Opinião
- 30 de agosto de 2012
- Visualizações: 5426
- 9 comentário(s)
- +A
- -A
- compartilhar
O mundo concreto da luta espiritual
Você acredita em demônios? Quem quiser pode atribuir “curas e exorcismos”, narrados a respeito de Jesus, à natural capacidade de uma personalidade “pentecostal”. Um equívoco. Jesus entende como as pessoas de seu tempo dependem das superstições, crendices e crenças. O Mal supostamente “sobrenatural” domina a sociedade. A miséria é escamoteada para fora da realidade. A sociedade humana, por outro lado, é um mundo perturbado por comportamentos inaceitáveis de “possessos”, nem sempre reconhecidos como tais: fratricidas; estupradores, pedófilos, drogaditos, traficantes; espancadores de mulheres e crianças, agressores de homossexuais, linchadores, flageladores, abusadores de mendigos e doentes mentais; traficantes de drogas... É o mundo do homem tomado por “demônios” reais, concretos, expostos no cotidiano das metrópoles e pequenas cidades, camuflados no falso repúdio e vergonha da sociedade.
O mundo espiritual do Novo Testamento é profundamente influenciado pela “presença” de anjos e demônios, e do diabo, tal e qual uma região cinzenta que esconde atores reais nos bastidores, expressando a violência urbana no cotidiano. Superstição? Muito mais que isso. Trata-se de uma dominação espiritual comandando também a resposta negativa da pessoa religiosa às verdadeiras e questões ("...pois a nossa luta não é contra pessoas, mas contra os poderes e autoridades; contra os dominadores deste mundo de trevas; contra as forças espirituais do mal" (Ef 6.12). Estas deveriam perturbar a consciência coletiva, enquanto abrem seus olhos. Porém, cegueira, impiedade, egoísmo e narcisismo negam a realidade. Os instrumentos da superstição reforçam esta situação.
Habitação, saneamento, urbanização, proteção sanitária, são necessidades, bens sociais a serem repartidos, e não simplesmente plataformas de candidatos a vereadores e prefeitos que buscam suas eleições, poderiam estar na pauta religiosa. As cidades citadas no evangelho, como a Decápole (Mc 5.1 ss), exemplificam a semelhança com as cidades modernas. Vários municípios compõem a zona metropolitana. Doentes, pobres, abandonados pelos poderes públicos, miseráveis e famintos, vítimas do abandono da sociedade, a olho nu, tornam visíveis essas realidades.
Orações de poder, astrologia esotérica, magia e prestidigitação religiosa comparecem com frequência, no mundo supersticioso e cinzento. Trata-se de um universo simbólico tomado por forças ocultas, medo e terror, atribuídos ao sobrenatural. Talvez, um modo de atenuar o impacto dos mistérios da natureza real, que se apresentam como um desafio visível no cotidiano, constantemente ameaçado por forças cegas, como diria, além da carta apostólica citada, Erich Fromm. Explicam a violência no cotidiano das pessoas?
Não faltam grupos representativos julgando atender a uma “justiça particular”, pretendendo a “limpeza da sociedade”. Pretendem defender a coletividade, agem em bandos, como possessos, violentos, loucos, agredindo pessoas doentes e sãs. O que justificaria a violência contra doentes, alienados e moradores de rua indefesos? O narcisismo coletivo não suporta o “lado feio”, repulsivo, desagradável, dos marginalizados? Sempre em bandos, agem para exterminar “indesejáveis” mendigos, loucos, doentes mentais, em nome da própria comunidade, que não os suportam.
Precisamos entender e dar um sentido humano real à mensagem do Novo Testamento, sobre realidades concretas e enfermidades criadas socialmente. Útero da violência simbólica existente. Do mesmo modo, podemos observar as responsabilidades sobre epidemias socializadas, como o drogadismo farmacológico, a Aids e a dengue, para além das representações figurativas.
A palavra evangélica, na Bíblia, é que Deus julga e age sobre o mundo para salvá-lo e libertá-lo. As forças incontroláveis herdadas pela humanidade desde o mundo ancestral se submetem à sentença libertária da consciência sobre a salvação. Realidades ímpias devem ser transformadas. Um mundo novo é possível, diz o Evangelho, nos relatos de cura e exorcismos. E no enfrentamento de doenças devastadoras. Doenças sociais ou socializadas.
Mas é preciso expor à luz do dia as realidades que o coletivo não quer ver, em seu egoísmo e narcisismo. É Jesus, com sua mente e imperativos éticos, que comanda a salvação e as transformações possíveis na proposta do reinado de Deus, para tornar novo este “céu” e esta “terra”, no sonho do profeta apocalíptico. Um mundo sem males nem dores, como entende o poema do Apocalipse (21.1-4). À esperança do futuro, salvação universal, como informa o evangelho do Novo Testamento, na realização episódica da cura miraculosa, torna-se presente em Jesus, disse Gerd Theissen. Aponta a luta incessante contra as injustiças e desigualdades, consentidas coletivamente.
No Evangelho, Jesus ostenta um poder reverso à corrente demoníaca do servilismo, conformismo, quietismo e fatalismos religiosos. Jesus irradia uma energia libertária, que pode alcançar as pessoas em suas realidades, embora existam curandeiros e exorcistas, políticos demagogos e oportunistas, nas comunidades que propunham rituais e práticas exorcistas pentecostalizadas, que tão simplesmente camuflam o Mal, servindo aos poderes e poderosos deste mundo. É esta a resposta do Novo Testamento, também chamado de Evangelho do Reino de Deus.
Jesus se apresenta na contramão dessas ações. Acolhe o doente, o marginalizado, cura-o e expulsa o que causa a doença. Acolhe os doentes e marginalizados. Não os manipula para garantir prestígio. Cura-os e expulsa o que causa a doença. Chama-os de volta ao meio comum, e para um mundo novo e saudável, mental e socialmente, recusando o conformismo e indignando-os quanto à injustiça e desigualdade de tratamento na distribuição dos bens sociais. Resta saber como a sociedade estabelecida aceita essas curas, ou exorcismos, uma vez que não tem mais a quem atribuir “possessões demoníacas” sobrenaturais, e sujeitos que camuflam no mundo natural, real, os resultados do narcisismo e egoísmo; as consequências das desigualdades e injustiça na distribuição de bens sociais que tornam a vida humana saudável.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
- Textos publicados: 94 [ver]
- 30 de agosto de 2012
- Visualizações: 5426
- 9 comentário(s)
- +A
- -A
- compartilhar
QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI.
Ultimato quer falar com você.
A cada dia, mais de dez mil usuários navegam pelo Portal Ultimato. Leem e compartilham gratuitamente dezenas de blogs e hotsites, além do acervo digital da revista Ultimato, centenas de estudos bíblicos, devocionais diárias de autores como John Stott, Eugene Peterson, C. S. Lewis, entre outros, além de artigos, notícias e serviços que são atualizados diariamente nas diferentes plataformas e redes sociais.
PARA CONTINUAR, precisamos do seu apoio. Compartilhe conosco um cafezinho.
Leia mais em Opinião
Opinião do leitor
Para comentar é necessário estar logado no site. Clique aqui para fazer o login ou o seu cadastro.
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta é necessário estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o login ou seu cadastro.
Ainda não há artigos publicados na seção "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em Últimas
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu há...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e História
- Casamento e Família
- Ciência
- Devocionário
- Espiritualidade
- Estudo Bíblico
- Evangelização e Missões
- Ética e Comportamento
- Igreja e Liderança
- Igreja em ação
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Política e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Série Ciência e Fé Cristã
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Cristã
Revista Ultimato
+ lidos
- Corpos doentes [fracos, limitados, mutilados] também adoram
- Pesquisa Força Missionária Brasileira 2025 quer saber como e onde estão os missionários brasileiros
- Perigo à vista ! - Vulnerabilidades que tornam filhos de missionários mais suscetíveis ao abuso e ao silêncio
- As 97 teses de Martinho Lutero
- Lutar pelos sonhos é possível após os 60. Sempre pela bondade do Senhor
- A urgência da reconciliação: Reflexões a partir do 4º Congresso de Lausanne, um ano após o 7 de outubro
- Para fissurados por controle, cancelamento é saída fácil
- A última revista do ano
- Diálogos de Esperança: nova temporada conversa sobre a Igreja e Lausanne 4
- Vem aí "The Connect Faith 2024"