Opinião
- 07 de outubro de 2021
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O ilegítimo legitimado
Série Democracia e Fé Cristã
Por Carlos Bezerra
E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu. E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados.
Atos 16.16-19
Podemos ler esse texto apenas como um registro das atividades missionárias e evangelísticas do apóstolo Paulo e seus companheiros? Sim, podemos. Mas impossível não ver também a atuação pública dos mesmos. Os registros falam de pessoas interagindo publicamente em cidades e mais cidades. É a atuação e a consolidação da mensagem cristã na polis (a palavra “política” é derivada do termo grego politikos, que designava os cidadãos que viviam na “polis”.), e nesta caminhada, eventos e embates públicos vão acontecendo. Portanto, é fundamental vermos como nossos pais apostólicos agiram. Suas condutas devem ser ainda um modelo para nossa atuação no presente.
A origem do apoio
“Uma jovem, que tinha espírito de adivinhação”.
A questão não era o conteúdo da fala, mas quem estava falando. Essa adolescente era muito conhecida em Filipos, e tinha muito capital simbólico. Como o texto diz: ela já deu muito lucro. Portanto, já acertou muito. As pessoas acreditavam no que ela falava; as pessoas a tinham em consideração e apreço. Ela tinha credibilidade e estava, assim, fazendo “transferência de poder” dela ao grupo de Paulo.
Informação é poder, como dizem, e ela detinha uma informação importante. Assim, Paulo e demais seriam ouvidos não pela importância da mensagem que eles tinham, ou por eles mesmos, mas porque ela estava lhes dando autoridade (e aqui, não custa lembrar: o texto de Romanos lido apressada ou ideologicamente dá legitimidade divina a qualquer autoridade, quando na verdade, o texto está indicando a origem da autoridade divina e não o exercício da mesma).
A falsa legitimação que Paulo recebeu em público
“E isto fez ela por muitos dias”.
Lucas registra que publicamente somente depois de alguns dias foi que Paulo reagiu. Por quê? Simples, a fala dessa jovem adivinhadora é um primor de slogan de favorecimento. Fala deles – Paulo e seu grupo – como servos de Deus e fala da mensagem, e dá legitimidade à mensagem pregada. Inicialmente, eu e você e todos os demais, entenderíamos como? Apoio, concordância. E, claro, ajuda na evangelização.
O poder espiritual sendo instrumentalizado pelo poder econômico
“E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados”
Como diz Eclesiastes, “não há nada de novo no mundo”. Nenhuma novidade que essa relação de promiscuidade entre religião e economia já existisse. Os donos do poder econômico na vida eram também os mesmos donos do poder “espiritual”. Em uma ponta exploravam uma adolescente com poderes sobrenaturais, e em outra, exploravam o comércio. Poder econômico e poder espiritual se retroalimentavam.
Nos dias atuais, talvez os mais novos não guardem tantas lembranças, mas tivemos a genial obra do escritor Dias Gomes, vetada na Ditadura, mas décadas depois conhecida: Roque Santeiro. Nesta obra, ele conta a história mentirosa de um mito milagreiro que dava muito lucro comercial. Então, a trinca religião-economia-política se beneficiava dos lucros e instrumentalizava a fé popular.
Novidade? A cidade de Filipos mandou lembranças. Mudam apenas as localidades e os tempos, mas o enredo é o mesmo. E, como enganavam antes, continuam enganando nos dias atuais.
Lições práticas para a atualidade
Ao vermos um projeto político ou mesmo uma determinada pessoa com algum projeto político precisamos nos perguntar: qual a origem? Qual a motivação? Muitas vezes, quem está quem está por trás, ou indiretamente associado, irá surfar na onda e receber – oficial ou oficiosamente – os benefícios.
No caso do registro no livro de Atos era a mensagem do evangelho, mas pensando em nossas atividades públicas na atualidade, quem está legitimando? Ou de onde vem os apoios e por quais motivos? Quem está instrumentalizando quem? Há muito capital físico e muito capital simbólico envolvidos. E em muitos eventos, há também uma fusão de emoção, dinheiro e fé.
“Discernimento espiritual” é um dos dons espirituais indicados pelo Apóstolo Paulo como fundamentais no exercício e crescimento da igreja. Não é apenas um “exercício espiritual” sem corpo, sem tempo, sem espaço, sem história. Talvez, além da falta de interpretação de texto, esteja nos faltando o discernimento espiritual.
• Carlos Bezerra Jr., pastor da Comunidade da Graça, vereador de São Paulo, ativista de Direitos Humanos, ex-deputado estadual e ex-secretário municipal de Esportes, e autor do livro Fé Cidadã – Quando a Espiritualidade e a Política se encontram.
>> Fé, cidadania e política: só a pauta moral? [resenha]
Leia mais:
» Inconformismo - uma das oito marcas do discipulado cristão
Por Carlos Bezerra
E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu. E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados.
Atos 16.16-19
Podemos ler esse texto apenas como um registro das atividades missionárias e evangelísticas do apóstolo Paulo e seus companheiros? Sim, podemos. Mas impossível não ver também a atuação pública dos mesmos. Os registros falam de pessoas interagindo publicamente em cidades e mais cidades. É a atuação e a consolidação da mensagem cristã na polis (a palavra “política” é derivada do termo grego politikos, que designava os cidadãos que viviam na “polis”.), e nesta caminhada, eventos e embates públicos vão acontecendo. Portanto, é fundamental vermos como nossos pais apostólicos agiram. Suas condutas devem ser ainda um modelo para nossa atuação no presente.
A origem do apoio
“Uma jovem, que tinha espírito de adivinhação”.
A questão não era o conteúdo da fala, mas quem estava falando. Essa adolescente era muito conhecida em Filipos, e tinha muito capital simbólico. Como o texto diz: ela já deu muito lucro. Portanto, já acertou muito. As pessoas acreditavam no que ela falava; as pessoas a tinham em consideração e apreço. Ela tinha credibilidade e estava, assim, fazendo “transferência de poder” dela ao grupo de Paulo.
Informação é poder, como dizem, e ela detinha uma informação importante. Assim, Paulo e demais seriam ouvidos não pela importância da mensagem que eles tinham, ou por eles mesmos, mas porque ela estava lhes dando autoridade (e aqui, não custa lembrar: o texto de Romanos lido apressada ou ideologicamente dá legitimidade divina a qualquer autoridade, quando na verdade, o texto está indicando a origem da autoridade divina e não o exercício da mesma).
A falsa legitimação que Paulo recebeu em público
“E isto fez ela por muitos dias”.
Lucas registra que publicamente somente depois de alguns dias foi que Paulo reagiu. Por quê? Simples, a fala dessa jovem adivinhadora é um primor de slogan de favorecimento. Fala deles – Paulo e seu grupo – como servos de Deus e fala da mensagem, e dá legitimidade à mensagem pregada. Inicialmente, eu e você e todos os demais, entenderíamos como? Apoio, concordância. E, claro, ajuda na evangelização.
O poder espiritual sendo instrumentalizado pelo poder econômico
“E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados”
Como diz Eclesiastes, “não há nada de novo no mundo”. Nenhuma novidade que essa relação de promiscuidade entre religião e economia já existisse. Os donos do poder econômico na vida eram também os mesmos donos do poder “espiritual”. Em uma ponta exploravam uma adolescente com poderes sobrenaturais, e em outra, exploravam o comércio. Poder econômico e poder espiritual se retroalimentavam.
Nos dias atuais, talvez os mais novos não guardem tantas lembranças, mas tivemos a genial obra do escritor Dias Gomes, vetada na Ditadura, mas décadas depois conhecida: Roque Santeiro. Nesta obra, ele conta a história mentirosa de um mito milagreiro que dava muito lucro comercial. Então, a trinca religião-economia-política se beneficiava dos lucros e instrumentalizava a fé popular.
Novidade? A cidade de Filipos mandou lembranças. Mudam apenas as localidades e os tempos, mas o enredo é o mesmo. E, como enganavam antes, continuam enganando nos dias atuais.
Lições práticas para a atualidade
Ao vermos um projeto político ou mesmo uma determinada pessoa com algum projeto político precisamos nos perguntar: qual a origem? Qual a motivação? Muitas vezes, quem está quem está por trás, ou indiretamente associado, irá surfar na onda e receber – oficial ou oficiosamente – os benefícios.
No caso do registro no livro de Atos era a mensagem do evangelho, mas pensando em nossas atividades públicas na atualidade, quem está legitimando? Ou de onde vem os apoios e por quais motivos? Quem está instrumentalizando quem? Há muito capital físico e muito capital simbólico envolvidos. E em muitos eventos, há também uma fusão de emoção, dinheiro e fé.
“Discernimento espiritual” é um dos dons espirituais indicados pelo Apóstolo Paulo como fundamentais no exercício e crescimento da igreja. Não é apenas um “exercício espiritual” sem corpo, sem tempo, sem espaço, sem história. Talvez, além da falta de interpretação de texto, esteja nos faltando o discernimento espiritual.
• Carlos Bezerra Jr., pastor da Comunidade da Graça, vereador de São Paulo, ativista de Direitos Humanos, ex-deputado estadual e ex-secretário municipal de Esportes, e autor do livro Fé Cidadã – Quando a Espiritualidade e a Política se encontram.
>> Fé, cidadania e política: só a pauta moral? [resenha]
Leia mais:
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