Opinião
- 16 de março de 2017
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A graça de Deus não pode ser detida por grades
Por André Martins
O ano de 2017 começou tenso para os brasileiros, surpreendidos que fomos pelas rebeliões nos presídios. Lado a lado com reivindicações, legítimas ou não, execuções de parceiros de prisão e a mutilação bárbara dos cadáveres como demonstração de poder, a punir duas vezes familiares dessas vítimas – com o assassínio e com o desrespeito ao corpo – horrorizaram o país. O terror à brasileira deu as cartas no Amazonas, Alagoas, Paraná, Paraíba, Roraima, Santa Catarina, São Paulo. Em menos de quinze dias, 130 mortos.
Espaços onde, a rigor, deveria prevalecer a força da lei, foram dominados pela violência e desordem. Com isso, enquanto parentes e amigos dos presos não podiam visitá-los, bairros vizinhos às penitenciárias temiam mais violência e anarquia. Alta tensão num país cuja sociedade gaba-se do caráter pacífico de sua população, da boa índole e do substrato cristão que fariam de nós povo um tanto singular no concerto das nações. A mídia não ajuda muito a compreendermos esse contexto. Prevalece exploração superficial do fenômeno da violência, da falta de capacidade de reação do aparato repressor do Estado e da sociedade-vítima.
Direitos humanos em falta
O surrado discurso dos direitos humanos já nem é mais tão citado. Aliás, a ausência do pleno usufruto de direitos é algo generalizado no Brasil. Afeta os próprios policiais e carcereiros. Eles e suas famílias sentem na pele as condições precárias da infraestrutura urbana e as mazelas do sistema de segurança pública. Atinge também a população da periferia, carente de saúde, educação e transporte de qualidade, saneamento básico e de um mínimo de segurança. E como numa situação de guerra em que gêneros de primeira necessidade escasseiam, no quesito direitos humanos, a população tende a olhar para os prisioneiros como os últimos dos últimos a merecer o mínimo dos mínimos.
Essa violência que nos escandaliza e ameaça é apenas uma num cipoal que o Estado brasileiro tem tolerado desde sempre. Sabe-se que as políticas públicas devem ser vistas e implementadas como políticas de Estado e não de governos passageiros. De igual modo, o combate à impunidade crônica, à falta de segurança pública, ao caos no sistema prisional precisam integrar uma pauta de Estado. Não é responsabilidade isolada de uma ou outra instituição. E, no entanto, vem sendo sistematicamente desconsiderado no Brasil.
A mídia e a crise
De sua parte, a mídia repetiu abordagens antigas. Jornalistas e colaboradores dedicaram-se ao imediatismo. As rebeliões nas penitenciárias tornaram-se o assunto principal da cobertura no começo do ano. Num rápido exame das manchetes de veículos de comunicação na internet, abundam termos e expressões como “chacina”, “massacre”, “crise”, “rebelião”, “onda de rebeliões” e “facções”. Quanto aos tópicos explorados, nota-se, entre outros, “superlotação”, “briga de facções por controle”, “caráter previsível das rebeliões”, “falta de investimentos no setor”, “intervenção das forças armadas”.
O governo respondeu com o envio da Força Nacional de Segurança Pública e das Forças Armadas e com a edição de um Plano Nacional para o setor. Os mesmos “remédios” ineficazes de sempre para doença tão crônica que enferma o país. Em tempos de redes sociais, o bordão “pra inglês ver” faz cada vez mais sentido no Brasil. Ao sediar megaeventos como a Rio + 20, a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas do Rio, o país teve pretexto para muita corrupção. No fim das contas, até o salário dos servidores públicos foi sacrificado por governos estaduais que se locupletaram na relação promíscua com empresários que acabaram por superfaturar obras ou entregá-las sem a devida qualidade ou simplesmente não entregá-las.
Prisioneiros e agenda do Reino
O que os cristãos brasileiros têm a dizer a uma nação cansada de promessas e que tem fome e sede de justiça? Na Bíblia, encontramos histórias de prisioneiros – de José no Egito aos apóstolos Paulo e João, em Roma e em Patmos, respectivamente, passando pelo Senhor Jesus, alvo de um processo judicial corrompido. Desde essa época, muitos cristãos têm experimentado o cárcere. Num mundo em que a justiça é submetida a muitos interesses, somos desafiados à solidariedade – porque a graça do Deus Eterno não pode ser detida por grades, nem se limita ao lado de fora das prisões.
Embora levantamentos recentes apontem que ao menos um terço dos presos não tenha recebido qualquer julgamento (http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-sobre-populacao-carceraria-brasileira), em tese, quem está encarcerado em presídios é porque já foi julgado ou em breve o será. O processo judicial completou-se. Garantir a integridade física, a manutenção diária e o respeito à pessoa do preso não é favor algum, é obrigação de Estado decente. Nas democracias modernas, não há espaço para tortura, maus tratos ou qualquer prática atentatória à dignidade humana. Mas, também nesses espaços sob responsabilidade do Estado, o crime organizado rivaliza com o poder público, como de resto o faz em alguns espaços urbanos, e os próprios presos com a conivência (ou cumplicidade) de agentes públicos, sem maiores embaraços, coordenam e mesmo praticam crimes, de dentro dos presídios, o que mais uma vez pune a sociedade pagadora de impostos e mantenedora de toda a infraestrutura pública. Nesse caos, ressocializar o preso torna-se objetivo vazio e risível.
Em meio a esse contexto terrível, nós, cristãos brasileiros, somos desafiados a lutar pela melhoria da sociedade. Esta pode desprezar os encarcerados, mas a intervenção dos cristãos deve ser no sentido de alcançá-los com a mensagem do Evangelho e com a luta por justiça – para eles também.
• André Ricardo N. Martins, é presbítero em disponibilidade da Igreja Presbiteriana do Brasil, jornalista da TV Senado, mestre em Comunicação e doutor em Linguística pela Universidade de Brasília.
Leia mais
A igreja e a questão carcerária
Como Anunciar o Evangelho Entre os Presos
Cinco motivos para se envolver com a capelania prisional
Foto: Pixabay.com.
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Espaços onde, a rigor, deveria prevalecer a força da lei, foram dominados pela violência e desordem. Com isso, enquanto parentes e amigos dos presos não podiam visitá-los, bairros vizinhos às penitenciárias temiam mais violência e anarquia. Alta tensão num país cuja sociedade gaba-se do caráter pacífico de sua população, da boa índole e do substrato cristão que fariam de nós povo um tanto singular no concerto das nações. A mídia não ajuda muito a compreendermos esse contexto. Prevalece exploração superficial do fenômeno da violência, da falta de capacidade de reação do aparato repressor do Estado e da sociedade-vítima.
Direitos humanos em falta
O surrado discurso dos direitos humanos já nem é mais tão citado. Aliás, a ausência do pleno usufruto de direitos é algo generalizado no Brasil. Afeta os próprios policiais e carcereiros. Eles e suas famílias sentem na pele as condições precárias da infraestrutura urbana e as mazelas do sistema de segurança pública. Atinge também a população da periferia, carente de saúde, educação e transporte de qualidade, saneamento básico e de um mínimo de segurança. E como numa situação de guerra em que gêneros de primeira necessidade escasseiam, no quesito direitos humanos, a população tende a olhar para os prisioneiros como os últimos dos últimos a merecer o mínimo dos mínimos.
Essa violência que nos escandaliza e ameaça é apenas uma num cipoal que o Estado brasileiro tem tolerado desde sempre. Sabe-se que as políticas públicas devem ser vistas e implementadas como políticas de Estado e não de governos passageiros. De igual modo, o combate à impunidade crônica, à falta de segurança pública, ao caos no sistema prisional precisam integrar uma pauta de Estado. Não é responsabilidade isolada de uma ou outra instituição. E, no entanto, vem sendo sistematicamente desconsiderado no Brasil.
A mídia e a crise
De sua parte, a mídia repetiu abordagens antigas. Jornalistas e colaboradores dedicaram-se ao imediatismo. As rebeliões nas penitenciárias tornaram-se o assunto principal da cobertura no começo do ano. Num rápido exame das manchetes de veículos de comunicação na internet, abundam termos e expressões como “chacina”, “massacre”, “crise”, “rebelião”, “onda de rebeliões” e “facções”. Quanto aos tópicos explorados, nota-se, entre outros, “superlotação”, “briga de facções por controle”, “caráter previsível das rebeliões”, “falta de investimentos no setor”, “intervenção das forças armadas”.
O governo respondeu com o envio da Força Nacional de Segurança Pública e das Forças Armadas e com a edição de um Plano Nacional para o setor. Os mesmos “remédios” ineficazes de sempre para doença tão crônica que enferma o país. Em tempos de redes sociais, o bordão “pra inglês ver” faz cada vez mais sentido no Brasil. Ao sediar megaeventos como a Rio + 20, a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas do Rio, o país teve pretexto para muita corrupção. No fim das contas, até o salário dos servidores públicos foi sacrificado por governos estaduais que se locupletaram na relação promíscua com empresários que acabaram por superfaturar obras ou entregá-las sem a devida qualidade ou simplesmente não entregá-las.
Prisioneiros e agenda do Reino
O que os cristãos brasileiros têm a dizer a uma nação cansada de promessas e que tem fome e sede de justiça? Na Bíblia, encontramos histórias de prisioneiros – de José no Egito aos apóstolos Paulo e João, em Roma e em Patmos, respectivamente, passando pelo Senhor Jesus, alvo de um processo judicial corrompido. Desde essa época, muitos cristãos têm experimentado o cárcere. Num mundo em que a justiça é submetida a muitos interesses, somos desafiados à solidariedade – porque a graça do Deus Eterno não pode ser detida por grades, nem se limita ao lado de fora das prisões.
Embora levantamentos recentes apontem que ao menos um terço dos presos não tenha recebido qualquer julgamento (http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-sobre-populacao-carceraria-brasileira), em tese, quem está encarcerado em presídios é porque já foi julgado ou em breve o será. O processo judicial completou-se. Garantir a integridade física, a manutenção diária e o respeito à pessoa do preso não é favor algum, é obrigação de Estado decente. Nas democracias modernas, não há espaço para tortura, maus tratos ou qualquer prática atentatória à dignidade humana. Mas, também nesses espaços sob responsabilidade do Estado, o crime organizado rivaliza com o poder público, como de resto o faz em alguns espaços urbanos, e os próprios presos com a conivência (ou cumplicidade) de agentes públicos, sem maiores embaraços, coordenam e mesmo praticam crimes, de dentro dos presídios, o que mais uma vez pune a sociedade pagadora de impostos e mantenedora de toda a infraestrutura pública. Nesse caos, ressocializar o preso torna-se objetivo vazio e risível.
Em meio a esse contexto terrível, nós, cristãos brasileiros, somos desafiados a lutar pela melhoria da sociedade. Esta pode desprezar os encarcerados, mas a intervenção dos cristãos deve ser no sentido de alcançá-los com a mensagem do Evangelho e com a luta por justiça – para eles também.
• André Ricardo N. Martins, é presbítero em disponibilidade da Igreja Presbiteriana do Brasil, jornalista da TV Senado, mestre em Comunicação e doutor em Linguística pela Universidade de Brasília.
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