Opinião
- 27 de maio de 2024
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O Evangelho Segundo as Redes sociais
Se as redes sociais confundem, e até subvertem, a verdade sobre as pessoas, elas não substituiriam também a verdade sobre Deus?
Entrevista com Guilherme de Carvalho
A Bíblia não é um manual científico. Então, como os cristãos podem lidar com os novos desafios da tecnologia e a sua relação com a fé cristã? Para o cientista da religião e presidente da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2), o pastor Guilherme de Carvalho, a Bíblia tem a resposta mais importante da existência, a grande resposta. E dela é possível derivar implicações para inúmeras perguntas práticas nos mais diversos campos.
Ultimato conversou com o teólogo e pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG, sobre os limites da inovação tecnológica na vida da igreja, a fé no progresso e o vício que arrebata boa parte dos cristãos para os mais variados gadgets e plataformas à disposição dos crentes. Estaríamos condenados à tecnologia?
1) A evolução tecnológica, o progresso, tornou-se uma espécie de “religião”, em quem depositamos nossa esperança de dias melhores. Como essa crença na técnica pode mudar nossa relação com o próximo e, no final das contas, a nossa comunhão com Deus e até a oração?
A fé no progresso alimenta um processo de “externalização” da virtude, como notou o doutor Peter Harrison em Os Territórios da Ciência e da Religião (Editora Ultimato, 2017). Isso significa que bens como a ciência, a religião e a caridade deixam de ser vistos como virtudes pessoais e comunitárias e se tornam atributos impessoais de um estado, uma política pública, uma metodologia ou uma instituição – ou seja, se tornam atributos da boa técnica, da solução eficiente. Esse foi o processo que redefiniu a caridade bíblica de uma virtude comunitária em um programa de reformas sociais eficientes, segundo uma ética utilitarista e epicurista. O resultado dessa tendência na modernidade é que o indivíduo contemporâneo não acredita nem busca a virtude pessoal, mas tão somente a promoção do sistema bom e eficiente. É o que se vê na política hoje: as pessoas podem ser verdadeiros demônios, mas se sentem anjos porque apoiam o sistema bom, perfeito e agradável.
Eu penso que isso destrói a nossa sobriedade moral, e também dificulta o relacionamento com Deus. Porque, à medida que confundirmos eficiência com virtude ou bondade, nos sentiremos livres para ignorar Deus e as pessoas. A solução técnica se torna o sumo bem, então não preciso ser pessoalmente bom com o outro, nem preciso orar nem gastar tempo com Deus. O progresso se torna importante, e a bondade, desimportante.
2) Nossa dependência do celular e como lidamos com ele é, talvez, um retrato do afeto pela tecnologia que, cada vez mais, nos torna viciados, carentes de respostas imediatas, de satisfação dos nossos desejos e cada vez mais consumidores de emoções. O que fazer quando não há energia elétrica ou não temos sinal? A fé, a vida devocional, deveria ser analógica?
Não creio que a dependência emocional do smartphone seja um vício por tecnologia em si. Não é nada disso. O vício pelas mídias sociais, que empregamos como muletas e estimuladores emocionais, é, na verdade, um vício por entretenimento, e uma incapacidade de lidar criativamente com o tédio – um problema que Blaise Pascal já denunciava no século 17. Excesso de entretenimento não é um problema novo; o máximo que podemos dizer é que as novas formas de entretenimento tecnológico expandem as possibilidades de adicção.
A vida devocional só existe no modo analógico - uma vez que nossa mente, nosso coração e nossas mãos são analógicos. Mas se o emprego contínuo de telas, por exemplo, tornou-as inseparáveis do entretenimento em nosso sistema cognitivo-comportamental, é claro que usar um celular ou tablet para as devoções introduzirá um ruído psicológico. Nesse sentido, reduzir a dopamina em geral é bom para a saúde mental e espiritual.
3) Há limites para o uso da tecnologia no culto ou na igreja? Ou, perguntando de outro modo, o sagrado e a bênção de Deus podem ser captados pelas câmeras? Enfim, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome” vale também para as redes sem fio?
Certamente há limites, mas não tenho como garantir onde eles estão! (risos).
Esse realmente não é um julgamento simples. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que todos os recursos acessórios que empregamos em nossos cultos são, em alguma medida, tecnológicos: assentos confortáveis, ar-condicionado, iluminação artificial, púlpitos, sistema de som, dedetização, envelopes de dízimo, relógios digitais, projetores de imagem, slides, instrumentos musicais... A vida humana é inerentemente cultural, e nossas tecnologias são a dimensão de eficiência da atividade cultural. Arte e técnica, sob esse ponto de vista, não são opções; não decidimos se usaremos ou não a tecnologia.
A principal questão talvez seja: “O que essa tecnologia facilita e o que ela dificulta?” E, então, poderíamos passar a julgamentos específicos sobre essa ou aquela tecnologia. Por exemplo: o uso de efeitos de reverberação digital dentro de um salão acusticamente tratado, para simular a experiência sonora de uma catedral, falsifica ou destrói alguma coisa? Nesse caso específico, eu creio que não. Mesmo em uma catedral gótica, as experiências de espaço, luz e som tinham caráter alusivo – serviam como análogos sensoriais de infinitude e transcendência. Usar tecnologias avançadas de áudio e iluminação dinâmica para produzir isso em um culto não seria algo qualitativamente diferente.
Agora, quanto à questão se o sagrado e as bênçãos poderiam ser “captados” pelas câmeras, depende do sentido da pergunta. No sentido lato, é claro que sim: através de meus óculos de grau – que são peças tecnológicas –, consigo ler a Bíblia em um tablet – uma peça também tecnológica – e Deus me ilumina por esses meios. Será que a mediação da mensagem por lentes especiais com filtros UV e por telas retina touchscreen impediria a obra do Espírito Santo? Através de câmeras especiais podemos enxergar desde as escalas moleculares até as escalas galácticas da criação de Deus, por exemplo, e ter a mesma experiência de maravilhamento e reverência que temos ao contemplar uma paisagem a olho nu.
Mas no sentido estrito, o que se capta pela câmera não é o sagrado ou a bênção, porque essas realidades não são percebidas com o ouvido ou o olho físico, mas com os olhos do coração – Paulo fala explicitamente sobre esses “olhos do coração” em Efésios 1.18.
Quanto à pergunta sobre “dois ou três reunidos”: entendo que uma reunião completa envolve atenção interpessoal, simultaneidade e presença física, sendo esta última necessária para maximizar as duas primeiras. Assistir a um evento gravado não envolve nenhuma delas. Assistir a um evento on-line envolve apenas uma delas: a simultaneidade. Mas uma reunião on-line envolve atenção interpessoal e simultaneidade, mesmo com presença física incompleta. É uma reunião incompleta, mas ainda é uma reunião. Minha posição é de que reuniões de oração on-line não são reuniões virtuais, no sentido de serem reuniões falsas ou ilusórias, mas reuniões reais, ainda que deficitárias, e que Jesus pode estar presente em uma reunião de oração on-line.
4) Em um recente artigo você afirmou que “o capitalismo se tornou sentimental, e nossos sentimentos tornaram-se capitalistas”. Isso nos fez lembrar de uma oração sugerida pelo teólogo inglês N. T. Wright para esses tempos consumistas: “Ajuda-nos a amar o que Deus ordena e a desejar o que ele promete”. O problema é que, Wright completa, “nós queremos que Deus ordene o que já amamos e prometa o que já desejamos”. O que o progresso ou a tecnologia têm a ver com isso?
A ideologia do progresso envolve a fé na tecnociência para produzir um paraíso terrestre. É uma esperança escatológica concorrente do cristianismo. Mas, assim como a esperança cristã organiza o desejo, a esperança no progresso também o organiza de um modo particular.
Que modo seria esse? Segundo N. T. Wright, nas suas Gifford Lectures (História e Escatologia), seria o epicurismo. Não apenas como doutrina sobre a natureza e a sua relação com os deuses, mas como doutrina da felicidade, postulando uma felicidade puramente temporal e terrena. Mas no Ocidente moderno, ela é muito mais do que uma tese filosófica; tornou-se uma verdadeira Paideia geral, embutida na educação, nas práticas terapêuticas, no entretenimento e mesmo em políticas públicas. Somos formados para acreditar e desejar a felicidade como bem-estar psicológico, riqueza e autonomia, e que o progresso da civilização garantirá tudo isso para nós.
Os cristãos não poderão lidar com essa Paideia sem uma contraformação completa, que envolva outro paraíso e outra concepção de felicidade.
5) Com máquinas e aparelhos cada vez mais inteligentes, estamos presos e condenados à tecnologia? Estamos consumindo mais “emoções” do que “coisas”? O que é computação afetiva?
Não sei se o termo certo seria “condenados”, mas penso que sim, sem dúvida. Na verdade, desde que o ser humano recebeu, como se enfatiza na tradição reformada, o “mandato cultural”, está claro que ele foi feito irrevogavelmente tecnológico. Desenvolver soluções e gadgets é parte do que somos.
O problema aqui é o tipo de tecnologia que produzimos e quais os seus efeitos. Um dos fenômenos que chamou minha atenção há alguns anos foi a ascensão da computação afetiva – o desenvolvimento de sistemas e processos computacionais capazes de interpretar emoções humanas e interagir com elas. Com aplicações iniciais para auxílio de crianças autistas e pacientes com questões psicológicas, a computação afetiva ajudou a inspirar algoritmos e sistemas inteligentes que atingem diretamente nossos desejos e emoções, visando nos induzir e nos fidelizar no consumo.
Byung-Chul Han notou para onde isso nos levaria: à psicopolítica digital. O sistema inteligente suplanta as funções de nosso córtex pré-frontal e se comunica diretamente, com capacidade sem igual, com nosso sistema límbico para nos fidelizar, nos vender produtos e obter nossa lealdade. Essa seria mais uma etapa no processo de externalização descrito por Peter Harrison.
6) A Bíblia não é um livro ou um manual científico. Então, como os cristãos podem lidar com os novos desafios da tecnologia? A ética cristã é suficiente para responder às novas perguntas?
Eu creio que a Bíblia tenha a resposta mais importante da existência, a grande resposta, mas isso não significa que ela tenha todas as pequenas respostas. Ninguém em sã consciência buscará na Bíblia uma lista completa de todos os elementos químicos do universo; ela não foi escrita para isso.
Ainda assim, a partir da grande resposta, é possível derivar implicações para toda a infinidade de perguntas práticas nos mais diversos campos. Considerações sobre a criação e a encarnação, por exemplo, induzem respostas para o campo da conservação ambiental que vão além de versículos bíblicos separadamente.
Existe um sentido em que os novos desafios tecnológicos são incapazes de escapar da Palavra de Deus. Pois o fato é que, em todo avanço ou uso tecnológico, o novo artefato ou processo será inevitavelmente um modo do indivíduo se relacionar com Deus, consigo mesmo e com o mundo. E essa é a pergunta do eticista cristão: como a nova relação que o sujeito quer estabelecer consigo mesmo, a partir dessa ou daquela tecnologia, se distancia ou se aproxima do modelo de Cristo?
7) Umberto Eco é sempre lembrado pela afirmação de que “a internet deu voz a uma legião de imbecis”. Talvez a carapuça nos sirva. As redes sociais estão cheias de coaches evangélicos criando mitos e saciando a coceira nos ouvidos de parte da igreja (2Tm 4.3-4). Estamos vivendo um novo Evangelho Segundo o Instagram?
Partindo da observação de que o Instagram é uma ferramenta de construção da imagem, talvez seja possível que os estereótipos de construção de imagem que dominam essa rede confundam, e até mesmo subvertam, a verdade do evangelho. Se eles substituem a verdade sobre as pessoas, não substituiriam também a verdade sobre Deus?
Alguns desses estereótipos – como as posturas de influenciadores homens ou mulheres, de profissionais liberais e de profissionais de tantas áreas – parecem ser meramente incorporados por cristãos para obter visibilidade, a ponto de não sabermos se isso anuncia o evangelho ou se o evangelho é que anuncia a imagem dessas pessoas.
Entrevista publicada originalmente na edição 407 de Ultimato.
REVISTA ULTIMATO | OS DESAFIOS ÉTICOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS
O avanço da tecnologia nas últimas décadas é maior do que em qualquer outra época da história. Tal aumento se dá em muitas frentes e, mais significativo, confere um caráter tecnológico à vida contemporânea.
Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
É disso que trata a matéria de capa da edição 407 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Tecnologia: nossa esperança para o futuro? | Egbert Schuurman
» Os Territórios da Ciência e da Religião, Peter Harrison
» O Ajuste Fino do Universo – Em busca de Deus na ciência e na tecnologia, Alister McGrath
» Fé, Esperança e Tecnologia – Ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica, Egbert Schuurmann
» Desafios éticos das novas tecnologias – o que mais você precisa saber sobre o assunto
Entrevista com Guilherme de Carvalho
A Bíblia não é um manual científico. Então, como os cristãos podem lidar com os novos desafios da tecnologia e a sua relação com a fé cristã? Para o cientista da religião e presidente da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2), o pastor Guilherme de Carvalho, a Bíblia tem a resposta mais importante da existência, a grande resposta. E dela é possível derivar implicações para inúmeras perguntas práticas nos mais diversos campos.
Ultimato conversou com o teólogo e pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG, sobre os limites da inovação tecnológica na vida da igreja, a fé no progresso e o vício que arrebata boa parte dos cristãos para os mais variados gadgets e plataformas à disposição dos crentes. Estaríamos condenados à tecnologia?
1) A evolução tecnológica, o progresso, tornou-se uma espécie de “religião”, em quem depositamos nossa esperança de dias melhores. Como essa crença na técnica pode mudar nossa relação com o próximo e, no final das contas, a nossa comunhão com Deus e até a oração?
A fé no progresso alimenta um processo de “externalização” da virtude, como notou o doutor Peter Harrison em Os Territórios da Ciência e da Religião (Editora Ultimato, 2017). Isso significa que bens como a ciência, a religião e a caridade deixam de ser vistos como virtudes pessoais e comunitárias e se tornam atributos impessoais de um estado, uma política pública, uma metodologia ou uma instituição – ou seja, se tornam atributos da boa técnica, da solução eficiente. Esse foi o processo que redefiniu a caridade bíblica de uma virtude comunitária em um programa de reformas sociais eficientes, segundo uma ética utilitarista e epicurista. O resultado dessa tendência na modernidade é que o indivíduo contemporâneo não acredita nem busca a virtude pessoal, mas tão somente a promoção do sistema bom e eficiente. É o que se vê na política hoje: as pessoas podem ser verdadeiros demônios, mas se sentem anjos porque apoiam o sistema bom, perfeito e agradável.
Eu penso que isso destrói a nossa sobriedade moral, e também dificulta o relacionamento com Deus. Porque, à medida que confundirmos eficiência com virtude ou bondade, nos sentiremos livres para ignorar Deus e as pessoas. A solução técnica se torna o sumo bem, então não preciso ser pessoalmente bom com o outro, nem preciso orar nem gastar tempo com Deus. O progresso se torna importante, e a bondade, desimportante.
2) Nossa dependência do celular e como lidamos com ele é, talvez, um retrato do afeto pela tecnologia que, cada vez mais, nos torna viciados, carentes de respostas imediatas, de satisfação dos nossos desejos e cada vez mais consumidores de emoções. O que fazer quando não há energia elétrica ou não temos sinal? A fé, a vida devocional, deveria ser analógica?
Não creio que a dependência emocional do smartphone seja um vício por tecnologia em si. Não é nada disso. O vício pelas mídias sociais, que empregamos como muletas e estimuladores emocionais, é, na verdade, um vício por entretenimento, e uma incapacidade de lidar criativamente com o tédio – um problema que Blaise Pascal já denunciava no século 17. Excesso de entretenimento não é um problema novo; o máximo que podemos dizer é que as novas formas de entretenimento tecnológico expandem as possibilidades de adicção.
A vida devocional só existe no modo analógico - uma vez que nossa mente, nosso coração e nossas mãos são analógicos. Mas se o emprego contínuo de telas, por exemplo, tornou-as inseparáveis do entretenimento em nosso sistema cognitivo-comportamental, é claro que usar um celular ou tablet para as devoções introduzirá um ruído psicológico. Nesse sentido, reduzir a dopamina em geral é bom para a saúde mental e espiritual.
3) Há limites para o uso da tecnologia no culto ou na igreja? Ou, perguntando de outro modo, o sagrado e a bênção de Deus podem ser captados pelas câmeras? Enfim, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome” vale também para as redes sem fio?
Certamente há limites, mas não tenho como garantir onde eles estão! (risos).
Esse realmente não é um julgamento simples. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que todos os recursos acessórios que empregamos em nossos cultos são, em alguma medida, tecnológicos: assentos confortáveis, ar-condicionado, iluminação artificial, púlpitos, sistema de som, dedetização, envelopes de dízimo, relógios digitais, projetores de imagem, slides, instrumentos musicais... A vida humana é inerentemente cultural, e nossas tecnologias são a dimensão de eficiência da atividade cultural. Arte e técnica, sob esse ponto de vista, não são opções; não decidimos se usaremos ou não a tecnologia.
A principal questão talvez seja: “O que essa tecnologia facilita e o que ela dificulta?” E, então, poderíamos passar a julgamentos específicos sobre essa ou aquela tecnologia. Por exemplo: o uso de efeitos de reverberação digital dentro de um salão acusticamente tratado, para simular a experiência sonora de uma catedral, falsifica ou destrói alguma coisa? Nesse caso específico, eu creio que não. Mesmo em uma catedral gótica, as experiências de espaço, luz e som tinham caráter alusivo – serviam como análogos sensoriais de infinitude e transcendência. Usar tecnologias avançadas de áudio e iluminação dinâmica para produzir isso em um culto não seria algo qualitativamente diferente.
Agora, quanto à questão se o sagrado e as bênçãos poderiam ser “captados” pelas câmeras, depende do sentido da pergunta. No sentido lato, é claro que sim: através de meus óculos de grau – que são peças tecnológicas –, consigo ler a Bíblia em um tablet – uma peça também tecnológica – e Deus me ilumina por esses meios. Será que a mediação da mensagem por lentes especiais com filtros UV e por telas retina touchscreen impediria a obra do Espírito Santo? Através de câmeras especiais podemos enxergar desde as escalas moleculares até as escalas galácticas da criação de Deus, por exemplo, e ter a mesma experiência de maravilhamento e reverência que temos ao contemplar uma paisagem a olho nu.
Mas no sentido estrito, o que se capta pela câmera não é o sagrado ou a bênção, porque essas realidades não são percebidas com o ouvido ou o olho físico, mas com os olhos do coração – Paulo fala explicitamente sobre esses “olhos do coração” em Efésios 1.18.
Quanto à pergunta sobre “dois ou três reunidos”: entendo que uma reunião completa envolve atenção interpessoal, simultaneidade e presença física, sendo esta última necessária para maximizar as duas primeiras. Assistir a um evento gravado não envolve nenhuma delas. Assistir a um evento on-line envolve apenas uma delas: a simultaneidade. Mas uma reunião on-line envolve atenção interpessoal e simultaneidade, mesmo com presença física incompleta. É uma reunião incompleta, mas ainda é uma reunião. Minha posição é de que reuniões de oração on-line não são reuniões virtuais, no sentido de serem reuniões falsas ou ilusórias, mas reuniões reais, ainda que deficitárias, e que Jesus pode estar presente em uma reunião de oração on-line.
4) Em um recente artigo você afirmou que “o capitalismo se tornou sentimental, e nossos sentimentos tornaram-se capitalistas”. Isso nos fez lembrar de uma oração sugerida pelo teólogo inglês N. T. Wright para esses tempos consumistas: “Ajuda-nos a amar o que Deus ordena e a desejar o que ele promete”. O problema é que, Wright completa, “nós queremos que Deus ordene o que já amamos e prometa o que já desejamos”. O que o progresso ou a tecnologia têm a ver com isso?
A ideologia do progresso envolve a fé na tecnociência para produzir um paraíso terrestre. É uma esperança escatológica concorrente do cristianismo. Mas, assim como a esperança cristã organiza o desejo, a esperança no progresso também o organiza de um modo particular.
Que modo seria esse? Segundo N. T. Wright, nas suas Gifford Lectures (História e Escatologia), seria o epicurismo. Não apenas como doutrina sobre a natureza e a sua relação com os deuses, mas como doutrina da felicidade, postulando uma felicidade puramente temporal e terrena. Mas no Ocidente moderno, ela é muito mais do que uma tese filosófica; tornou-se uma verdadeira Paideia geral, embutida na educação, nas práticas terapêuticas, no entretenimento e mesmo em políticas públicas. Somos formados para acreditar e desejar a felicidade como bem-estar psicológico, riqueza e autonomia, e que o progresso da civilização garantirá tudo isso para nós.
Os cristãos não poderão lidar com essa Paideia sem uma contraformação completa, que envolva outro paraíso e outra concepção de felicidade.
5) Com máquinas e aparelhos cada vez mais inteligentes, estamos presos e condenados à tecnologia? Estamos consumindo mais “emoções” do que “coisas”? O que é computação afetiva?
Não sei se o termo certo seria “condenados”, mas penso que sim, sem dúvida. Na verdade, desde que o ser humano recebeu, como se enfatiza na tradição reformada, o “mandato cultural”, está claro que ele foi feito irrevogavelmente tecnológico. Desenvolver soluções e gadgets é parte do que somos.
O problema aqui é o tipo de tecnologia que produzimos e quais os seus efeitos. Um dos fenômenos que chamou minha atenção há alguns anos foi a ascensão da computação afetiva – o desenvolvimento de sistemas e processos computacionais capazes de interpretar emoções humanas e interagir com elas. Com aplicações iniciais para auxílio de crianças autistas e pacientes com questões psicológicas, a computação afetiva ajudou a inspirar algoritmos e sistemas inteligentes que atingem diretamente nossos desejos e emoções, visando nos induzir e nos fidelizar no consumo.
Byung-Chul Han notou para onde isso nos levaria: à psicopolítica digital. O sistema inteligente suplanta as funções de nosso córtex pré-frontal e se comunica diretamente, com capacidade sem igual, com nosso sistema límbico para nos fidelizar, nos vender produtos e obter nossa lealdade. Essa seria mais uma etapa no processo de externalização descrito por Peter Harrison.
6) A Bíblia não é um livro ou um manual científico. Então, como os cristãos podem lidar com os novos desafios da tecnologia? A ética cristã é suficiente para responder às novas perguntas?
Eu creio que a Bíblia tenha a resposta mais importante da existência, a grande resposta, mas isso não significa que ela tenha todas as pequenas respostas. Ninguém em sã consciência buscará na Bíblia uma lista completa de todos os elementos químicos do universo; ela não foi escrita para isso.
Ainda assim, a partir da grande resposta, é possível derivar implicações para toda a infinidade de perguntas práticas nos mais diversos campos. Considerações sobre a criação e a encarnação, por exemplo, induzem respostas para o campo da conservação ambiental que vão além de versículos bíblicos separadamente.
Existe um sentido em que os novos desafios tecnológicos são incapazes de escapar da Palavra de Deus. Pois o fato é que, em todo avanço ou uso tecnológico, o novo artefato ou processo será inevitavelmente um modo do indivíduo se relacionar com Deus, consigo mesmo e com o mundo. E essa é a pergunta do eticista cristão: como a nova relação que o sujeito quer estabelecer consigo mesmo, a partir dessa ou daquela tecnologia, se distancia ou se aproxima do modelo de Cristo?
7) Umberto Eco é sempre lembrado pela afirmação de que “a internet deu voz a uma legião de imbecis”. Talvez a carapuça nos sirva. As redes sociais estão cheias de coaches evangélicos criando mitos e saciando a coceira nos ouvidos de parte da igreja (2Tm 4.3-4). Estamos vivendo um novo Evangelho Segundo o Instagram?
Partindo da observação de que o Instagram é uma ferramenta de construção da imagem, talvez seja possível que os estereótipos de construção de imagem que dominam essa rede confundam, e até mesmo subvertam, a verdade do evangelho. Se eles substituem a verdade sobre as pessoas, não substituiriam também a verdade sobre Deus?
Alguns desses estereótipos – como as posturas de influenciadores homens ou mulheres, de profissionais liberais e de profissionais de tantas áreas – parecem ser meramente incorporados por cristãos para obter visibilidade, a ponto de não sabermos se isso anuncia o evangelho ou se o evangelho é que anuncia a imagem dessas pessoas.
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O avanço da tecnologia nas últimas décadas é maior do que em qualquer outra época da história. Tal aumento se dá em muitas frentes e, mais significativo, confere um caráter tecnológico à vida contemporânea.
Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
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