Opinião
- 20 de setembro de 2019
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A igreja nunca deve se casar com o espírito do seu tempo
Por Ricardo Barbosa de Sousa
*Artigo originalmente publicado na edição 379 da revista Ultimato.
Alguns anos atrás, depois de uma palestra do doutor James Houston sobre cultura, tecnologia e as mudanças por que a civilização ocidental tem passado, saímos para tomar um café e conversar um pouco mais sobre o tema. Falamos sobre a rápida transformação que a revolução tecnológica trouxe e o desafio de a igreja permanecer fiel ao seu chamado. Claro, a conversa foi longa, mas uma frase dele me chamou a atenção: “Quando alguém casa com o espírito da época, a época passa e ele fica viúvo”. Há muita sabedoria nessa afirmação.
Ao longo da história, desde o Novo Testamento, as igrejas são identificadas pela sua localização geográfica – Éfeso, Filipos, Laodiceia, Roma, São Paulo, Brasília – e são formadas por pessoas que vivem nessas cidades e participam de sua dinâmica cultural, social e econômica. É inevitável que tais pessoas levem para dentro da igreja aspectos da sua cultura e expectativas religiosas que nada têm a ver com o evangelho de Cristo. Por isso, o povo de Deus sempre se relacionou com o espírito de sua época de maneira tensa, ora casando-se com ele, ora rejeitando-o. Mas toda vez que o povo de Deus se casa com o espírito do seu tempo, ele perde a sua identidade e compromete a sua vocação. Discernir as épocas, a forma como os poderes atuam e como a igreja reage a eles nem sempre é uma tarefa fácil.
O reverendo John Stott, comentando a carta à igreja de Pérgamo, descreve a tensão daquela comunidade com a cidade como uma luta pela mente. A atmosfera de Pérgamo estava moldando a mente dos cristãos, um casamento cultural estava em andamento. A igreja estava tornando-se mais parecida com o seu contexto do que com o seu Mestre. A cultura é dinâmica, muda constantemente, e a igreja realiza sua missão dentro desse contexto cultural; portanto, precisa, em alguma medida, se contextualizar. Porém, se a cultura é fluida e se somos levados a nos reinventar o tempo todo, precisamos tentar responder à seguinte indagação: quem está ganhando a batalha pela mente?
O princípio da encarnação se aplica à igreja e a sua presença no mundo, e a tensão envolve estar na cidade e ao mesmo tempo não ser parte dela. Em outras palavras, a igreja nunca deve se casar com o espírito do seu tempo, embora tenha de conviver com ele. Ela precisa permanecer crítica ao contexto em que está para não comprometer sua vocação profética. As cartas às igrejas em Apocalipse 2 e 3 nos mostram um profundo conhecimento do que acontece na cidade, cultural e politicamente, e do que acontece na igreja em sua relação com essa cidade. A mensagem às igrejas diz respeito a esse relacionamento tenso, que requer correção sempre que a igreja dá sinais de um “casamento” com o espírito do seu tempo, e afirmação sempre que ela permanece fiel ao seu Senhor e ao seu chamado.
Um casamento cultural que ameaça a identidade da igreja hoje envolve, por um lado, a perda da transcendência e, por outro, a revolução tecnológica. Não é difícil notar a transferência da confiança em Deus para a confiança na ciência, na tecnologia e nas organizações pragmáticas. Não que essas coisas sejam, em si mesmas, erradas, o problema está nos deuses em que colocamos nossa confiança. O espírito do nosso tempo vem promovendo resultados pragmáticos eficientes, mas com um sentido frágil e superficial da realidade da presença de Deus e da obra do Espírito Santo. Temos nos tornado mais autoconfiantes do que dependentes de Deus, buscando a autorrealização e não a glorificação de Deus. Vivemos de forma tão pragmática e racional de segunda a sexta-feira que, quando chegamos à igreja no domingo, nossa estrutura mental torna o culto uma extensão da cultura que vivemos. Talvez uma evidência dessa mudança seja a necessidade crescente de criar igrejas eficientes, em vez de buscar um evangelho vivo e poderoso. Muitas pessoas são atraídas para a igreja mais pela estrutura funcional que ela cria do que pelo poder do evangelho de Jesus Cristo.
No livro do Apocalipse, João tem a visão de um trono e um Rei entronizado. Essa visão constitui o centro da revelação. Ao redor do trono ele vê 24 anciãos. Não são jovens audaciosos, mas idosos que carregam a memória da história. Numa cultura pragmática e tecnológica, é comum ignorar os “anciãos” e perder a memória que nos dá a identidade de povo de Deus. O trono reúne em torno de si aqueles que têm sido guiados por Deus através dos séculos. É uma visão bem apropriada para os nossos dias porque os anciãos preservam a história – são aqueles que sonham – e os jovens são alimentados pela visão do que Deus está fazendo e fará. Isso nos ajuda a discernir a época em que vivemos e como podemos seguir a Cristo sem perder a identidade e a vocação. Os anciãos abrem as portas para os mais novos e estes seguem as pegadas dos que já caminharam e chegaram ao seu destino.
O povo de Deus é enviado para o mundo, participa da dinâmica social e cultural de suas cidades, usa os recursos que a ciência e a tecnologia disponibilizam e procura usar tudo o que é lícito para promover o evangelho de Jesus e a glória de Deus. Porém, embora a igreja faça parte da dinâmica social e cultural de sua cidade, sabemos que é a presença de Cristo, pelo poder do Espírito Santo e da Palavra, que dá identidade à igreja. Ela é estabelecida pela revelação de Jesus Cristo e sustentada por ele. Diante das transformações rápidas e fluidas da civilização, a boa nova para a igreja é que “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” (Hb 13.8). Ele é a pedra angular, o princípio e o fim, o alfa e o ômega. Tudo o que a igreja é e será repousa nele, ele é antes de todas as coisas e nele tudo subsiste. A segurança e a liberdade que temos para estar no mundo e atuar no contexto de nossas cidades e culturas, usando os recursos de que dispomos para proclamar o evangelho de Cristo, é a certeza de que estamos ancorados naquele que permanece sendo o mesmo ontem, hoje e eternamente.
*Artigo originalmente publicado na edição 379 da revista Ultimato.
Alguns anos atrás, depois de uma palestra do doutor James Houston sobre cultura, tecnologia e as mudanças por que a civilização ocidental tem passado, saímos para tomar um café e conversar um pouco mais sobre o tema. Falamos sobre a rápida transformação que a revolução tecnológica trouxe e o desafio de a igreja permanecer fiel ao seu chamado. Claro, a conversa foi longa, mas uma frase dele me chamou a atenção: “Quando alguém casa com o espírito da época, a época passa e ele fica viúvo”. Há muita sabedoria nessa afirmação.
Ao longo da história, desde o Novo Testamento, as igrejas são identificadas pela sua localização geográfica – Éfeso, Filipos, Laodiceia, Roma, São Paulo, Brasília – e são formadas por pessoas que vivem nessas cidades e participam de sua dinâmica cultural, social e econômica. É inevitável que tais pessoas levem para dentro da igreja aspectos da sua cultura e expectativas religiosas que nada têm a ver com o evangelho de Cristo. Por isso, o povo de Deus sempre se relacionou com o espírito de sua época de maneira tensa, ora casando-se com ele, ora rejeitando-o. Mas toda vez que o povo de Deus se casa com o espírito do seu tempo, ele perde a sua identidade e compromete a sua vocação. Discernir as épocas, a forma como os poderes atuam e como a igreja reage a eles nem sempre é uma tarefa fácil.
O reverendo John Stott, comentando a carta à igreja de Pérgamo, descreve a tensão daquela comunidade com a cidade como uma luta pela mente. A atmosfera de Pérgamo estava moldando a mente dos cristãos, um casamento cultural estava em andamento. A igreja estava tornando-se mais parecida com o seu contexto do que com o seu Mestre. A cultura é dinâmica, muda constantemente, e a igreja realiza sua missão dentro desse contexto cultural; portanto, precisa, em alguma medida, se contextualizar. Porém, se a cultura é fluida e se somos levados a nos reinventar o tempo todo, precisamos tentar responder à seguinte indagação: quem está ganhando a batalha pela mente?
O princípio da encarnação se aplica à igreja e a sua presença no mundo, e a tensão envolve estar na cidade e ao mesmo tempo não ser parte dela. Em outras palavras, a igreja nunca deve se casar com o espírito do seu tempo, embora tenha de conviver com ele. Ela precisa permanecer crítica ao contexto em que está para não comprometer sua vocação profética. As cartas às igrejas em Apocalipse 2 e 3 nos mostram um profundo conhecimento do que acontece na cidade, cultural e politicamente, e do que acontece na igreja em sua relação com essa cidade. A mensagem às igrejas diz respeito a esse relacionamento tenso, que requer correção sempre que a igreja dá sinais de um “casamento” com o espírito do seu tempo, e afirmação sempre que ela permanece fiel ao seu Senhor e ao seu chamado.
Um casamento cultural que ameaça a identidade da igreja hoje envolve, por um lado, a perda da transcendência e, por outro, a revolução tecnológica. Não é difícil notar a transferência da confiança em Deus para a confiança na ciência, na tecnologia e nas organizações pragmáticas. Não que essas coisas sejam, em si mesmas, erradas, o problema está nos deuses em que colocamos nossa confiança. O espírito do nosso tempo vem promovendo resultados pragmáticos eficientes, mas com um sentido frágil e superficial da realidade da presença de Deus e da obra do Espírito Santo. Temos nos tornado mais autoconfiantes do que dependentes de Deus, buscando a autorrealização e não a glorificação de Deus. Vivemos de forma tão pragmática e racional de segunda a sexta-feira que, quando chegamos à igreja no domingo, nossa estrutura mental torna o culto uma extensão da cultura que vivemos. Talvez uma evidência dessa mudança seja a necessidade crescente de criar igrejas eficientes, em vez de buscar um evangelho vivo e poderoso. Muitas pessoas são atraídas para a igreja mais pela estrutura funcional que ela cria do que pelo poder do evangelho de Jesus Cristo.
No livro do Apocalipse, João tem a visão de um trono e um Rei entronizado. Essa visão constitui o centro da revelação. Ao redor do trono ele vê 24 anciãos. Não são jovens audaciosos, mas idosos que carregam a memória da história. Numa cultura pragmática e tecnológica, é comum ignorar os “anciãos” e perder a memória que nos dá a identidade de povo de Deus. O trono reúne em torno de si aqueles que têm sido guiados por Deus através dos séculos. É uma visão bem apropriada para os nossos dias porque os anciãos preservam a história – são aqueles que sonham – e os jovens são alimentados pela visão do que Deus está fazendo e fará. Isso nos ajuda a discernir a época em que vivemos e como podemos seguir a Cristo sem perder a identidade e a vocação. Os anciãos abrem as portas para os mais novos e estes seguem as pegadas dos que já caminharam e chegaram ao seu destino.
O povo de Deus é enviado para o mundo, participa da dinâmica social e cultural de suas cidades, usa os recursos que a ciência e a tecnologia disponibilizam e procura usar tudo o que é lícito para promover o evangelho de Jesus e a glória de Deus. Porém, embora a igreja faça parte da dinâmica social e cultural de sua cidade, sabemos que é a presença de Cristo, pelo poder do Espírito Santo e da Palavra, que dá identidade à igreja. Ela é estabelecida pela revelação de Jesus Cristo e sustentada por ele. Diante das transformações rápidas e fluidas da civilização, a boa nova para a igreja é que “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” (Hb 13.8). Ele é a pedra angular, o princípio e o fim, o alfa e o ômega. Tudo o que a igreja é e será repousa nele, ele é antes de todas as coisas e nele tudo subsiste. A segurança e a liberdade que temos para estar no mundo e atuar no contexto de nossas cidades e culturas, usando os recursos de que dispomos para proclamar o evangelho de Cristo, é a certeza de que estamos ancorados naquele que permanece sendo o mesmo ontem, hoje e eternamente.
A ESPIRITUALIDADE, O EVANGELHO E A IGREJA | RICARDO BARBOSA
Em A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja, o pastor Ricardo Barbosa deixa claro quea espiritualidade cristã e bíblica reconhece a centralidade da cruz e encontra nos Evangelhos – na pessoa de Cristo – e na presença do reino de Deus sua forma e seu conteúdo.
Uma preciosa coletânea de textos que guiam o leitor pelos tortuosos caminhos da religiosidade dos nossos dias.
Pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília (DF). É colunista da revista Ultimato e autor de A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja, Pensamentos Transformados, Emoções Redimidas e O Caminho do Coração.
- Textos publicados: 55 [ver]
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