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Opinião

O judaísmo e Israel nas telas da Netflix

Por Carlos Caldas
 
O judaísmo é uma das manifestações religiosas mais curiosas e interessantes de todos os tempos: surgiu como a religião nacional1 de um povo que vivia espremido entre o deserto, de um lado, montanhas, do outro, e o mar, do outro. Um povo que, mesmo no seu período de maior glória, jamais formou um império, como foi o caso dos babilônios, dos egípcios e dos assírios – para citar apenas três exemplos da região do Oriente Médio, o berço da fé professada por Israel. 
 
O judaísmo introduziu uma novidade radical na história das religiões: foi a primeira tradição a anunciar a fé em um único Deus. Quando todos os povos antigos acreditavam em muitos deuses e muitas deusas, um para cada atividade da vida, os judeus faziam a prece conhecida como Shemah: “Ouve ó Israel, o Eterno, nosso Deus, é o único Senhor” (Dt 6.4). Outra novidade notável trazida pelo judaísmo é o fato de que ele foi a primeira tradição a anunciar um Deus universal. Todos os povos antigos criam que seus deuses eram divindades locais, por assim dizer: os deuses dos babilônios eram deuses só dos babilônios, os deuses dos egípcios eram deuses só dos egípcios, e o mesmo pensavam todos os demais povos da antiguidade. Neste sentido, não é exatamente correto dizer que eles eram politeístas, isto é, criam em muitos deuses. Talvez seja mais acertado dizer que eram henoteístas, isto é, criam que existem muitos deuses, mas que os deuses deles eram superiores aos demais. Em contraste, a fé de Israel anunciou vigorosamente a crença em um Deus: “Porque todos os deuses dos povos não passam de ídolos, o Senhor porém fez os céus” (Sl 96.5).2 E a crença em um Deus universal: “Do Senhor é a terra, e sua plenitude, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24.1).  
 
No berço do judaísmo nasceu o cristianismo. Todavia, em geral, há em círculos cristãos uma ignorância muito grande a respeito do judaísmo. Via de regra, pouco ou quase nada se sabe desta tradição, pois ainda há muito preconceito, alimentado por séculos de antissemitismo e falta de curiosidade sobre o grupo a respeito do qual um judeu famoso da antiguidade disse: “deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo (o Messias), segundo a carne, o qual é sobre todos Deus bendito para todo o sempre” (Rm 9.5). 
 
O judaísmo tem uma longa história e, por isso, desenvolveu no decorrer de séculos muitas divisões internas. Outro fator nesta equação é o Estado de Israel, organizado em 1948, que não poucos, especialmente dentre os evangélicos, equivocadamente pensam ser o mesmo Israel clássico dos textos do Antigo Testamento. A respeito de Israel pode ser dito o mesmo que foi afirmado com respeito ao judaísmo: a maioria dos cristãos pouco ou nada sabe a respeito. 
 
Curiosamente, está disponível no serviço de streaming Netflix um número considerável de séries e documentários sobre Israel e o judaísmo contemporâneo. Destacarei quatro: duas mostram um pouco do cotidiano da vida no atual Estado de Israel, tanto de judeus religiosos como também de não religiosos, e duas são ambientadas nos Estados Unidos, mas têm como tema a vida de judeus ultraortodoxos. Vejamos:
 
ONE OF US
 
One of Us é um documentário estadunidense sobre a vida de uma comunidade de judeus hassídicos em Nova York. O documentário mostra as dificuldades sofridas por quem rompe com o grupo. Os judeus hassídicos vivem em torno deles mesmos, evitando ao máximo o contato com quem não é do grupo. Para assegurar o isolamento, recursos tecnológicos comuns do dia a dia, como internet e televisão, são proibidos, ou, no mínimo, fortemente recomendados a não serem utilizados. A comunidade hassídica guarda traumas fortes em consequência dos sofrimentos que seus antepassados do centro e do leste da Europa experimentaram com o nazismo na época da Segunda Guerra Mundial, o que os leva a desconfiar de todos que não pertencem ao seu grupo. Entre eles os casamento são arranjados, todos se casam muito cedo, e não há preocupação em ter planejamento familiar, de modo que mesmo hoje mulheres judias hassídicas costumam ter tantos filhos quanto lhes é biologicamente possível. De fato, as famílias deste grupo judaico são orientadas a ter muitos filhos para “substituir” as vidas perdidas pela Shoah, a tentativa de extermínio sofrida pelos seus antepassados no horror nazista.3 Tudo isso gerou muito ressentimento, e muitos das gerações mais jovens têm tido problemas em se adaptar ao estilo de vida de seus pais e avós. A série da Netflix acompanha a vida de três integrantes, ou melhor, ex-integrantes da comunidade em sua luta para sobreviver fora do grupo. Um exemplo: se uma mulher se divorcia, ela imediatamente perde a guarda dos filhos, e tem que enfrentar uma batalha jurídica para poder visitá-los uma vez por semana. A série é uma crítica contundente a um estilo de vida religiosa que é implacável com quem abandona o grupo. Religião e tradição cultural se misturam de maneira tal que é virtualmente impossível separar uma da outra. 
 
NADA ORTODOXA
  
A comunidade hassídica de Nova York é também o tema e o contexto de Nada Ortodoxa, misto de série dramática e documentário. A narrativa conta a trajetória de Esty Shapiro, da já mencionada comunidade hassídica chamada Satmar, na região conhecida como Williamsburg, no Brooklyn, em Nova York. A comunidade Satmar foi fundada por judeus provenientes da Hungria. Em casa eles falam em iídiche, a curiosa língua que é uma mistura de hebraico com alemão, e quando saem falam em inglês. Esty Shapiro é o nome fictício, pois a história é inspirada nas memórias de uma judia chamada Deborah Feldman. A narrativa televisiva mescla cenas “no presente” e flashbacks com as memórias de Esty. Conforme depoimentos do making off da série, os flashbacks são reais, e as cenas “do presente” são inteiramente fictícias. Na série, Esty vai para Berlim, onde conhece um grupo de jovens músicos e literalmente descobre o mundo, pois é a primeira vez que sai da comunidade onde fora criada. Há que se destacar a ótima interpretação da jovem atriz israelense Shira Haaz, que faz o papel de Esty, e a reconstituição minuciosa e detalhada do cotidiano dos judeus de Satmar. Em síntese: Nada Ortodoxa é a história de uma jovem que tem coragem de romper com as regras severas, algumas vezes draconianas, de uma comunidade extremamente fechada em torno de si mesma, e das lutas travadas para, com coerência, assumir as conseqüências da decisão de ter nas próprias mãos, e não nas de outrem, as rédeas da vida. Esty bem poderia ser uma das pessoas do documentário One of Us, pois é exatamente este o ponto em comum entre estas duas produções: ambas contam a luta de quem rompeu com um sistema religioso e cultural fechado, com prescrições para tudo na vida. Não é nem um pouco fácil fazer isso, e as duas produções mostram muito bem todas as dificuldades envolvidas neste processo doloroso.
 
SHTISEL
 
Há semelhanças e diferenças entre a produção israelense Shtisel e as duas anteriores. A convergência está no fato que, à semelhança de One of Us e Nada Ortodoxa, Shtisel também trata do judaísmo ultraortodoxo. Uma divergência é que a série é passada em Israel. Enquanto One of Us e Nada Ortodoxa são faladas em inglês e/ou em iídiche, Shtisel é falada inteiramente em hebraico; de vez em quando conseguia entender um boquer tov (“bom dia”), todah (“obrigado”), bevakashah (“por favor”), lo (“não”) e, claro, shalom. Shtisel é uma narrativa do cotidiano da família que dá título à série: Shulem Shtisel é um rabino sexagenário viúvo que tem dois filhos e duas filhas, e mora com o caçula, o único solteiro. Ele tem a mãe idosa, que vive em uma casa para anciãos, e sempre a visita. Normalmente, toda e qualquer história é estruturada em torno de um problema que se precisa resolver. Porém, em contraste com este modelo universal e perene de narrativa, Shtisel simplesmente mostra os dramas e acontecimentos do dia a dia, ora de Shulem, ora de sua mãe, ora de um filho, ora de outro, ora de uma filha, ora de outra, o que deixa a série um tanto cansativa. Neste sentido, não faz diferença se uma temporada tem dez episódios ou cinquenta. É interessante ver as cenas de rabinos estudando comentários à Torá em uma yeshivá, o correspondente judaico de um seminário teológico cristão. Os personagens da série não bebem um copo d’água sem primeiro fazer uma prece de gratidão, e não entram em lugar nenhum sem primeiro tocar na tefilá, um pequeno cilindro contendo um rolo com um texto minúsculo da Shemah, a principal prece judaica, baseada em Dt 6.4-9. Um detalhe curioso: a anteriormente mencionada Shira Haaz, atriz principal de Nada Ortodoxa, também trabalha em Shtisel, fazendo o papel da filha de uma das filhas do rabino Shulem. Há um rosto conhecido no elenco: a bela Ayelet Zurer, que já foi Vanessa Mariana, a consorte de Wilson Fisk, o “Rei do Crime”, na série Demolidor, da mesma Netflix. 
 
FAUDA
 
Fauda é uma palavra árabe que significa “caos” ou “confusão”. A palavra foi bem escolhida para dar título a esta série que é totalmente diferente das anteriores, pois é um drama de ação, e não uma crônica do cotidiano. A série se passa em Israel e no território da Autoridade Palestina, e é falada em hebraico e em árabe. Fauda é sobre uma equipe de uma agência antiterrorista de Israel em luta constante contra ameaças e ataques de radicais palestinos. A narrativa é bastante realista e apresenta detalhes muito interessantes, como a rejeição radical do pessoal do Hamas em relação ao Daesh, o tristemente famoso “Estado Islâmico”. Outro ponto alto da série é que não há idealização do dia a dia dos agentes antiterroristas, o que faz Fauda ser bastante diferente das produções congêneres estadunidenses, que têm a tendência de romantizar personagens como Jack Bauer, por exemplo. Em Fauda não há estereótipos do tipo “israelenses bonzinhos x palestinos malvados” ou “israelenses malvados x palestinos bonzinhos”. Nada disso. Na série, todos agem na base da violência e do engano (quando necessário, muçulmanos palestinos fingem ser judeus, falando hebraico fluentemente, e judeus fingem ser muçulmanos, falando árabe fluentemente). Os israelenses da agência antiterrorismo são heróis e anti-heróis ao mesmo tempo. Outro aspecto curioso em Fauda é que o elemento religioso é periférico e secundário na narrativa. Os agentes são judeus não religiosos. 
 
Estas produções ajudam a entender um pouco do “mundo vasto, vasto mundo” (Drummond veio à minha memória ao pensar na amplitude oceânica da tradição judaica) que é o judaísmo (não é demais repetir – a vertente ultraortodoxa do judaísmo), e também a questão altamente complexa que é o Estado de Israel e o conflito com os palestinos. No mínimo, servem para sair do virtual monopólio exercido pelas produções provenientes dos Estados Unidos. 
 
Notas
1. A expressão “religião nacional” é usada para se referir às tradições religiosas das sociedades antigas, nas quais toda a sociedade tinha o mesmo conjunto de crenças e praticava os mesmos ritos. Nestas sociedades não havia diversidade religiosa tal como nas sociedades ocidentais contemporâneas. Em outras palavras: em qualquer das sociedades antigas havia apenas uma única fé religiosa e um único conjunto de ritos.  

2. O discurso de Jefté em Juízes 11 (especialmente os v. 23-24) sugere uma crença henoteísta, pois Jefté não nega os deuses dos vizinhos de Israel, mas reafirma sua crença no Senhor. O texto não deixa claro se Jefté de fato cria assim ou se falou apenas porque sabia que esta era a crença de Seom, rei dos amorreus, com quem dialogava. 
3. A tradição ocidental usa a palavra "holocausto" para se referir à tentativa de extermínio dos judeus na Europa pelo nazismo hitlerista. Todavia, os judeus rejeitam o uso da palavra, que, embora grega de origem (a palavra significa “totalmente queimado”), é originária da tradição litúrgica do Israel bíblico: o holocausto era um sacrifício oferecido ao Eterno nos tempos da antiga (ou primeira) aliança. Logo, não pode ser usada para se referir a uma tentativa de extermínio de um povo. 

É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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