Opinião
- 10 de julho de 2018
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O futuro do evangelicalismo
Por Valdir Steuernagel
O evangelicalismo1 em crescimento
O evangelicalismo é uma das expressões do cristianismo que tem experimentado uma significativa expansão nestas últimas décadas. Essa expansão é vista nos diferentes rincões de países como o Quênia, na África, ou em cidades de nome desconhecido como Barra do Corda, no Maranhão. Tanto geográfica como quantitativa, ela tem como uma das consequências a penetração de igrejas evangélicas e seus líderes em diferentes segmentos da sociedade, com uma consequente participação pública, até agora bastante novidadeira. Essa expansão tem, ainda, se evidenciado no surgimento das mais diferentes igrejas com os mais diferentes nomes se estabelecendo com uma surpreendente agilidade em lugares inimagináveis. O evangelicalismo, nessas expressões recentes e crescentes, é uma presença bastante nova no seio da sociedade, busca nela o seu lugar e é por ela interpretada, especialmente em sua expressão pública. Aqui no Brasil isto vem à tona de novo, e com força, neste ano eleitoral, no qual o assim chamado “voto evangélico” é substancial e conta, sendo buscado e aliciado e se fazendo buscar e aliciar.
O evangelicalismo em crise
Em outros lugares, no entanto, o assim chamado "evangelicalismo" parece envelhecer e luta por identidade e continuidade, depois de ter experimentado expansão e crescimento num passado nem tão distante. É como se o evangelicalismo tivesse grande força de chegada, mas significativas dificuldades de tornar a sua mensagem anunciada realidade. Os seus princípios e valores tendem a claudicar no encontro com a realidade sociocultural e política, deixando de marcar a sociedade de forma construtiva e restauradora, com poucas – ainda que eloquentes – exceções históricas. Ou seja, o evangelicalismo parece ter dificuldade em encontrar o caminho de uma estabilidade transformadora na sociedade, à luz de seus princípios e valores. Como consequência, ele tende a amoldar-se à realidade circundante, dilui a sua capacidade testemunhal e deixa de cativar as novas gerações, tanto no universo de suas próprias fileiras como numa expressão missionária.
Portanto, enquanto a fé evangélica encontra efervescência em muitos lugares da América Latina, Ásia e África, na velha Europa ela tem se tornado fortemente minoritária e nos Estados Unidos enfrenta uma aguda crise. Uma crise de identidade, de pertencimento e de posicionamento na sociedade, como se verá a seguir. Nesse país as igrejas identificadas como “evangelicais” vivenciaram forte crescimento, especialmente a partir do século passado, e se constituíram numa presença representativa na sociedade americana, com evidência marcante em períodos eleitorais. Hoje, assim como o país, a igreja também está dividida entre “um evangelicalismo vermelho e um evangelicalismo azul”, como expresso por Tim Keller em referência ao Partido Republicano, que é vermelho, e ao Partido Democrata, que é azul.2
A efervescência deste momento tornou-se evidente num encontro intitulado "O Futuro do Evangelicalismo Americano", que aconteceu nos dias 16 e 17 de abril de 2018 no Wheaton College, uma espécie de “centro” desse evangelicalismo. O evento reuniu cerca de cinquenta líderes evangélicos que, a convite, traziam consigo a herança de instituições como o Wheaton College, o Seminário Teológico Fuller, a InterVarsity, a National Association of Evangelicals, a National Latino Evangelical Coalition, a revista Christianity Today, entre outras. A intenção do encontro, como expresso na nota de imprensa, foi “ter uma conversa honesta quanto ao presente estado do evangelicalismo americano e discutir o futuro do mesmo”.
A necessidade dessa conversa foi percebida a partir das eleições presidenciais de 2016, quando se cristalizou uma crise de identidade deste evangelicalismo, que já vinha se aproximando. Como expressou Doug Birdsall, coordenador geral do evento, a Sarah P. Balley, “Quando se digita "evangelical" no Google, a resposta é "Trump". E, quando as pessoas dizem o que é ser evangélico, elas não dizem evangelismo ou evangelho. Há uma caricatura grotesca do que significa ser evangélico”.3
Junto com esses cinquenta líderes americanos foram convidadas seis pessoas que representavam a igreja evangélica global, provenientes da Croácia, Líbano, Malásia, Inglaterra, Canadá e Brasil, que foi o meu caso.
Evangélico: Como melhor defini-lo?
Antes de prosseguirmos com o encontro de Wheaton, é importante definir brevemente o que significa ser "evangélico" – uma expressão do cristianismo que tem sua identidade e caminhada históricas afirmadas por pontos que poderiam ser assim resumidos:
A nota de imprensa do evento afirma e resume a identidade evangélica dizendo que “a reunião incluiu a reafirmação do nosso compromisso comum com o grande mandamento de amar a Deus e ao próximo (Mt 22.36-40) e a crença na dignidade de todas as pessoas como criadas à imagem de Deus. O grupo também expressou arrependimento em áreas nas quais os evangélicos não têm sido fiéis ao ensinamento das Escrituras e examinou quanto o testemunho público dos evangélicos americanos tem ou não refletido a vida e os ensinos de Jesus”.
O que está acontecendo?
O evangelicalismo americano, depois de significativa expansão, passou a experimentar e buscar uma relação mais próxima e influenciadora com o poder, tanto em sua expressão legislativa e executiva como judiciária. Isto poderia ser mapeado, até simbolicamente, referindo-se a duas personagens do passado recente: o evangelista Billy Graham e o pastor e evangelista batista Jerry Falwell. Enquanto Graham manteve um relacionamento de cordialidade e oração com diferentes presidentes americanos, ainda que fosse um típico conservador, Jerry Falwell cocriou o movimento intitulado “Moral Majority” (Maioridade Moral), que veio a se constituir no maior lobby político evangélico a partir dos anos 80. Um lobby cuja intenção era eleger e monitorar os eleitos segundo uma agenda que poderia ser assim descrita:
Esse apoio ao que se poderia descrever como "trumpismo" é qualificado como vindo da população branca e poderia ser mais detalhado como vindo de uma América mais idosa, mais remota e mais nervosa com a decrescente empregabilidade na velha indústria. Uma América que está se tornando arredia ao outro, especialmente ao imigrante, e que quer voltar-se para si mesma a fim de se proteger de riscos e perdas diante de um mundo mais diversificado, mais urbano e global, mais rápido e até mais eficiente. Lá, um forte setor do evangelicalismo se identificou com essa agenda.
Há também, no entanto, outro evangelicalismo que está inquieto e nervoso com essa tendência e com essa caricaturização. Este evangelicalismo é representado pelas inúmeras e enormes igrejas de população negra, pelas crescentes igrejas de descendência latina, por lideranças femininas que querem dar um basta à sua contínua discriminação, por uma geração de jovens urbanos que querem viver a sua fé de forma racialmente integrada e sensível ao outro e pelo reconhecimento de que é preciso conversar e integrar-se a uma igreja evangélica global que atingiu a maturidade e quer uma parceria de igual para igual com aqueles que, muitas vezes, foram os seus pais e mães na fé.
A tensão está posta e o caminho para o futuro será marcado por muitos desafios. Tais desafios serão melhor encaminhados se as lideranças aprenderem a conversar umas com as outras, a se respeitar em suas respectivas posições e, especialmente, a escutar aqueles que se sentem “fora do jogo” do poder, da influência e, inclusive, dos recursos econômicos. Aqueles que pouco ou nenhum lugar têm tido nessa mesa de conversas. Aqueles que discernem as igrejas americanas a partir de sua vocação missionária. Uma vocação que se coloca a serviço do reino de Deus e que sempre vai muito além de qualquer identidade nacional.
Riscos presentes e agenda desenhada
Participar desse evento do Wheaton College foi um enorme privilégio. Aliás, nem foi difícil estabelecer pontes com a nossa realidade, pois também vivemos uma realidade tensa e polarizada, em que os cristãos evangélicos são caricaturizados como sendo grotescos, desintegrados quanto à nossa realidade e obcecados com uma agenda única que desrespeita o outro. Como disse um dos participantes, líder da comunidade negra, “As igrejas e organizações evangélicas têm apoiado, por décadas, uma agenda política que considerava as vidas não nascidas mais sagradas do que a vida dos negros que estão vivos”.5
Ao participar do evento e perceber a dinâmica das conversas, eu apontaria para alguns riscos e tensões que estão presentes na sociedade e no evangelicalismo americano hoje:
O caráter e os valores. Uma das marcas históricas do evangelicalismo é buscar uma vida que dignifique a Deus e afirme valores como a verdade, a integridade e a família, como consciência de que estes formam um caráter do qual a nossa sociedade carece. O trumpismo tem relativizado e vulgarizado esses valores e esse caráter, vez após vez, e é incompreensível e inaceitável que líderes evangélicos continuem não apenas silenciando quanto a essa relativização de valores, mas também apoiando um fenômeno que irá engoli-los: o trumpismo, no qual os meios são justificados e no qual a verdade e a integridade são construídas com pouco compromisso.
A relação com o outro. O trumpismo discrimina e trucida o outro, como pode ser visto na linguagem quanto ao muro que será construído na divisa com o México ou na forma como o presidente Trump já se referiu a líderes de países pobres, como o Haiti e da África. O trumpismo discrimina para afirmar uma identidade branca que já não representa nem o mundo onde vivemos nem a realidade dos Estados Unidos, além de tratar com indignidade a diversidade de raças e etnias criadas por Deus. Os Estados Unidos estão longe de superar o seu latente racismo, em que negros e latinos são considerados cidadãos de segunda categoria, em que a quantidade de pobres cresce e a distância entre estes e os ricos, cujos impostos são reduzidos, aumenta continuamente. A história do evangelicalismo, na própria América, tem exemplos e modelos de integração racial e de promoção econômica que podem e devem ser resgatados neste presente momento, a despeito das políticas e práticas discriminatórias do trumpismo.
A visão de mundo e a “decadência do Império”. Viver na América, algo que eu mesmo já fiz, significa constatar quanto a sociedade americana tende a ser bairrista, olhando fundamentalmente para si. O grito de Trump que diz “America First” (América primeiro) é um sinal dessa tendência egocêntrica, mas é também um sinal de desespero. Desespero de um mundo que mudou e que já não pergunta aos Estados Unidos se é possível mudar. Um mundo que discerne a existência de outros poderes emergentes e caminha para uma realidade policêntrica que é, certamente, mais confusa, mais irreverente e pronta para desafiar e ridicularizar vozes prepotentes que se elevam esperando respostas de obediência e submissão, como o próprio trumpismo tem experimentado.
O evangelicalismo americano tem sido uma inquestionável força missionária. Essa força, porém, está em crise e perderá o vigor à medida que for se submetendo a uma idolatria nacionalista como a que está sendo alimentada no momento – America First. O futuro desse evangelicalismo depende de sua capacidade de se livrar dessas correntes e se deixar libertar por um evangelho que estabeleça uma mesa global onde todos têm direitos iguais, especialmente aqueles que nela nunca tiveram lugar.
Eu saí desse encontro irmanado na percepção de que os dias que vivemos são difíceis e tensos, tanto lá como cá. Mas saí também com a percepção de que a fé evangélica tem recursos que lhe possibilitam vivenciar o arrependimento e gestar o compromisso com uma caminhada que tenha no evangelho, na oração e no outro os sinais de esperança. Isto ficou evidente no encontro, quando as Escrituras foram abertas, crendo que a Palavra de Deus nos indicaria caminhos de escuta e esperança para os dias de hoje e a geração de amanhã. Evidenciou-se também, quando se abriu, na apertada agenda, tempo para a oração, o reconhecimento de que os caminhos precisam ser desenhados na escuta a Deus e na submissão mútua, por mais difícil e necessário que isso venha a ser à luz dos desafios que teimam em estar diante de nós. E a esperança ficou evidente quando a agenda do encontro abriu espaço para um trabalho em grupo que tematizou assuntos que precisam ter um lugar especial em nossa vida e ministério.
Basta enumerar a maioria dos temas desses grupos para vislumbrar o que está diante de nós no presente e no futuro:
Há uma tarefa pela frente, tanto lá como cá. No cenário de um mundo e uma igreja globais compartilhamos desafios, dores e oportunidades. Aliás, a natureza da fé cristã é global muito antes da chamada globalização, pois ela nos ajunta, como discípulos de Jesus que vivem em diferentes espaços, em torno de uma mesma mesa e de um mesmo mestre. Como parte dessa família de fé aprendemos uns com os outros. Sou profundamente grato por ter podido compartilhar da experiência aqui referida, consciente de que a conversa precisa continuar – também aqui, no nosso contexto. Nós, como evangélicos brasileiros, precisamos fazer o nosso dever de casa, identificar nossas lacunas e dores, assim como nossas oportunidades. E para isso precisamos reconhecer nossa fragilidade e descaminhos em nossa obediência de fé, buscar encontrar um ao outro em confissão e compromisso e ofertar-nos ao Senhor como sacrifício vivo, na oração de que sejamos testemunhas dignas da vocação que recebemos em Cristo Jesus (Ef 4.1).
Notas
1. Evangelicalismo é uma tradução literal do inglês “evangelicalism” e representa, especialmente nos Estados Unidos, as igrejas que se distanciam de um protestantismo de corte mais liberal. Devido à natureza deste artigo, a expressão é aqui usada, ainda que em nossa realidade brasileira ela não faça muito sentido. Pois, entre nós, a grande maioria das igrejas de corte protestante se identifica como confessionalmente evangélica, o que será explicitado no decorrer do texto.
2. Ver o artigo publicado por Katelyn Beaty no The New Yorker (26/4/2018) intitulado “At a Private Meeting in Illinois, a Group of Evangelicals Tried to Save their Movement from Trumpism”.
3. Citado por Sarah Pulliam Balley no seu blog sobre religião no Washington Post de 16 de abril de 2018, em um artigo intitulado “Dozens of Evangelical leaders meet to discuss how Trump era has unleashed ‘grotesque caricature’ of their faith”.
4. Ver nota 3.
5. Ver nota 2.
• Valdir Steuernagel é pastor na Comunidade do Redentor, em Curitiba, PR. Faz parte da Aliança Cristã Evangélica do Brasil, da Aliança Cristã Evangélica Mundial e da Visão Mundial.
* Texto originalmente publicado na edição 372 da revista Ultimato.
Leia mais
» Quem são e o que fazem os “evangelicais”?
O evangelicalismo1 em crescimento
O evangelicalismo é uma das expressões do cristianismo que tem experimentado uma significativa expansão nestas últimas décadas. Essa expansão é vista nos diferentes rincões de países como o Quênia, na África, ou em cidades de nome desconhecido como Barra do Corda, no Maranhão. Tanto geográfica como quantitativa, ela tem como uma das consequências a penetração de igrejas evangélicas e seus líderes em diferentes segmentos da sociedade, com uma consequente participação pública, até agora bastante novidadeira. Essa expansão tem, ainda, se evidenciado no surgimento das mais diferentes igrejas com os mais diferentes nomes se estabelecendo com uma surpreendente agilidade em lugares inimagináveis. O evangelicalismo, nessas expressões recentes e crescentes, é uma presença bastante nova no seio da sociedade, busca nela o seu lugar e é por ela interpretada, especialmente em sua expressão pública. Aqui no Brasil isto vem à tona de novo, e com força, neste ano eleitoral, no qual o assim chamado “voto evangélico” é substancial e conta, sendo buscado e aliciado e se fazendo buscar e aliciar.
O evangelicalismo em crise
Em outros lugares, no entanto, o assim chamado "evangelicalismo" parece envelhecer e luta por identidade e continuidade, depois de ter experimentado expansão e crescimento num passado nem tão distante. É como se o evangelicalismo tivesse grande força de chegada, mas significativas dificuldades de tornar a sua mensagem anunciada realidade. Os seus princípios e valores tendem a claudicar no encontro com a realidade sociocultural e política, deixando de marcar a sociedade de forma construtiva e restauradora, com poucas – ainda que eloquentes – exceções históricas. Ou seja, o evangelicalismo parece ter dificuldade em encontrar o caminho de uma estabilidade transformadora na sociedade, à luz de seus princípios e valores. Como consequência, ele tende a amoldar-se à realidade circundante, dilui a sua capacidade testemunhal e deixa de cativar as novas gerações, tanto no universo de suas próprias fileiras como numa expressão missionária.
Portanto, enquanto a fé evangélica encontra efervescência em muitos lugares da América Latina, Ásia e África, na velha Europa ela tem se tornado fortemente minoritária e nos Estados Unidos enfrenta uma aguda crise. Uma crise de identidade, de pertencimento e de posicionamento na sociedade, como se verá a seguir. Nesse país as igrejas identificadas como “evangelicais” vivenciaram forte crescimento, especialmente a partir do século passado, e se constituíram numa presença representativa na sociedade americana, com evidência marcante em períodos eleitorais. Hoje, assim como o país, a igreja também está dividida entre “um evangelicalismo vermelho e um evangelicalismo azul”, como expresso por Tim Keller em referência ao Partido Republicano, que é vermelho, e ao Partido Democrata, que é azul.2
A efervescência deste momento tornou-se evidente num encontro intitulado "O Futuro do Evangelicalismo Americano", que aconteceu nos dias 16 e 17 de abril de 2018 no Wheaton College, uma espécie de “centro” desse evangelicalismo. O evento reuniu cerca de cinquenta líderes evangélicos que, a convite, traziam consigo a herança de instituições como o Wheaton College, o Seminário Teológico Fuller, a InterVarsity, a National Association of Evangelicals, a National Latino Evangelical Coalition, a revista Christianity Today, entre outras. A intenção do encontro, como expresso na nota de imprensa, foi “ter uma conversa honesta quanto ao presente estado do evangelicalismo americano e discutir o futuro do mesmo”.
A necessidade dessa conversa foi percebida a partir das eleições presidenciais de 2016, quando se cristalizou uma crise de identidade deste evangelicalismo, que já vinha se aproximando. Como expressou Doug Birdsall, coordenador geral do evento, a Sarah P. Balley, “Quando se digita "evangelical" no Google, a resposta é "Trump". E, quando as pessoas dizem o que é ser evangélico, elas não dizem evangelismo ou evangelho. Há uma caricatura grotesca do que significa ser evangélico”.3
Junto com esses cinquenta líderes americanos foram convidadas seis pessoas que representavam a igreja evangélica global, provenientes da Croácia, Líbano, Malásia, Inglaterra, Canadá e Brasil, que foi o meu caso.
Evangélico: Como melhor defini-lo?
Antes de prosseguirmos com o encontro de Wheaton, é importante definir brevemente o que significa ser "evangélico" – uma expressão do cristianismo que tem sua identidade e caminhada históricas afirmadas por pontos que poderiam ser assim resumidos:
- A centralidade salvífica de Jesus Cristo, crucificado e ressurreto, conforme o testemunho das Escrituras.
- O reconhecimento da autoridade das Escrituras em tudo o que elas afirmam, com ênfase na criação, queda, restauração e na volta de Jesus no final dos tempos.
- A realidade da Igreja como fruto da evangelização, e a afirmação de sua vocação missionária, tanto no seu próprio contexto como na expansão do evangelho até os confins da terra.
- O compromisso com o arrependimento na busca de uma vida santa que afirme os valores cristãos, um caráter íntegro, uma vida familiar sólida e um testemunho público de credibilidade.
A nota de imprensa do evento afirma e resume a identidade evangélica dizendo que “a reunião incluiu a reafirmação do nosso compromisso comum com o grande mandamento de amar a Deus e ao próximo (Mt 22.36-40) e a crença na dignidade de todas as pessoas como criadas à imagem de Deus. O grupo também expressou arrependimento em áreas nas quais os evangélicos não têm sido fiéis ao ensinamento das Escrituras e examinou quanto o testemunho público dos evangélicos americanos tem ou não refletido a vida e os ensinos de Jesus”.
O que está acontecendo?
O evangelicalismo americano, depois de significativa expansão, passou a experimentar e buscar uma relação mais próxima e influenciadora com o poder, tanto em sua expressão legislativa e executiva como judiciária. Isto poderia ser mapeado, até simbolicamente, referindo-se a duas personagens do passado recente: o evangelista Billy Graham e o pastor e evangelista batista Jerry Falwell. Enquanto Graham manteve um relacionamento de cordialidade e oração com diferentes presidentes americanos, ainda que fosse um típico conservador, Jerry Falwell cocriou o movimento intitulado “Moral Majority” (Maioridade Moral), que veio a se constituir no maior lobby político evangélico a partir dos anos 80. Um lobby cuja intenção era eleger e monitorar os eleitos segundo uma agenda que poderia ser assim descrita:
- A favor da vida uterina e contra qualquer prática abortista.
- A favor da família tradicional e contra qualquer possibilidade de casamento civil de homoafetivos.
- A favor de uma vida moral íntegra no que se refere a usos e costumes.
- A favor de um Estado pequeno e que garanta as liberdades individuais, inclusive a de portar armas.
- A favor de um Estado que conceda e mantenha os benefícios, inclusive públicos, que foram concedidos às igrejas e entidades religiosas.
- A favor de uma América grande e poderosa no exercício de sua vocação de controlar o mundo.
Esse apoio ao que se poderia descrever como "trumpismo" é qualificado como vindo da população branca e poderia ser mais detalhado como vindo de uma América mais idosa, mais remota e mais nervosa com a decrescente empregabilidade na velha indústria. Uma América que está se tornando arredia ao outro, especialmente ao imigrante, e que quer voltar-se para si mesma a fim de se proteger de riscos e perdas diante de um mundo mais diversificado, mais urbano e global, mais rápido e até mais eficiente. Lá, um forte setor do evangelicalismo se identificou com essa agenda.
Há também, no entanto, outro evangelicalismo que está inquieto e nervoso com essa tendência e com essa caricaturização. Este evangelicalismo é representado pelas inúmeras e enormes igrejas de população negra, pelas crescentes igrejas de descendência latina, por lideranças femininas que querem dar um basta à sua contínua discriminação, por uma geração de jovens urbanos que querem viver a sua fé de forma racialmente integrada e sensível ao outro e pelo reconhecimento de que é preciso conversar e integrar-se a uma igreja evangélica global que atingiu a maturidade e quer uma parceria de igual para igual com aqueles que, muitas vezes, foram os seus pais e mães na fé.
A tensão está posta e o caminho para o futuro será marcado por muitos desafios. Tais desafios serão melhor encaminhados se as lideranças aprenderem a conversar umas com as outras, a se respeitar em suas respectivas posições e, especialmente, a escutar aqueles que se sentem “fora do jogo” do poder, da influência e, inclusive, dos recursos econômicos. Aqueles que pouco ou nenhum lugar têm tido nessa mesa de conversas. Aqueles que discernem as igrejas americanas a partir de sua vocação missionária. Uma vocação que se coloca a serviço do reino de Deus e que sempre vai muito além de qualquer identidade nacional.
Riscos presentes e agenda desenhada
Participar desse evento do Wheaton College foi um enorme privilégio. Aliás, nem foi difícil estabelecer pontes com a nossa realidade, pois também vivemos uma realidade tensa e polarizada, em que os cristãos evangélicos são caricaturizados como sendo grotescos, desintegrados quanto à nossa realidade e obcecados com uma agenda única que desrespeita o outro. Como disse um dos participantes, líder da comunidade negra, “As igrejas e organizações evangélicas têm apoiado, por décadas, uma agenda política que considerava as vidas não nascidas mais sagradas do que a vida dos negros que estão vivos”.5
Ao participar do evento e perceber a dinâmica das conversas, eu apontaria para alguns riscos e tensões que estão presentes na sociedade e no evangelicalismo americano hoje:
O caráter e os valores. Uma das marcas históricas do evangelicalismo é buscar uma vida que dignifique a Deus e afirme valores como a verdade, a integridade e a família, como consciência de que estes formam um caráter do qual a nossa sociedade carece. O trumpismo tem relativizado e vulgarizado esses valores e esse caráter, vez após vez, e é incompreensível e inaceitável que líderes evangélicos continuem não apenas silenciando quanto a essa relativização de valores, mas também apoiando um fenômeno que irá engoli-los: o trumpismo, no qual os meios são justificados e no qual a verdade e a integridade são construídas com pouco compromisso.
A relação com o outro. O trumpismo discrimina e trucida o outro, como pode ser visto na linguagem quanto ao muro que será construído na divisa com o México ou na forma como o presidente Trump já se referiu a líderes de países pobres, como o Haiti e da África. O trumpismo discrimina para afirmar uma identidade branca que já não representa nem o mundo onde vivemos nem a realidade dos Estados Unidos, além de tratar com indignidade a diversidade de raças e etnias criadas por Deus. Os Estados Unidos estão longe de superar o seu latente racismo, em que negros e latinos são considerados cidadãos de segunda categoria, em que a quantidade de pobres cresce e a distância entre estes e os ricos, cujos impostos são reduzidos, aumenta continuamente. A história do evangelicalismo, na própria América, tem exemplos e modelos de integração racial e de promoção econômica que podem e devem ser resgatados neste presente momento, a despeito das políticas e práticas discriminatórias do trumpismo.
A visão de mundo e a “decadência do Império”. Viver na América, algo que eu mesmo já fiz, significa constatar quanto a sociedade americana tende a ser bairrista, olhando fundamentalmente para si. O grito de Trump que diz “America First” (América primeiro) é um sinal dessa tendência egocêntrica, mas é também um sinal de desespero. Desespero de um mundo que mudou e que já não pergunta aos Estados Unidos se é possível mudar. Um mundo que discerne a existência de outros poderes emergentes e caminha para uma realidade policêntrica que é, certamente, mais confusa, mais irreverente e pronta para desafiar e ridicularizar vozes prepotentes que se elevam esperando respostas de obediência e submissão, como o próprio trumpismo tem experimentado.
O evangelicalismo americano tem sido uma inquestionável força missionária. Essa força, porém, está em crise e perderá o vigor à medida que for se submetendo a uma idolatria nacionalista como a que está sendo alimentada no momento – America First. O futuro desse evangelicalismo depende de sua capacidade de se livrar dessas correntes e se deixar libertar por um evangelho que estabeleça uma mesa global onde todos têm direitos iguais, especialmente aqueles que nela nunca tiveram lugar.
Eu saí desse encontro irmanado na percepção de que os dias que vivemos são difíceis e tensos, tanto lá como cá. Mas saí também com a percepção de que a fé evangélica tem recursos que lhe possibilitam vivenciar o arrependimento e gestar o compromisso com uma caminhada que tenha no evangelho, na oração e no outro os sinais de esperança. Isto ficou evidente no encontro, quando as Escrituras foram abertas, crendo que a Palavra de Deus nos indicaria caminhos de escuta e esperança para os dias de hoje e a geração de amanhã. Evidenciou-se também, quando se abriu, na apertada agenda, tempo para a oração, o reconhecimento de que os caminhos precisam ser desenhados na escuta a Deus e na submissão mútua, por mais difícil e necessário que isso venha a ser à luz dos desafios que teimam em estar diante de nós. E a esperança ficou evidente quando a agenda do encontro abriu espaço para um trabalho em grupo que tematizou assuntos que precisam ter um lugar especial em nossa vida e ministério.
Basta enumerar a maioria dos temas desses grupos para vislumbrar o que está diante de nós no presente e no futuro:
- Caráter: fundamental no exercício de liderança;
- Imigração: um fenômeno crescente e irrefreável;
- Islamismo: expressão da crescente diversidade religiosa;
- Virtude pública na busca de uma agenda que vá para além do aborto e do LGBTQ;
- Racismo: uma triste e assustadora realidade a desafiar a convivência humana;
- Objetificação da mulher na contínua prática de persistente discriminação.
Há uma tarefa pela frente, tanto lá como cá. No cenário de um mundo e uma igreja globais compartilhamos desafios, dores e oportunidades. Aliás, a natureza da fé cristã é global muito antes da chamada globalização, pois ela nos ajunta, como discípulos de Jesus que vivem em diferentes espaços, em torno de uma mesma mesa e de um mesmo mestre. Como parte dessa família de fé aprendemos uns com os outros. Sou profundamente grato por ter podido compartilhar da experiência aqui referida, consciente de que a conversa precisa continuar – também aqui, no nosso contexto. Nós, como evangélicos brasileiros, precisamos fazer o nosso dever de casa, identificar nossas lacunas e dores, assim como nossas oportunidades. E para isso precisamos reconhecer nossa fragilidade e descaminhos em nossa obediência de fé, buscar encontrar um ao outro em confissão e compromisso e ofertar-nos ao Senhor como sacrifício vivo, na oração de que sejamos testemunhas dignas da vocação que recebemos em Cristo Jesus (Ef 4.1).
Notas
1. Evangelicalismo é uma tradução literal do inglês “evangelicalism” e representa, especialmente nos Estados Unidos, as igrejas que se distanciam de um protestantismo de corte mais liberal. Devido à natureza deste artigo, a expressão é aqui usada, ainda que em nossa realidade brasileira ela não faça muito sentido. Pois, entre nós, a grande maioria das igrejas de corte protestante se identifica como confessionalmente evangélica, o que será explicitado no decorrer do texto.
2. Ver o artigo publicado por Katelyn Beaty no The New Yorker (26/4/2018) intitulado “At a Private Meeting in Illinois, a Group of Evangelicals Tried to Save their Movement from Trumpism”.
3. Citado por Sarah Pulliam Balley no seu blog sobre religião no Washington Post de 16 de abril de 2018, em um artigo intitulado “Dozens of Evangelical leaders meet to discuss how Trump era has unleashed ‘grotesque caricature’ of their faith”.
4. Ver nota 3.
5. Ver nota 2.
• Valdir Steuernagel é pastor na Comunidade do Redentor, em Curitiba, PR. Faz parte da Aliança Cristã Evangélica do Brasil, da Aliança Cristã Evangélica Mundial e da Visão Mundial.
* Texto originalmente publicado na edição 372 da revista Ultimato.
Leia mais
» Quem são e o que fazem os “evangelicais”?
- 10 de julho de 2018
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