Opinião
- 30 de agosto de 2012
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O mundo concreto da luta espiritual
Você acredita em demônios? Quem quiser pode atribuir “curas e exorcismos”, narrados a respeito de Jesus, à natural capacidade de uma personalidade “pentecostal”. Um equívoco. Jesus entende como as pessoas de seu tempo dependem das superstições, crendices e crenças. O Mal supostamente “sobrenatural” domina a sociedade. A miséria é escamoteada para fora da realidade. A sociedade humana, por outro lado, é um mundo perturbado por comportamentos inaceitáveis de “possessos”, nem sempre reconhecidos como tais: fratricidas; estupradores, pedófilos, drogaditos, traficantes; espancadores de mulheres e crianças, agressores de homossexuais, linchadores, flageladores, abusadores de mendigos e doentes mentais; traficantes de drogas... É o mundo do homem tomado por “demônios” reais, concretos, expostos no cotidiano das metrópoles e pequenas cidades, camuflados no falso repúdio e vergonha da sociedade.
O mundo espiritual do Novo Testamento é profundamente influenciado pela “presença” de anjos e demônios, e do diabo, tal e qual uma região cinzenta que esconde atores reais nos bastidores, expressando a violência urbana no cotidiano. Superstição? Muito mais que isso. Trata-se de uma dominação espiritual comandando também a resposta negativa da pessoa religiosa às verdadeiras e questões ("...pois a nossa luta não é contra pessoas, mas contra os poderes e autoridades; contra os dominadores deste mundo de trevas; contra as forças espirituais do mal" (Ef 6.12). Estas deveriam perturbar a consciência coletiva, enquanto abrem seus olhos. Porém, cegueira, impiedade, egoísmo e narcisismo negam a realidade. Os instrumentos da superstição reforçam esta situação.
Habitação, saneamento, urbanização, proteção sanitária, são necessidades, bens sociais a serem repartidos, e não simplesmente plataformas de candidatos a vereadores e prefeitos que buscam suas eleições, poderiam estar na pauta religiosa. As cidades citadas no evangelho, como a Decápole (Mc 5.1 ss), exemplificam a semelhança com as cidades modernas. Vários municípios compõem a zona metropolitana. Doentes, pobres, abandonados pelos poderes públicos, miseráveis e famintos, vítimas do abandono da sociedade, a olho nu, tornam visíveis essas realidades.
Orações de poder, astrologia esotérica, magia e prestidigitação religiosa comparecem com frequência, no mundo supersticioso e cinzento. Trata-se de um universo simbólico tomado por forças ocultas, medo e terror, atribuídos ao sobrenatural. Talvez, um modo de atenuar o impacto dos mistérios da natureza real, que se apresentam como um desafio visível no cotidiano, constantemente ameaçado por forças cegas, como diria, além da carta apostólica citada, Erich Fromm. Explicam a violência no cotidiano das pessoas?
Não faltam grupos representativos julgando atender a uma “justiça particular”, pretendendo a “limpeza da sociedade”. Pretendem defender a coletividade, agem em bandos, como possessos, violentos, loucos, agredindo pessoas doentes e sãs. O que justificaria a violência contra doentes, alienados e moradores de rua indefesos? O narcisismo coletivo não suporta o “lado feio”, repulsivo, desagradável, dos marginalizados? Sempre em bandos, agem para exterminar “indesejáveis” mendigos, loucos, doentes mentais, em nome da própria comunidade, que não os suportam.
Precisamos entender e dar um sentido humano real à mensagem do Novo Testamento, sobre realidades concretas e enfermidades criadas socialmente. Útero da violência simbólica existente. Do mesmo modo, podemos observar as responsabilidades sobre epidemias socializadas, como o drogadismo farmacológico, a Aids e a dengue, para além das representações figurativas.
A palavra evangélica, na Bíblia, é que Deus julga e age sobre o mundo para salvá-lo e libertá-lo. As forças incontroláveis herdadas pela humanidade desde o mundo ancestral se submetem à sentença libertária da consciência sobre a salvação. Realidades ímpias devem ser transformadas. Um mundo novo é possível, diz o Evangelho, nos relatos de cura e exorcismos. E no enfrentamento de doenças devastadoras. Doenças sociais ou socializadas.
Mas é preciso expor à luz do dia as realidades que o coletivo não quer ver, em seu egoísmo e narcisismo. É Jesus, com sua mente e imperativos éticos, que comanda a salvação e as transformações possíveis na proposta do reinado de Deus, para tornar novo este “céu” e esta “terra”, no sonho do profeta apocalíptico. Um mundo sem males nem dores, como entende o poema do Apocalipse (21.1-4). À esperança do futuro, salvação universal, como informa o evangelho do Novo Testamento, na realização episódica da cura miraculosa, torna-se presente em Jesus, disse Gerd Theissen. Aponta a luta incessante contra as injustiças e desigualdades, consentidas coletivamente.
No Evangelho, Jesus ostenta um poder reverso à corrente demoníaca do servilismo, conformismo, quietismo e fatalismos religiosos. Jesus irradia uma energia libertária, que pode alcançar as pessoas em suas realidades, embora existam curandeiros e exorcistas, políticos demagogos e oportunistas, nas comunidades que propunham rituais e práticas exorcistas pentecostalizadas, que tão simplesmente camuflam o Mal, servindo aos poderes e poderosos deste mundo. É esta a resposta do Novo Testamento, também chamado de Evangelho do Reino de Deus.
Jesus se apresenta na contramão dessas ações. Acolhe o doente, o marginalizado, cura-o e expulsa o que causa a doença. Acolhe os doentes e marginalizados. Não os manipula para garantir prestígio. Cura-os e expulsa o que causa a doença. Chama-os de volta ao meio comum, e para um mundo novo e saudável, mental e socialmente, recusando o conformismo e indignando-os quanto à injustiça e desigualdade de tratamento na distribuição dos bens sociais. Resta saber como a sociedade estabelecida aceita essas curas, ou exorcismos, uma vez que não tem mais a quem atribuir “possessões demoníacas” sobrenaturais, e sujeitos que camuflam no mundo natural, real, os resultados do narcisismo e egoísmo; as consequências das desigualdades e injustiça na distribuição de bens sociais que tornam a vida humana saudável.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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