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- 02 de setembro de 2020
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O Covidário do Hospital das Clínicas: Do caos à missão
Um Dia de Cada Vez
Por Barbara dos Santos Fahur
Sou fisioterapeuta, formada desde 2010, com especialização em fisioterapia cardiorrespiratória no INCOR – Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Trabalhei também com oncologia no Instituto do Câncer do Estado de SP e após três anos de experiência hospitalar, migrei para a área de osteopatia em 2014.
Eu estava no meu consultório, onde me encontrava numa agenda repleta de pacientes à procura de reabilitação e de cura, quando, de repente, chega o ano de 2020. O mundo literalmente foi envolvido por uma forte e assustadora onda caótica, que tinha o poder de adoecer pessoas, famílias, cidades, países e simplesmente paralisar vidas frente ao coronavírus e a Covid-19.
Em frente ao caos que se apresentava diante de meus olhos, percebi que o mundo precisava de gente disposta a ajudar, inclusive na área da fisioterapia respiratória e ventilação mecânica. Assim, meu coração foi totalmente invadido por algo diferente. Eu simplesmente não via outra opção. Meu coração batia forte com esse desafio, me dizendo que era ali que eu tinha que estar. No meio do caos.
Em oração, pedi a Deus que me enviasse uma resposta, para que alguém do serviço de fisioterapia hospitalar entrasse em contato comigo. E a resposta veio mais rápida do que podia imaginar: em um mesmo dia tive dois chamados da área de RH de dois hospitais em São Paulo. O desafio agora era a escolha do local.
Nesse momento, tomei conhecimento que o Instituto Central do Hospital das Clínicas iria se tornar um “covidário”. Seriam 300 leitos somente de UTI e pelo menos mais 500 leitos de enfermaria, totalmente disponíveis para atendimento de pacientes graves de Covid-19. Meu coração se inclinou para servir nesse lugar.
Fui falar com meus pais e é claro que eles ficaram muito apreensivos com as consequências daquela decisão. Mas, em família, entendemos que não havia outra opção, que era ali, na UTI do Hospital das Clínicas, que eu deveria estar. Tivemos que adaptar a logística e aluguei um pequeno apartamento próximo ao hospital. O total distanciamento familiar seria necessário naquele momento.
Meu coração tinha um desejo muito grande de ajudar aquelas vidas, que eu não tinha capacidade intelectual para dimensionar sobre riscos, salário, ou qualquer questão burocrática envolvida; eu não me importava com o que viesse depois. Se essa fosse minha última missão de vida... seria ali! O medo que aterrorizava a nossa terra me dava forças para me inclinar em amor por um outro alguém.
Então eu tirei os brincos, os anéis, o relógio, o colar... todas as roupas e sapatos bonitos que estava acostumada a usar. Coloquei máscara, óculos de proteção, face shield, roupa privativa, avental de proteção e luvas. E fui... um dia de cada vez. Entendi que o melhor a fazer, além da competência técnica, era levar ânimo, força e esperança para os profissionais que já estavam cansados e sobrecarregados. E junto com a equipe, ser instrumento de cura e de esperança aos pacientes internados.
Rotina no hospital
A equipe passou por um treinamento intensivo, mas não imaginávamos exatamente com o que iríamos lidar. Recebemos treinamentos em avaliação específica, posição prona, em novos ventiladores mecânicos, além de uma plataforma de suporte on-line atualizada, que os profissionais poderiam acessar a qualquer momento.
Os pacientes que chegavam já estavam enfrentando um quadro de gravidade importante, com evolução da cascata inflamatória, o que chamávamos de tempestade inflamatória. Com isso, não era somente o pulmão que estava comprometido. Alguns pacientes evoluíam com problema de fígado, outros com uma alteração cardíaca e renal. A recomendação terapêutica adotada foi visando manter o paciente em níveis adequados de sobrevivência, para que o seu próprio organismo tivesse condições biológicas de cura. O suporte básico de vida foi o nosso lema o tempo todo.
Cuidados com a equipe
A princípio, as pessoas achavam amedrontador estar num hospital que só recebia casos de Covid-19 e apelidado de “covidário”. Mas por incrível que pareça, muitos da equipe relatavam que se sentiam mais seguros e protegidos ali dentro do que em um supermercado. Havia os EPIs e todos da equipe estavam conscientes e, ao mesmo tempo, se cuidavam. A equipe de limpeza era exímia na atitude corajosa de entrar nas UTIs para fazer a limpeza e a higienização dos quartos, do chão, tirar o lixo e desinfecção dos ambientes.
Aconteceram acidentes biológicos? Sim. Profissionais foram contaminados? Nem todos. A taxa de contaminação interna de funcionários foi baixa perto do que acontecia em outros hospitais, e em alguns casos, bem menor em relação a hospitais que não eram especializados em atendimento a Covid, por não estarem adaptados para essa realidade.
A equipe de trabalho estava focada para juntos aprender o máximo, fazer o melhor e cuidar muito bem dos pacientes. Havia dias que tudo se desorganizava. Um número grande de pacientes se desestabilizava ao mesmo tempo. Nas primeiras semanas, o maior desafio da equipe foi conseguir interagir e compreender o momento diferente e emergencial que todos estavam envolvidos. Havia excelentes médicos, talvez os melhores médicos do mundo em terapia intensiva e eu presenciei vários deles, tomarem uma atitude de humildade e dizer para equipe: “Eu preciso de vocês. São vocês, cada um em sua especialidade, que estão fazendo a diferença nessa UTI.” Iniciaram diálogos entre equipes para melhor entendimento da dinâmica de cada UTI do “covidário”. O que um fez que deu certo? O que o outro fez que deu certo? O objetivo de todos era o bem-estar dos pacientes e proporcionar a eles um maior grau de estabilidade e de sobrevivência.
Experiência com os pacientes
Graças a Deus não tivemos que conviver com pacientes no corredor do hospital sem assistência médica. Todos os pacientes encaminhados para o Hospital das Clínicas eram atendidos com muita excelência.
Tivemos muitos óbitos e perdas importantes, mas também tivemos muitas pessoas se recuperando. Às vezes não sabíamos exatamente como aquela história iria terminar, mas sabíamos que éramos os responsáveis por dar todas as condições possíveis de forma incansável para que aquela vida tivesse condições de sobreviver.
Nesse período, muitas vezes eu não podia fazer absolutamente nada. Precisava simplesmente esperar que aquele organismo desse alguma resposta. De mãos atadas me perguntava... “como eu ainda posso fazer a diferença naquela vida?” Passava a orar e a cantar louvores na beira do leito de muitos pacientes. Orava e dizia palavras de esperança e de vida; muitas vezes, inclusive, precisava dizer que era tempo de ir embora e de deixar o próprio Deus cuidar em um novo céu e uma nova Terra. Não tenho dúvidas que muitos pacientes foram visitados pelo amor e pela graça de Deus.
Tivemos um paciente jovem em um pós-operatório de cirurgia oncológica no esôfago que após o procedimento foi diagnosticado com Covid-19. Evoluiu com insuficiência respiratória moderada, necessidade de oxigênio e de cuidados respiratórios intensivos, porém não seria a melhor opção entubá-lo, pois havia um risco de comprometer a região da cirurgia.
Optaram pelo tratamento de ventilação não invasiva e de alto fluxo, realizando as terapias de forma intercalada. Aos poucos foi melhorando até que foi para enfermaria e finalmente teve alta hospitalar.
Foi então que me deparei com um vídeo que viralizou, que mostrava a reação do filho ao ver o pai. A criança não estava esperando a surpresa. Ela se emocionou muito e a mãe fala para a criança: “Filho, você pode chorar”. E é aí que ele se dá conta que é o pai. Então ele vai para o seu colo e o abraça. Ao ver aquela cena, percebi que a dimensão era além do hospital. O paciente grave que passou por nossos cuidados, depois de curado, em sua casa há um encontro do filho com o pai, que ele nem sabia se ia encontrar novamente.
Esse foi um caso que me fez entender que valeu a pena cada detalhe e cada minuto que vivi na UTI de Covid-19. Cada fração de segundo valeu a pena!
Voltar à realidade do mundo aqui fora
Quando aceitei o desafio de ir para o hospital, não sabia por quanto tempo ficaria lá, mas sabia que precisava monitorar este tempo. A partir do momento que a onda começasse a diminuir, eu também tinha que retomar minha vida e sabia que era temporário. Da mesma forma que foi abrupta a entrada de pacientes, de repente começou a diminuir o número de novos casos. Percebíamos dois ou três leitos de UTI vagos por um período todo. Daqui a pouco um leito vago por 24 horas. E percebeu-se que já não era mais necessária aquela quantidade de leitos. Os pacientes que estavam chegando, já não eram tão graves em relação aos que chegaram primeiramente. Após 90 dias de trabalho na UTI, eu saí.
Foi difícil. Meu coração estava grato ao Senhor, cheio de alegria. Mas a desconexão dessa experiência de alto impacto deveria ser sentida gradativamente. Parece que fiquei meio perdida no espaço. Precisava de um tempo para aterrissar de forma tranquila e branda.
Em tão pouco tempo, houve uma transformação em mim. Passei a ter outras percepções de vida.
Recebi um chamado para uma missão. Percebi que ao receber essa grande tarefa, recebi também um estado de ânimo interno que me protegeu. Eu não tinha medo. O ímpeto da ajuda foi muito maior que o medo. E acho que foi esse sentimento que me sustentou. Meu foco não era na doença, era na solução. Eu entendia que eu era um meio de solução, então eu tinha que ir.
Havia momentos críticos no hospital. Eu me cansava, ficava triste. Mas percebia que meu corpo tinha a reserva energética para lidar com aquele momento. Logo depois eu deixava relaxar. Adotei algumas estratégias que compreendiam ter um boa noite de sono. Conseguia pela manhã me reorganizar internamente. Fazia períodos de oração, de meditação, ouvia uma música que deixava meu coração mais animado. Dessa forma, sinto que pude levar algo positivo para dentro da UTI, tanto para os pacientes quanto para meus colegas de trabalho, onde conheci pessoas maravilhosas.
Em nenhum momento me senti angustiada. Algumas vezes ligava a televisão e pensava que eu estava vivendo num mundo paralelo. Não era possível que o que eu via na TV poderia ser pior do que o que via no hospital, apelidado de “covidário”.
Havia o sentimento de gratidão imensa em poder ajudar. O sentimento de impotência enorme em às vezes não poder fazer nada e o sentimento de extrema certeza que a mão de Deus, os anjos de Deus, a nuvem de glória estavam comigo naquele lugar de uma forma que eu nunca senti antes! Chorei, dei risada, cantei, me senti frustrada, me alegrei, fiz high five com o paciente que recebia alta, celebrei cada mínima melhora e conheci pessoas incríveis.
Simplesmente vivi um dos melhores e mais lindos momentos de minha vida!
Ali, no meio do caos, Deus me resgatou, me curou e me permitiu levar uma atmosfera de amor e de cura por aqueles corredores! Ali Deus me protegeu, me iluminou, me usou e me guiou! Ali eu encontrei um novo sopro de vida!
• Bárbara dos Santos Fahur, fisioterapeuta. @drabarbarafahur
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