. Mas será esta a realidade deste texto?
A hospitalidade sempre foi algo extremamente importante para o povo do antigo Médio Oriente. No Antigo Testamento são diversos os relatos de hospitalidade, vindo de pessoas de posses como Abraão (Gênesis 18) ou de pessoas muito pobres como a viúva de Sarepta (1 Reis 17). A hospitalidade independia das condições financeiras. Como então entender que numa situação de recenseamento fosse negado um lugar de pouso a uma jovem grávida? Isto iria contra todos os valores comunitários judaicos!
Nas pequenas aldeias da Judeia não existiam pousadas ou hotéis como hoje estamos acostumados. O único lugar onde existiam locais semelhantes a pousadas era ao longo das estradas romanas oficiais. No caso de um recenseamento como o relatado por Lucas, os viajantes seriam acolhidos nas casas de seus familiares e amigos de familiares. É claro que já podemos perceber que algumas casas ficariam superlotadas, mas pela prática judaica, não se negaria a hospedagem, mesmo que para isso alguém tivesse de dar a sua própria cama ao hóspede.
O fato de José ter de se recensear em Belém indica que sua família era originária deste local. Logo, quando José e Maria chegaram a cidade, com certeza foram acolhidos pela família de José ou por amigos chegados.
Então, como explicar o fato do texto dizer “não haver lugar para eles na hospedaria”? A explicação reside em uma falha de tradução para o português. A palavra traduzida como hospedaria é em grego katalyma (καταλύμα) cuja tradução correta seria uma sala ou quarto de hóspedes. Curiosamente o texto da Bíblia em português traduz katayma como sala em Lucas 22.11 e como casa em Mateus 2.11. Nas casas, construídas em dois pisos, existia um cômodo no piso superior comumente reservado para hóspedes ou para alguma reunião especial. O texto de Marcos 14.14-15 é bem elucidativo sobre a sala ou quarto de hóspedes (katalyma) onde ocorreu a última Páscoa de Jesus: o cenáculo.
Se a intenção do evangelista era narrar sobre uma hospedaria ou estalagem, ele usaria a palavra pandoxion (πανδοχεῖον), termo que pode ser visto na parábola do bom samaritano, quando este, ao encontrar um homem agredido por salteadores, “levou-o para uma estalagem (pandoxion) e cuidou dele” (Lc 10.34).
Outra percepção errada vinda da tradução para o português deste pequeno versículo é a ideia do menino Jesus nascendo em um local cercado por animais e dormindo em uma manjedoura usada para alimentação da criação. O texto grego, traduzido para o português traz a palavra phátnē (φάτνῃ) que foi tradicionalmente traduzida como manjedoura. Mas esta é apenas uma das possíveis traduções deste termo. Segundo a concordância Strong, a palavra phatné também pode significar tanto uma pequena cama para um bebê como um estábulo. Logo, a tradução de Lucas 2.7 poderia bem ser: “e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa pequena cama, por não haver lugar para eles no quarto de hóspedes” ou “e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou num estábulo, por não haver lugar para eles no quarto de hóspedes”.
Os parentes de José muito provavelmente estavam recebendo vários outros familiares vindos de outras cidades e a casa deveria estar cheia, inclusive o quarto de hóspedes. Isso não impede que José e Maria estivessem alojados junto com todo os demais familiares. Mas, quando as dores do parto começaram, dificilmente Maria estaria à vontade para dar à luz cercada de tanta gente. Isso explicaria o fato de ter se deslocado, por conselho dos anfitriões ou mesmo por escolha própria, para um local mais reservado. Talvez para isto tenha ido à parte adjacente à casa usada normalmente para abrigar animais nas estações chuvosas. Isto explicaria a presença de uma manjedoura na cena do nascimento de Jesus, ou mesmo a possibilidade da tradução de phatné como estábulo. Apesar do improviso, Maria teria conseguido um pouco mais de privacidade para o parto.
Como o local só era usado para a guarda de animais no inverno ou no período das chuvas, dificilmente os animais teriam presenciado o nascimento de Jesus. Isto porque um recenseamento nunca seria convocado no inverno ou no período das chuvas!
Mas podemos perceber que a tradição moldou as traduções do texto, unindo o fato da visita dos pastores à presença de animais (ovelhas e outros) junto ao local de nascimento de Jesus, conformando o texto bíblico à imagem tão conhecida do presépio. Isso não nos impede de gostar dos presépios. Eles vão continuar a contar a bela história do Natal em sua simplicidade e humildade.
Ao mesmo tempo, a tradução equivocada acabou por incutir uma ideia de falta de hospitalidade e de compaixão relacionada aos habitantes da aldeia de Belém. É como se o povo da Judeia já rejeitasse Jesus antes mesmo de seu nascimento, o que não é verdade.
Recolocar o texto bíblico em sua origem cultural não deve desconstruir nossas ideias sobre o nascimento de Jesus, mas sim ampliar nossa visão sobre esse acontecimento único e maravilhoso. Jesus não nasceu isolado da hospitalidade, mas pelo contrário ele foi acolhido em uma família, a família de José, a família de Davi.
A cada ano, com a celebração do Natal, é hora de também refletirmos sobre como temos acolhido Jesus em nossa casa e em nossa vida. A sagrada família transcende os limites da maternidade e paternidade de Maria e José para alcançar a todo aquele que recebe Jesus em seu coração. Somos todos parte da grande família de Jesus.
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Ultimato mostra, entre outras coisas, a riqueza das Escrituras quando lidas como literatura, sem diminuir o seu caráter sagrado — a sua inspiração divina.
E reafirmamos o que publicamos em outra edição recente: A Bíblia Ainda Fala — “As Escrituras contêm a narrativa que dá sentido, esclarece e comunica a soberania e sabedoria de Deus. A lealdade ao que está exposto no Livro deve ser a marca dos cristãos”.
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Lidice Meyer P. Ribeiro é doutora em Antropologia e professora na Universidade Lusófona, Portugal.
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- 10 de dezembro de 2024
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