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Opinião

O mistério da Páscoa

Por Carlos Caldas
 
Este pequenino texto está sendo escrito nos últimos dias do tempo da Quaresma de 2023, tempo este dedicado a preparar os cristãos para a Páscoa, para que possam ter uma celebração adequada dos acontecimentos grandiosos, gloriosos e misteriosos envolvendo os últimos dias da vida terrena de Jesus de Nazaré. A Quaresma está para a Páscoa assim como o Advento está para o Natal.
 
Mas que acontecimentos foram estes? Os acontecimentos da “Última Semana”, ou “Semana Santa”: as igrejas da tradição ortodoxa oriental (igrejas gregas, cipriotas, búlgaras, russas, armênias, sérvias) na véspera do Domingo de Ramos celebram o “Sábado de Lázaro”, a lembrança da ressurreição do irmão de Marta e Maria de Betânia (cf. Jo 11.1-45). No dia seguinte, a lembrança da “entrada triunfal de Jesus em Jerusalém” e, depois disso, os acontecimentos que vão culminar com a prisão de Jesus na quinta-feira, sua crucificação e sepultamento na “Sexta-Feira da Paixão” e sua ressurreição no domingo. Como os evangelhos não estão preocupados em fazer história no sentido contemporâneo da palavra, não temos como estabelecer uma cronologia exata destes acontecimentos. Mas isso não importa. Os evangelhos, a despeito das diferenças que têm entre si, contêm o que nos é necessário, “pois tudo quanto outrora foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
 
Não há dúvida que o “duo”1  principal da Páscoa é formado pela crucificação e pela ressurreição, os dois grandes eventos da sexta-feira e do domingo. Não por mero acaso a cruz e o túmulo vazio ocupam lugares destacados na piedade popular cristã há literalmente dois milênios. Mas, por que são tão importantes? O que significam? Em que nos afetam?
 
Responder a estas perguntas não é tão simples assim. No parágrafo anterior afirmou-se que a piedade popular cristã sempre deu, e continua a dar, muita importância à morte e à ressurreição de Jesus. Esta é uma piedade mais preocupada com símbolos e sentimentos que com reflexão teórica propriamente. Mas a intelligentsia cristã também tem se ocupado, muito e há muito, destes temas. A grande questão apresentada pelos acontecimentos da Semana Santa tem a ver com o significado, o sentido, da cruz e do túmulo vazio. Esta questão é mais difícil de responder que a questão cristológica, isto é, a compreensão quanto à pessoa de Jesus Cristo. No ano 451 da era cristã o Concílio de Calcedônia formulou a definição cristológica clássica que entende Jesus como sendo uma pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, sendo que as duas não se misturam, não se confundem, não se dividem e não se transformam (uma na outra). A compreensão cristológica calcedoniana é aceita por cristãos romanos, protestantes e pela maioria das igrejas ortodoxas orientais.
 
Pois bem, se houve um Concílio de Calcedônia que conseguiu apresentar uma “definição” (entre muitas aspas!) da pessoa de Cristo, nunca houve nada semelhante que “definisse” (de novo, entre muitas aspas!) o sentido e o significado da morte de Jesus na cruz. Portanto, há diferentes tentativas de interpretação das narrativas da crucificação. Dizemos que “Jesus morreu para nos salvar”. Certo. Mas como exatamente isso acontece? Ao longo dos séculos diferentes tentativas de resposta têm sido apresentadas. Todas têm argumentos bons e sólidos a seu favor, e ao mesmo tempo nenhuma delas é totalmente livre de problemas. Na teologia cristã clássica esta questão é estudada sob a rubrica das “teorias da expiação”. Vejamos, posto que em síntese, o que cada teoria defende.

 
Comecemos pela mais comum, mais conhecida e mais aceita, pelo menos por católicos e protestantes: a teoria da substituição penal, associada ao nome de Anselmo da Cantuária, teólogo do século 11. Anselmo é autor de um livro que adquiriu influência imensa nos séculos posteriores: Cur Deus homo? (“Por que Deus se fez homem?). A tese anselmiana, em resumo, pode ser assim exposta: o pecado humano ofende a santidade de Deus. Anselmo entendia que Deus não poderia simplesmente perdoar por perdoar, perdoar por um ato de bondade e graça. O pecado cometido teria que ser reparado de alguma forma. Sendo assim, a criatura humana tem que pagar pelo que fez. Mas ao mesmo tempo, o humano não é capaz de fazer isso, porque é infinitamente inferior a Deus. Só Deus pode satisfazer a Deus. Mas Deus não pecou, quem pecou foi o homem. A solução para este dilema: só alguém que seja ao mesmo tempo divino e humano pode fazer isso. Jesus, sendo humano e divino, divino e humano, é o único ser no universo capaz de pagar pelo pecado humano e satisfazer a santidade divina ofendida pelo pecado. A teoria de Anselmo é atraente, mas tem alguns problemas. Por exemplo, na parábola do “Filho Pródigo” o pai ofendido simplesmente perdoou o filho sem exigir qualquer tipo de reparação de alguma maneira. Ele simplesmente perdoou. Parece que Anselmo não prestou atenção a textos como este quando formulou sua teoria. Além disso, Anselmo pensou conforme as categorias do seu tempo, apresentando Deus como um nobre medieval, uma imagem um tanto distante das “imagens” de Deus que se encontram nas Escrituras. Não se pode culpar Anselmo por isso, mas também não pode deixar de prestar atenção aos “pontos cegos” de sua teoria.
 
Outra teoria da expiação que se tornou muito conhecida é a chamada teoria da influência moral, associada ao nome de Abelardo de Paris, contemporâneo de Anselmo. Abelardo entendeu Jesus como o exemplo maior e mais perfeito de submissão à vontade divina. Ao “ser obediente até a morte, e morte de cruz” Jesus mostra como se deve viver neste mundo, e assim atrai as pessoas a Deus. Pode-se perceber na teoria de Abelardo um eco de João 12.32: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo”. No versículo seguinte o evangelista comenta esse dito de Jesus: “isto dizia, significando de que gênero de morte estava para morrer” (Jo 12.33). Há um tanto de acerto no pensamento abelardiano, mas ao mesmo tempo nota-se que sua teoria não leva em conta textos bíblicos que afirmam claramente que Jesus, mais que um exemplo de vida (e inegavelmente ele o é), “pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados” (Ap 1.5b).
 
Outra teoria formulada já no período patrístico, especialmente entre os Pais da Igreja Oriental (de língua grega), é a chamada teoria do resgate. Conforme esta compreensão, quando morreu na cruz Jesus nos resgatou do poder de Satanás. Com o pecado, o ser humano tornou-se prisioneiro de Satanás, e a morte de Jesus na cruz, no lugar dos pecadores prisioneiros, os liberta dessa escravidão De fato, encontra-se no Novo Testamento uma linguagem que fala de resgate operado por Jesus: em Marcos 10.45 é dito que “o Filho do Homem veio dar a sua vida em resgate por muitos”. Esta mesma ideia aparece em Colossenses 1.13-14. É curioso observar que C. S. Lewis, um dos mais influentes pensadores cristãos do século passado, não adotava a teoria anselmiana da expiação, a despeito de ela ser, conforme afirmado, majoritária em círculos protestantes e católicos. Lewis adotava a teoria patrística do resgate. É o que se vê claramente em forma de literatura de fantasia em seu clássico O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. O grande problema da teoria do resgate é que parece que ela “enche a bola” de Satanás mais do que ele merece.
 
Enfim, todas as teorias da expiação propostas têm pontos sólidos e fraquezas, acertos e pontos cegos. Acertam no que afirmam e erram no que (conscientemente ou não) não consideram ou não enfatizam. Nenhuma delas consegue ter uma visão plena e ampla do quadro total do drama da redenção. É até bom que seja assim, para manter nossa humildade. O mistério da Páscoa nos convida à reflexão racional, claro, mas muito mais que isso, nos desafia à contemplação.
 
Mas a cruz da Sexta-Feira só faz sentido e só tem importância por causa do túmulo vazio do Domingo. A ressurreição valida a cruz. Se não fosse pela ressurreição, Jesus de Nazaré teria sido apenas uma entre milhares e milhares de vítimas executadas por crucificação pelo Império Romano. O túmulo vazio também é um mistério. E neste mistério baseia-se a fé cristã. Ao longo dos séculos, o cristianismo latino, ocidental, católico e protestante, tem enfatizado mais os sofrimentos da Paixão do Senhor. Em contraste, o cristianismo grego, ortodoxo oriental, tem enfatizado mais a glória da ressurreição. Ambas as ênfases são importantes, e a Páscoa nos desafia a considerá-las em equilíbrio. Afinal, “Jesus, nosso Senhor [...] foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação” (Rm 3.24-25).

Nota 
1.  A palavra “duo” é termo técnico musical que designa uma composição para duas vozes ou dois instrumentos. Referir-se aos acontecimentos da crucificação e da ressurreição como um “duo” remete à ideia de pensar a redenção como uma sinfonia. 

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Saiba mais:
» Os Últimos Dias de Jesus, O que de fato aconteceu?, N. T. Wright | Craig A. Evans
» Não Perca Jesus de Vista, Elben César
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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