Opinião
- 01 de fevereiro de 2012
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O Evangelho e o falso moralismo
“A ONU declarava guerra à droga estimulada pelo moralismo religioso dos Estados Unidos”. (...) Guerra à droga? A paz com usuários é que deve ser buscada”, diz o sociólogo Fernando Henrique Cardoso no documentário “Quebrando o Tabu”. Toda guerra favorece à indústria da morte. Envolve interesses econômicos e oportunismo político. Matar, anular, castrar, reprimir, excluir, dessocializar, é o nome da guerra à droga. Criminalizando, quem lucra são os traficantes, o crime organizado e a polícia corrupta. Não sobrevivem sem a droga, seja crack, cocaína, ópio ou heroína.
Quem não pensa nas consequências sobre a igreja, família, a comunidade, a sociedade, a coletividade, necessita saber da “pacificação” diante das drogas, e não da guerra. Não é o mesmo que preparar o Rio de Janeiro para a Copa do Mundo. Paz com as drogas significa compaixão, inclusão, aceitação, cuidado, misericórdia, e não condenação abstrata. Doentes precisam de tratamento e não de cadeia (ou condenação), onde a droga é liberada e consumida à luz do dia (Dráuzio Varella). Hospitais, ambulatórios, saúde assistida são direitos humanos que devem ser buscados.
Muitos movimentos e grupos religiosos, igrejas e ONG’s mostram interesse pelo indivíduo enquanto servem como “laranjas” de causas eleitoreiras, servindo políticos inescrupulosos, enquanto recebem verbas do governo com propina garantida (10, 20%, depende...). Sujam dinheiro limpo. Diante das leis de repressão e violência inaceitáveis contra pessoas doentes ou drogadas, em dez anos, Portugal reduziu drasticamente o consumo de drogas cuidando do usuário com tratamento médico, e não apontando-o como criminoso (52% deixaram a droga). Enquanto isso, reduziu-se o campo de atuação do traficante. Dizendo “não” aos riscos da clandestinidade, a medicina regular é aberta aos que querem ser tratados. A maioria.
Para o Evangelho, o “locus teologicus” é o “despoderado” (hebraico: anawin; grego: ptochos), encurvado, dobrado pelas circunstâncias, perseguido, humilhado pela própria vida. Na Bíblia, é o ignorado e desprezado pela própria sociedade (e o Estado). É o perseguido pela polícia e explorado pela polícia corrupta. Mas a sociedade religiosa é a primeira a excluí-lo e identificá-lo como pecador, e eximir-se de responsabilidade e culpa pela injustiça. Prefere sustentar o preconceito. A compaixão escapa aos regimentos e declarações doutrinais em gabinetes eclesiásticos. Devemos nos surpreender com isso, uma vez que a sociedade, biblicamente, é casa, lar, “oikos”. O “sócio”, συνεργάτης (sunergates), é o companheiro, um irmão de grupo numa mesma sociedade. Essas duas realidades fundamentais de todos os seres humanos encontram o sofredor no usuário de drogas, no deficiente, no portador de HIV, no oprimido pelas enfermidades físicas ou sociais (cf. tabagismo, alcoolismo, drogadismo, sexoaholismo, etc.), no meio e junto ao grupo maior, o todo, a coletividade humana.
Como dizia alguém, “o moralismo é o último refúgio de um canalha” exatamente porque é suficientemente abrangente para deixar todas as patifarias, corrupções, protegidas, ao abrigo de um suposto interesse coletivo por justiça ou “transparência”. O político é contra a inclusão homossexual; usa a camisa preta contra a pedofilia, na campanha. Pego pelo Ministério Público roubando do erário sem qualquer pudor, mas permanece impune. Depois, é premiado por mais um mandato pela comunidade evangélica. Nunca se compromete com leis de responsabilidade social para com o usuário de drogas, porque vive do assistencialismo oportunista. O mais inexpugnável dos inimigos da justiça é o falso moralista, o oportunista de quaisquer matizes, ideológico, partidário, intelectual, político, religioso. Em todos os moralistas existe a voracidade insaciável e destruidora de uma “aids social”, de um “câncer dos costumes” (W. Siqueira), como se diz da droga.
Jesus declarou-se abertamente contra a idolatria da letra morta, ou seja: a lei moralista “...o homem não foi feito para o sábado” (Mc 2.7). Ninguém foi feito para a lei! Declarações condenatórias engessam a misericórdia, o cuidado, o serviço ao próximo que ignoram o ser humano e suas necessidades, apontando subjetividades como: “na igreja não somos assim”. Repetem a oração do fariseu (Lc 18.9-14). Enfim, Jesus se prontificava a combater a religião sem misericórdia e solidariedade, porque esta omitia direitos fundamentais. O povo simples se encantava com a ousadia de Jesus expondo à luz do dia a ideologia religiosa reinante.
“Hipócritas”, “túmulos brancos por fora, podres por dentro”, “tira primeiro a trave do teu olho, antes de julgares” são imprecações de Jesus dirigidas aos condutores da sociedade religiosa, ou civil. Precisamente por isso Jesus lutou contra os demônios que dominam a consciência social; contra as ideologias instaladas nas sinagogas (qhal ou edah: igrejas judaicas), no Templo e na sociedade. Jesus não se identificou com propósitos religiosos moralistas no combate às doenças socializadas. Jesus não aprovou oportunistas da miséria, exploradores da credulidade popular, invadidos por “espíritos imundos”: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.5).
É lavando as mãos que Pilatos entra no Credo. O caráter normativo (referência) do Evangelho há de nos lembrar: aos perseguidos, discriminados, desgraçados e enganados deste mundo, o Reino é anunciado: “bem-aventurado é aquele que não se escandalizar com a minha causa” (Lc 7.23). Nesta passagem se expressa o centro vital da mensagem de Jesus. Isso significa que Jesus sabia das palavras de Jeremias (cf. Jr 31.33). “Cada um levará a Lei no coração”. Ou seja, terá consciência da justiça, das leis de responsabilidade social. A Lei não é uma obrigação, mas uma dádiva orientadora para todo o povo. Nenhuma “lei” ou declaração religiosa moralista terá efeito sobre o que é responsabilidade do Estado. O fruto ruim nos obriga a uma nova semeadura para um mundo novo possível.
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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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